segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

OUTROS CONTOS

«Na Esteira do Parto», por Mia Couto.

«Na Esteira do Parto»
Conto de Mia Couto

75- «NA ESTEIRA DO PARTO»

O casal se chegou, em dupla obscuridade. Os dois pediam licença à penumbra. A mulher vinha mais dobrada que gruta na montanha. Estava grávida, quase em fim do estado. Chegados à claridade se reconheceu serem Diamantinho, o mais vizinho dos residentes, e sua redonda esposa, Tudinha Rosa, retorcida em dores e esgares. A pobre zululuava, em completas tonturas. Diamantinho, porém, parecia alheio à mulher.

O casal comparecia em casa de Ananias e Maria Cascatinha, os afáveis vizinhos. As duas donas ficaram na varanda, já uma esteira se estendendo para o que desse e saísse. Maria Cascatinha sorriu, timiúda: aquela era a sua mais pessoal esteira. Não era um simples objeto de assentar. Sobre aquela esteira haviam sido concebidos, de namoro e gemidos, seus todos filhos.

Diamantinho foi entrando, dando-se poiso e posição, mais instalado que convidado. Sentou-se, convocou os pedidos de uma bebida, serviu-se dos confortos. Ananias, o anfitrião, ainda lhe reparou a atenção: não ia ajudar a sua derreada esposa? O outro apenas sorria, saboreando prazeres desta e de outras vidas. Ananias insistiu:

— Você, Diamantinho, não divide o sofrimento familiar?

— Tem razão, Ananias, eu só penso da minha pança para cá. Na realmente, não valho as penas. Também já sou assim desde a barriga do meu pai.

Sobre a mulher, Diamantinho nem esboçou menção. Tudinha Rosa permanecia fora, em posição de estar deitada, descontorcida. Rejeitara, contudo, a esteira. Dar parto devia ser sobre a terra, a mãe das mães. Assim é o mandamento da tradição. Maria Cascatinha se agradecia por facto de a esteira ser dispensada. E enrolou-a num cuidadoso canto. Tudinha assentava agora sobre o mundo. Mas a carícia da terra de pouco lhe aliviava. A mulher seguia em dor: os olhos já ímpares, as tripas já triplas.

Na sala, o marido servia-se da bebida oferecida, vagueando os olhos em aplicações de preguiça. E continuava a fiar conversa, sempre na mais concisa inexatidão:

— Me sinto ferrujado, Ananias. Não é que eu seja mais velho que você. Eu nasci foi antes...

Ananias se enervava com a atitude do visitante, mais displicientífico que pangolim. Bem se sabe: partos são exclusivo assunto de mulheres. Diamantinho, no entanto, parecia por de mais alheado. E tanto mais quanto, lá fora, as coisas agora se complicavam. Tudinha desprogredia de nesga em vesga. Trocava tudo, até as rezas: o padre-maria e a ave-nossa. Em aflição, Ananias propôs ações e providências. Não seria melhor levar a grávida até à vila? O candidato a pai, sereno como rio em planície, não apresentava nenhum cuidado. Ordenou ao outro que sentasse, quieto. E estendia o copo a solicitar mais enchimentos. Tudo sem perplexidades.

A mulher, sua indiscutível esposa, se desdobrava em lancinantes gritos. Sobrinhas diversas se juntavam em roda, debruçadas sobre a sofrimentada mãe. O nervoso círculo das mulheres se podia ver pela janela. Até que Ananias foi chamado, em convocação de auxílio. Ananias sugeriu ao visitante que os dois acudissem mas o outro ripostou que estava a acabar uma bebida ainda mal começada. Que depois iria, já em tempo e disposição de proceder devidamente. Por enquanto, ele descascava o tempo, impassível como tronco de embondeiro.

Ananias rompeu a tradição, juntando-se ao parto que se demorava e às parteiras que se enervavam. Dúvidas gerais se começavam a espalhar. Todos, afinal, sabem: parto que se prolonga significa infidelidade da mulher. Para salvar a situação, a grávida deve admitir o pecado, divulgar o nome do autêntico pai da criança. Caso o contrário, então, o bebé fica retido no ventre, sem mês nem signo.

Então, no meio de gritos, suspiros e transpiros, Tudinha Rosa confessou ter trocado amores com Ananias, o próprio e presente anfitrião. Maria Cascatinha ficou em estado de nem-estar: seu marido, pai de alheio rebento? Porém, continuou seu trabalho de parteira, inalterável. Só os olhos dela se descomportavam, derramados. Sem palavra, ela findou a obra de desbarrigar a sua súbita adversária. No princípio, a confissão de Tudinha fora um simples murmúrio, não se ouvindo para além do recinto. Nos últimos esforços, porém, a grávida foi alardeando a consumada traição:

— Foi Ananias, foi ele!

Dentro, tudo se ouviu. Foi como se mundo abrisse rochas e rachas. Diamantinho, nesse repente, mudou da alvorada para o poente.

Saiu para a varanda com cara de marido, em ares de pareceres e pancadarias. Numa palavra: chocado e chocalhado. Descia de sujeito para fulano, de fulano para tipo. Nunca antes se vira tal metamorfase. Ele se enraivecia a ponto de lâminas e pólvoras. E gritou ameaças e impropérios: haveria Ananias de beijar os pés que ele pisasse. Entre os dois homens se procederam a estrondosas porradarias.

Enquanto socos e insultos se trocavam, o novo menino foi emigrando para a luz. Diamantinho e Ananias nem deram contas do nascimento. Tudinha e o recém-nascido foram levados para um interior quarto, em resguardo. Ananias, aviado de uns tantos sopapos, se recolheu no mesmo aposento da respectiva grávida. Ali ficou o tempo de muitas vidas. Na sala, Diamantinho soprou raivas, invocando feitiços e péssimos-olhados contra o dito Ananias. Depois, se derreou, infeliz como a casca sem a banana.

Maria Cascatinha, surgida de igual tristeza, veio a amparar o traído Diamantinho. Lhe assentou o braço sobre o ombro e lhe disse que lhe acompanhava, rumo a casa. Diz-se que Maria Cascatinha nunca mais voltou. Nem para buscar a sagrada esteira.

Mia Couto

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