terça-feira, 14 de janeiro de 2014

OUTROS CONTOS

«Solstício de Inverno», por André Maurois.

«Solstício de Inverno»
Stonehenge  
Alinhamento Megalítico da Idade do Bronze
Salisbury, próximo a Amesbury, no condado de Wiltshire, no Sul da Inglaterra

64- «SOLSTÍCIO DE INVERNO»

Muito longe, no céu, em Júpiter ou Saturno, ou melhor ainda em Sírius, dois astrónomos dirigiram seus telescópios para a Terra. Um deles é um velho siriata, sábio ilustre, e outro seu discípulo, ainda principiante. Neste instante é o último que, com o olho na ocular observa os astros.

O VELHO ASTRÓNOMO – Olha. Esse globo luminoso e pálido é a Terra. Ela acaba de atravessar o solstício de inverno e começa aquilo a que seus habitantes chamam um novo ano. Com uma ampliação maior, vou fazer com que os veja a correr pelas ruas de suas cidades. É quando, sem dúvida para se tranquilizarem nessa época de noites longas e frias, eles se presenteiam reciprocamente e celebram festas noturnas… (Faz girar uma manivela.) 135, 136, 136, 5… isto deveria bastar… Diz-me o que estás vendo.

O DISCÍPULO – Que espectáculo admirável, mestre! Vejo imensos povoados, em agitação. Cobre-os um nevoeiro cinzento e nesse nevoeiro caminham alegremente homens e mulheres. Todos carregam embrulhos amarrados com barbantes de cor. Alguns apertam nos braços uma árvore coberta de geada. As mães levantam os filhos e mostram-lhes os brinquedos guardados em gaiolas de vidro. Os mais pobres compram um presente qualquer. Quem esperaria encontrar tanto amor em criaturas tão miseráveis?

O VELHO ASTRÓNOMO – Gosto dessa pequena raça; é corajosa. Há quinze mil anos terrestres que a venho observando. Ela procura construir uma felicidade durável. Todas as vezes que o edifício parece próximo de sua conclusão, desaba e sepulta milhões de terráqueos. Todas as vezes, sem desanimar, essas efêmeras recomeçam seus minúsculos esforços.

O DISCÍPULO – Lembro-me, mestre. Faz alguns dias, quando o senhor me dava suas primeiras lições, mostrou-me os terráqueos que procuravam destruir-se mutuamente. Era horroroso. Membros e cabeças arrebentavam. Gases mortíferos asfixiavam rebanhos inteiros. Seus povoados ardiam. Eu não podia compreender a fúria desses animálculos… Como é possível, mestre, que os mesmos seres revelem hoje tanta bondade? Pelo menos repararam suas ruínas?

O VELHO ASTRÓNOMO – Observa tu mesmo.

O DISCÍPULO, (deslocando suavemente a luneta) – A desordem ainda é grande. As casas estão reconstruídas, mas as trilhas das caravanas continuam desertas e os navios estão nos portos, inúteis. No oriente, à orla de um grande oceano, alguns insetos batalham. Por toda a parte estão paradas as fábricas, por toda a parte vejo milhares de seres desocupados que buscam penosamente com que se alimentar… Oh! mestre! Eis um espetáculo inacreditável. Nesse mesmo glóbulo de lama onde há terráqueos morrendo de fome, outros terráqueos acumulam e deixam apodrecer colheitas que parecem inúteis… Estarão loucos?

O VELHO ASTRÓNOMO – Realmente, esse é o mais louco de todos os planetas. Tal qual o estás vendo hoje, ou o vi, eu que o conheço bem, dez vezes, cem vezes, no decorrer de sua história. Após cada convulsão, são-lhe necessários quinze ou vinte anos terrestres para recuperar o equilíbrio. Depois ele goza trinta ou quarenta anos de paz, e recomeça.

O DISCÍPULO – Mas não compreenderá a vaidade desses passatempos cruéis?

O VELHO ASTRÓNOMO – Talvez comece a compreender. Eu desesperaria desses terráqueos se não verificasse que, desde que os observo, no fim de contas, progrediram um pouco. Vi-os fracos e miseráveis, refugiados no alto das florestas para escapar às feras, famintos. A pouco e pouco vi-os tornarem-se os senhores do planeta.

O DISCÍPULO (rindo) – Senhores de uma gota de lama…

O VELHO ASTRÓNOMO – Para eles ela é o mundo. Vencedores dos animais, investiram contra os elementos. Comparar sua ciência à nossa seria cômico. Apesar disso, para animálculos insignificantes, que vitória! E agora, têm a seu serviço tantas forças novas que se vêem em dificuldades com elas. Breve entrarão, como os siriatas, na era dos ócios inteligentes.

O DISCÍPULO – Compreendem eles sua história? Que pensam da aventura de sua raça?

O VELHO ASTRÓNOMO – Abre o auscultador inter-estelar.
O jovem siriata regula, não sem dificuldade, um aparelho de mil engrenagens. Primeiro “pega”, estouvadamente, Saturno, Vênus, depois acha a Terra. Vozes a principio confusas tornam-se claras.

AS VOZES TERRESTRES – Crise sem precedentes – Catástrofe – Feliz Natal – Boas Entradas – Desta vez, é o desastre definitivo – Mas não, meu querido, nada há de definitivo – Feliz Natal – Boas Entradas – Estou arruinado – Que leva aí? – Alguns presentes para as crianças – Feliz Natal – Boas Entradas -.

O DISCÍPULO – Como podem eles misturar assim votos festivos e lamentações?

O VELHO ASTRÓNOMO – Não têm razão? Não sabes tu mesmo que esse hemisfério, atualmente velado pela bruma e a neve, cobrir-se-á com as flores viçosas da primavera dentro de três ou quatro meses? A árvore negra e contorcida estará então como um ramalhete rosa ou branco, a relva viridente sairá da terra nua e a ordem da desordem. Assim marcha o mundo.

O DISCÍPULO – Mundo estranho e cruel.

O VELHO ASTRÓNOMO – Mas que não é destituído de beleza.

André Maurois

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