segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

FUGA DO FORTE DE PENICHE

Faz hoje precisamente 50 anos que dez destacados dirigentes do PCP, presos políticos do regime fascista de Salazar, se evadiram do forte de Peniche, uma das prisões mais seguras do Estado Novo. Poet'anarquista publica em três capítulos a história dessa evasão narrada por Francisco Martins Rodrigues, um dos dez evadidos da noite de 3 de Janeiro de 1960.
Poet'anarquista
Fortaleza Prisão de Peniche
Croqui da Fuga

FUGA PARA A LIBERDADE - 1º CAPÍTULO 

António Barata (para o DL) - A 3 de Janeiro de 1960 evadiram-se do pavilhão de alta segurança do Forte de Peniche dez presos políticos, dirigentes destacados do PCP.

Festejada alegremente pela oposição, a espectacular fuga deu brado, deixando o regime furioso e em polvorosa.

Francisco Martins Rodrigues foi um dos evadidos. Reproduzimos o depoimento escrito em 2007 que, além de relatar a operação, nos dá  a percepção do que era o regime prisional fascista. 

Francisco Martins Rodrigues- Um belo dia de Agosto, em 1958, andávamos nós a passear na Sala 2A do Aljube, conversando e filosofando, quase às escuras, que a sala dava para o beco, quando a porta se abriu de rompante e o guarda diz para mim e para o Chico Miguel: “Preparem as suas coisas para abandonar a cadeia.” Já sabíamos o que aquilo queria dizer: iam levar-nos para Peniche. Eu acabava de ser condenado a três anos e medidas de segurança, ele terminara mais um castigo e ia continuar a sua pena eterna – nessa altura já tinha uns 18 ou 19 anos de cadeia.

Para um preso, qualquer novidade é uma festa 

Fizemos a nossa trouxa, despedimo-nos dos companheiros e aí fomos nós, pela escada abaixo, radiantes pela mudança. Para um preso condenado qualquer novidade é uma festa. Iríamos encontrar novos camaradas, ter recreio ao ar livre, coisa que no Aljube não existia, conhecer um rancho diferente, o que para um preso também não é nada de desprezar… Mal sabíamos nós que daí a ano e meio estaríamos em liberdade.

A viagem no carro celular da PIDE foi tormentosa. Fechados, sem ver nada para o exterior, com dois pides ao nosso lado a dizer chalaças, nós proibidos de falar um com o outro, a estrada às voltas e mais voltas, o cheiro a gasolina… Às tantas, o Chico Miguel começou a sentir-se agoniado, pediu para fazerem uma paragem, para respirar um pouco de ar livre. Um dos pides falou pelo ralo para o chefe de brigada, que ia ao lado do motorista, mas ele não lhe ligou nenhuma: “Segue!” Não tardou que o Chico começasse a vomitar ali dentro e aí os pides ficaram em pânico: “Chefe, o gajo está a vomitar, isto não se aguenta!” Lá tiveram que parar num descampado. Foi uma cerimónia dos diabos primeiro que abrissem a porta, saíssem os dois pides, se pusessem os três de roda da carrinha, de pistolas em punho: “Sai, mas se te armas em esperto meto-te já uma bala na cabeça.” O chefe de brigada estava cheio de nervos e tinha boas razões para isso. Não por mim, que era novato naquelas andanças, mas pelo Chico Miguel. Fraca figura, quem o via não dava nada por ele, mas já tinha duas evasões no activo, uma de Caxias, outra de Peniche, e estava sempre à espreita de uma oportunidade. Lá saímos, o Chico Miguel amarelo, a cambalear, e ali ficámos uns cinco minutos na beira da estrada, com os pides à nossa volta, olhando para todo o lado, receosos de qualquer mau encontro. “Vá, vamos embora!” Limparam o chão do carro com uns jornais e aí vamos nós a caminho de Peniche. A última parte da viagem não custou tanto, entrava pelas frestas uma brisa marinha que nos reanimava. Era uma das atracções de Peniche, comentada com inveja pelos presos do Aljube e Caxias: o cheiro da maresia, o vento que entrava por todo o lado, a pancada atroadora das vagas a bater no molhe em dias de temporal. Não tinha comparação com as celas soturnas, bafientas, do Aljube.

E assim entrámos triunfalmente no pátio do forte, ao fim da tarde, e lá fomos ser inscritos na secretaria.

Pavilhão C

Fizemos parte da leva que foi estrear o Pavilhão C. Por estranho que pareça, o Tribunal Plenário condenava-nos a “prisão maior celular”, mas ainda não havia nessa altura instalações com celas para cumprimento de pena. Os presos ficavam a monte numas velhas camaratas. A tradicional falta de verbas fez que só em finais dos anos 50 estivesse pronta a primeira ala da nova prisão. Salazar deve ter rezado em acção de graças por mais esta obra do seu regime.

Consistia então o Pavilhão C de um corredor para que abriam dez celas individuais, com um refeitório numa das extremidades, e, na outra, um pequeno corredor transversal que dava acesso a outras três celas mais espaçosas. O mobiliário, verdadeiramente luxuoso, consistia num catre e respectivas mantas, uma mesinha, uma cadeira e um balde com uma tampa, para as necessidades, porque tudo tinha que se fazer ali dentro. Dum lado a porta chapeada, do outro as grades da ordem. A janela pregada e com as vidraças pintadas, para não podermos espreitar para fora, só uma fresta em cima dava entrada ao ar. Pode parecer ironia, mas as paredes caiadas de fresco, a luz, o chão de cimento, a cadeira, faziam um contraste tão grande com as sórdidas e mal cheirosas instalações do Aljube que me senti ali como um príncipe.


Ao som do apito

Mas a pouco e pouco entrava-se no espírito do lugar e percebia-se que aquilo não era uma colónia de férias. Primeiro, pelo isolamento. Cada preso passava a maior parte do tempo sozinho consigo próprio e sem nada para fazer. Proibido deitar sobre a cama: o guarda encarregava--se de vigiar pelo ralo se a ordem era cumprida. Só restava marchar para trás e para diante. Tratava-se de “regenerar para a vida honesta” os presos políticos, dados oficialmente como “vadios”, segundo os altos princípios jesuíticos inventados nos anos 30 por um ministro da Justiça de Salazar.

Para tudo e para nada, havia um sistema de apitos estridentes e disciplinadores. Apito. Cada preso põe-se em sentido na sua cela, voltado para a porta. O guarda abre as portas, uma a uma, com grande estrondo de ferrolhos. Apito. Cada preso sai da cela e forma no corredor. Apito. Os presos marcham pelo corredor, em silêncio, até ao refeitório, parando em volta das mesas, nos lugares previamente estabelecidos. Apito. “Podem sentar.” “Chefe de sala, pode servir.” Comia-se em silêncio total. Quando acabava o comer, repetia-se a mesma cerimónia, apitos e mais apitos. Via-se que aquele regulamento tinha sido estudado com amor por algum burocrata num filme americano.
Depressa aprendíamos a distinguir os guardas “bons” dos maus: os “bons” apitavam normalmente, os sádicos perfuravam-nos os tímpanos. Parece pouco, mas para quem está a cumprir pena faz a sua diferença.
Fonte: DiárioLiberdade

(Continua publicação a 04/01/2011)

1 comentário:

Ana Paula Fitas disse...

Belo post, Kabé. Faço link lá no A Nossa Candeia e reitero os votos de Bom Ano :)
Um beijinho.