sexta-feira, 27 de maio de 2011

«CONTOS DO NASCER DA TERRA»

Mia Couto
Escritor Moçambicano

XIII CONTO - «O último voo do tucano»

«Tucanos»
Pintura Brasileira

O ÚLTIMO VOO DO TUCANO

Ela estava grávida, em meio de gestação. 
Faltavam dois meses para ela se proceder a fonte. 
O que fazia, nessa demora? 
Deitava-se de ventre para baixo e ficava ali, imóvel, quase se arriscando a coisa. 
Que fazia ela assim, barriga na barriga do mundo?
- “Ensino o futuro menino a ser da terra, estou-lhe a dar pés de longe”.
Ela queria a viagem para seu filho. O pai sorria, por desculpa aos deuses. 
E ficava a coar o tempo, fazendo promessas logo-logo arrependidas: 
“Amanhã ou quem sabe depois?” 
Desentretanto, nada acontecia. Aconteceu sim, foi numa noite farinhada de estrelas. 
O pai estava sentado sob a palmeira, a ver o mundo perder peso. 
Saboreava a carícia da preguiça dominical. 
Domingo não é um dia. É uma ausência de dia.
A mulher se chegou, em gesto fingido de segurar barriga. Sempre ela tivera os rins ruins.
Assim, de encontro ao poente, a mulher parecia dobra de cobra, flor à espera de vaso.
- “Mando, você conhece a maneira dos tucanos ninharem?
- “Conheço, com certeza.
- “Porque não fazemos igual como eles?”
O homem quase caiu das costas. Mas não reagiu, concordado com o silêncio. 
Não é só a barriga: cabeça dela também inchou, pensou. 
Mas segurou a palavra e com ela se acordou.
- “Começamos quando?”
Nessa noite, ele contou as estrelas. A angústia lhe enxotava o sono. 
Fazer como os tucanos? Somos aves, agora? 
Como recusar, porém, sem chamar desgraças? 
Assim, no dia seguinte, ele deu início à loucura. 
Começou a fechar a casa com paus, matopes, água e areias. 
A casa foi ficando com mais paredes que lados. 
Tapadas foram as portas, fechadas as janelas. 
Deixou só uma pequena abertura e voltou a juntar-se à esposa.
A mulher se sentou no banquinho de mafurreira 
e deixou que o homem lhe cortasse os cabelos e rapasse todos pêlos do corpo. 
Imitavam a tucana que se depena para construir o ninho.
Depois ela se despiu, libertou-se das vestes e atirou as roupas no obscuro da casa. 
E se despediram, fosse tudo aquilo nem vivido, simples fantasia. 
A mulher entrou na escura casa e ficou de costas. 
O marido maticou a abertura, enconchando a casa. 
Mas não tapou tudo: ficou um buraco onde mal metia o braço.
Fechada a obra, ele recuou uns breves passos para contemplar a casa.
Aquilo, agora, mais se parecia um imbondeiro.
A grávida estava aprisionada, na inteira dependência dele. 
Morresse o homem e ela definharia, desnutrida, desbebida. 
Os seus destinos se igualavam ao dos tucanos em momento de ninhação.
Nos tempos que seguiram, o homem cumpriu seu mandato: 
matutinava para trazer comeres e beberes. 
Duas vezes ao dia ele chegava e assobiava em jeito de pássaro. 
Ela acenava, apenas a mão dela se arriscava à luz.
- “Não tem medo que eu fique por lás, nunca mais voltado?
- “Você, marido, sempre há-de voltar. 
Você tem doença da água: mesmo da nuvem sempre regressa”.
E assim se sucederam meses. Até que, uma vez, ela lhe disse: “não venha mais!” 
Ele sabia que ela estava anunciar o parto.
- “Você quer que eu fique perto?
- “Não, espere longe”.
Ele longe não foi. Ficou atento, próximo, caso a necessidade. 
Esperou um dia, dois, muitos. Nada, nem um choro a confirmar o nascimento. 
Até que se determinou fazer valer sua dúvida. Chamou por ela, quase a medo. 
Tivessem morrido mãe e filho, ao desumbigarem-se. 
Já ele se decidia a arrombar o esconderijo 
quando de dentro do escuro se vislumbrou o aceno de um pano. A mulher estava viva. 
Logo, acorreu ele ansioso:
- “A criança?
- “A criança, o quê?”
Ele não soube juntar mais pergunta. Quem mais se engasga é quem não come. 
A mulher, simples, disse que o menino estava que até Deus se haveria de espantar. 
Que ela precisava ficar ainda uns tempos assim, no choco, 
na quenteação do ninho para dar despacho ao crescer da vida.
Nessa primeira semana, ele ficou no quintal, em estado de nervos. 
É que não escutava nem chorinho, assobio de fome do menino. 
E se passavam semanas, lentas e oleosas.
- “Lhe peço, mulher. Me deixe ao menos ver o menino nosso”.
Ela então fez sair as mãos em concha pelo pequeno buraco. 
Só se via o enxovalhado enxoval.
- “Segure aqui, mando. Cuidado”.
Ele, embevecido, aceitou o embrulho das roupas.
- “Posso espreitar, ao menos?
- “Não, ainda não se pode ver”.
E recolheu a dádiva, se deleitando com esse consolo. 
Ficou experimentando a ausência de peso daquele volume. 
Tão leve era o objecto que não havia força que o suportasse. 
O embrulho lhe tombou das mãos e se espalmilhou na areia. 
Foi quando, de dentro dos panos, se soltou um pássaro, muito verdadeiro. 
Levantou voo, desajeitoso, aos encontrões com nada.
O homem ficou a ver as asas se longeando, voadeiras. 
Depois, ergueu-se e se arremessou contra a parede da casa. 
Tombaram paus, desabaram matopes, despertaram poeiras. 
Agachada num canto estava a mulher, de ventre liso. 
Junto dela a capulana ainda guardava sangues. 
Areias revolvidas mostravam que ela já escavara o chão, encerrando a cerimónia. 
Ele se ajoelhou e acariciou a terra.

Mia Couto
Até prá semana...
Poet'anarquista

3 comentários:

Anónimo disse...

Estes contos são lindíssimos. Tenho seguido todos desde o início e cada vez estou mais apaixonada com a escrita maravilhosa de Mia Couto. Espero que estes contos se prolonguem por muito tempo no poet'anarquista. Muitos parabéns pelo bom gosto e qualidade do blogue, que se mantenha esta linha editorial!

Anónimo disse...

São os contos e é todo este blogue de grande qualidade cultural. Ainda bem que toda a regra tem excepção.
5*****estrelas!

Maria

Anónimo disse...

EM PLENA SINTONIA COM O COMENTADOR DAS 14:13!

Grata pela partilha.

Uma Alandroalense (L...)