sábado, 23 de junho de 2012

LITERATURA - ORSON W. CALABRESE

DESCRIÇÃO DE FRANCISKA...
(Homenagem à memória de Viriato da Cruz)

O meu amigo andava triste! E eu era o único que conhecia o motivo daquela tristeza. Eu, e a Franciska ( não é gralha.... é assim mesmo.... Franciska com kapa). Uma estória de amores e desamores!
«Tocador de Quissange»
Pintor Angolano Neves e Sousa


O meu amigo era mestiço. Era um mulato que rondava o metro e oitenta de altura, peso a condizer, olhos grandes, e uma carapinha que deixava as miúdas do Bairro da Samba com a cabeça à roda. Não conheci nenhuma que não olhasse para ele sem segundas intenções. Em seu redor havia sempre uma mulher que o olhava com ares atrevidos. Das três cores do selo de povoamento: Pretas, brancas e mestiças. E eu, branco deslavado, sem cheiro que se cheirasse, aproveitei a aura dele e andei de merengue em merengue, de rebita em rebita.... meses a fio.... ali pelas praias do Bispo e da Corimba, aproveitando também da companhia das suas admiradoras.
«Um Homem de Outro Mundo»
Capa de Livro: Neves e Sousa

Até que apareceu a Franciska. Vinha do outro lado da cidade. Do Bairro Operário, o maior musseque de Luanda. Vinha para merengar, para rebitar até de madrugada, em companhia de um grupo de amigas luandinas.

Convém apresentá-la melhor para se entender que a paixão avassaladora do meu amigo não era apenas sentimento, eram também sentidos. Aqueles sentidos que ele tinha sempre latentes.

«Mocinha Muxilengue»
Pintor Angolano Neves e Sousa

«Era uma negra alta, não tão alta como o meu amigo, mas quase. Queixo erguido. Trazia o cabelo penteado em finas tranças, filigrana pura, presas à cabeça por invisíveis ganchos e pequeníssimas missangas a alindar. De uma das orelhas pendia um longo brinco de tambaque que lhe tocava o ombro; na outra orelha, assim como que colada ao lóbulo, usava uma pequena estrela dourada que se destacava na sua pele muito negra. A estrela do "éme", disse-me mais tarde, quando ficámos amigos. Olhos cinzentos, muito escuros, pestanudos, nariz direito e boca de lábios grossos, sensuais. Dentes grandes e brancos, prontos a morder. Longo pescoço. Peito atrevido, arrebitado, sem precisar de soutien. Barriga fina, lisa, plana, aveludada. Pernas de tenista, musculosas, mas femininas, cobertas com uma quase invisível penugem. Pés grandes, pés de quem andou descalça durante grande parte da sua vida.» (Fim de descrição.)

Ah.... convém ainda dizer que do seu guarda roupa apenas constavam mini-saias e t'shirts. Pronto, está apresentada a mulher que deu volta à cabeça do meu amigo.

«Muhuila Solteira»
Pintor Angolano Neves e Sousa


E quando se cruzaram foi como se ele não existisse.
Não lhe ligou nenhuma.
Ele rogou a atenção dela; E ela olhou para o outro lado.
Pediu a um amigo para tipografar um cartão
Em que lhe pedia namoro: num canto sim, noutro canto não;
O cartão foi devolvido com o canto não dobrado.
Nem a avó Chica, famosa kimbandeira,
Ao consultar os búzios e as estrelas,
Acertou num feitiço capaz.
Desesperado, andou perdido - de amores, cucas e alguma liamba,
Acho eu - ali pelos morros da Samba.
Até que o levámos ao baile do Sr. Januário, no Bairro Operário,
Musseque de moças bonitas, como é sabido.
E num salto maluco atravessou a sala com a Franciska nos braços,
E a malta gritou «Aí Benjamim!»


«Baile Mahungo»
Pintor Angolano Neves e Sousa

Mas essa parte já todos conhecemos.
O Ségio encarregou-se de nos contar isso muito bem.

- Este texto é uma homenagem à memória de Viriato da Cruz. Foi ele o autor do «Namoro» que o Sérgio tão bem musicou. O Viriato foi militante do «émepélá». Não o MPLA que hoje governa Angola. Do outro, aquele «émepélá» por quem a Franciska ostentava a estrelinha dourada no lóbulo da orelha.

Orson W. Calabrese 

Agradecimentos a Orson W. Calabrese pela partilha do texto.
Poet’anarquista

Viriato da Cruz
Poeta e Político Angolano
BREVE NOTA…

Outra figura proeminente da vida politica e cultural de Angola, foi sem duvida Viriato Francisco Clemente da Cruz. Nasceu em Kikuvo, Porto Amboim em 1928. Fez os estudos liceais em Luanda.

Considerado um dos mais importantes impulsionadores de uma poesia regionalista angolana nas décadas de 40 e 50, caracterizando-se a sua obra pelo apego aos valores africanos, quer quanto à temática, quer quanto à forma. A sua produção está dispersa por publicações periódicas e representada em várias antologias, das quais uma - «No Reino de Caliban» - reúne a sua obra poética.

Foi uns principais mentores do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (1948-49) e da revista Mensagem (1951-1952). 

Saiu de Angola em 1957 e em Paris foi juntar-se a Mário Pinto de Andrade, tendo desenvolvido intensa actividade política e cultural.

Foi membro-fundador e o primeiro secretário-geral do MPLA durante os primeiros anos da década 60. Dissidente deste movimento, esteve exilado em Portugal e noutros países europeus, fixando-se posteriormente na China, onde veio a falecer em 13 de Julho de 1973.
Fonte: www.mazungue.com


MAMÁ NEGRA
(Canto de esperança)
(À memória do poeta haitiano Jacques Roumain)

Tua presença, minha Mãe - drama vivo duma Raça,
Drama de carne e sangue
Que a Vida escreveu com a pena dos séculos!

Pela tua voz
Vozes vindas dos canaviais dos arrozais dos cafezais
[dos seringais dos algodoais!...
Vozes das plantações de Virgínia
dos campos das Carolinas
Alabama
Cuba
Brasil...
Vozes dos engenhos dos banguês das tongas dos eitos
[das pampas das minas!

Vozes de Harlem Hill District South
vozes das sanzalas!
Vozes gemendo blues, subindo do Mississipi, ecoando
[dos vagões!
Vozes chorando na voz de Corrothers:
Lord God, what will have we done
- Vozes de toda América! Vozes de toda África!
Voz de todas as vozes, na voz altiva de Langston
Na bela voz de Guillén...

Pelo teu dorso
Rebrilhantes dorsos aso sóis mais fortes do mundo!
Rebrilhantes dorsos, fecundando com sangue, com suor
[amaciando as mais ricas terras do mundo!
Rebrilhantes dorsos (ai, a cor desses dorsos...)
Rebrilhantes dorsos torcidos no "tronco", pendentes da
[forca, caídos por Lynch!
Rebrilhantes dorsos (Ah, como brilham esses dorsos!)
ressuscitados em Zumbi, em Toussaint alevantados!
Rebrilhantes dorsos...
brilhem, brilhem, batedores de jazz
rebentem, rebentem, grilhetas da Alma
evade-te, ó Alma, nas asas da Música!
...do brilho do Sol, do Sol fecundo
imortal
e belo...

Pelo teu regaço, minha Mãe,
Outras gentes embaladas
à voz da ternura ninadas
do teu leite alimentadas
de bondade e poesia
de música ritmo e graça...
santos poetas e sábios...

Outras gentes... não teus filhos,
que estes nascendo alimárias
semoventes, coisas várias,
mais são filhos da desgraça:
a enxada é o seu brinquedo
trabalho escravo - folguedo...

Pelos teus olhos, minha Mãe
Vejo oceanos de dor
Claridades de sol-posto, paisagens
Roxas paisagens
Dramas de Cam e Jafé...
Mas vejo (Oh! se vejo!...)
mas vejo também que a luz roubada aos teus
[olhos, ora esplende
demoniacamente tentadora - como a Certeza...
cintilantemente firme - como a Esperança...
em nós outros, teus filhos,
gerando, formando, anunciando -
o dia da humanidade

O DIA DA HUMANIDADE!...

Viriato da Cruz

1 comentário:

Anónimo disse...

Publicação apaixonante! Muito bem enquadrado o texto e as imagens numa bonita homenagem a Viriato da Cruz e ao poema "namoro", magistralmente musicado e cantado pelo grande autor e compositor Sérgio Godinho. Parabéns ao blogue!