sábado, 4 de janeiro de 2014

OUTROS CONTOS

«À Imagem e Semelhança», por Mario Benedetti

«À Imagem e Semelhança»
Conto por Mario Benedetti

56- «À IMAGEM E SEMELHANÇA» 

EIa era a última formiga da caravana, e não pôde seguir a mesma rota das suas colegas. Um torrãozinho de açúcar tinha escorregado do alto, quebrando-se em vários pedacinhos. Era um deles que lhe interceptava o passo. Por um momento a formiga ficou imóvel em cima do papel cor creme. Em seguida, seus pezinhos dianteiros sondaram o cubinho. Retrocedeu, depois parou. Pegando seus pés traseiros quase como ponto fixo de apoio, deu uma volta em redor de si mesma no sentido dos ponteiros do relógio. Só então se aproximou de novo. As patinhas dianteiras se esticaram, numa primeira tentativa de erguer o açúcar, mas fracassaram. Porém, o rápido movimento fez com que o torrão ficasse mais bem posicionado para a operação de carga. Dessa vez a formiga investiu lateralmente no seu objetivo, ergueu o cubinho e segurou-o acima de sua cabeça. Por um instante pareceu vacilar, logo reiniciou a viagem, com um passo mais lento que o que a trouxera. Suas colegas já estavam longe, fora do papel, perto do rodapé. A formiga se deteve, exatamente no ponto em que a superfície sobre a qual andava mudava de cor. Os seis pezinhos pisaram um N maiúsculo e escuro. Depois de uma momentânea parada, acabou por atravessá-lo. Agora a superfície era outra vez clara. De repente o torrão escorregou sobre o papel, quebrando-se em dois. A formiga fez então uma ronda que incluiu uma parada para inspecionar ambas as porções, e escolheu a maior. Carregou-a e avançou. No caminho, livre até esse instante, apareceu um toco esmagado. Contornou-o lentamente e, quando reapareceu do outro lado do toco, a superfície havia-se tornado novamente escura, porque nesse instante o trajeto da formiga ocupava o lugar de um A. Houve uma leve corrente de ar, como se alguém tivesse soprado. Formiga e carga rolaram. Agora o grão se desintegrou por completo. A formiga caiu sobre suas patas e empreendeu uma louca corrida em círculos. Em seguida pareceu tranquilizar-se. Caminhou em direção a um dos grãos de açúcar que anteriormente tinha formado parte do meio torrão, mas não o carregou. 

Quando reiniciou sua marcha não havia perdido o caminho. Passou rapidamente sobre um D escuro e, ao reingressar na zona clara, outro obstáculo a deteve. Era um pedacinho de alguma coisa, um pauzinho, por acaso três vezes maior do que ela mesma. Retrocedeu, avançou, tateou o pauzinho, ficou imóvel durante alguns segundos. Depois recomeçou a tarefa da carga. Por duas vezes o pauzinho escorregou, mas afinal ficou bem firme, como um tipo de haste inclinada. Ao passar sobre a área do segundo A escuro, o andar da formiga era quase triunfal. No entanto, não havia ainda avançado dois centímetros pela superfície clara do papel, quando alguma coisa ou alguém moveu aquela folha e a formiga rodou, mais ou menos curvada sobre si mesma. Só conseguiu reincorporar-se quando alcançou a madeira do assoalho, a cinco centímetros, estava o pauzinho. A formiga avançou até ele, desta vez com parcimónia, como medindo cada sêxtuplo passo. Mesmo assim, chegou até seu objetivo, mas, quando esticava as patas dianteiras, novamente correu aquele ar e o pauzinho rodou até deter-se dez centímetros mais longe, caindo numa das fendas que separavam as tábuas do assoalho. Um dos extremos, porém, emergia para cima. Para a formiga, tal posição representou de certa maneira uma facilidade, já que permitiu fazer uma volta para tentar a operação de um ângulo mais favorável. Meio minuto depois, a tarefa estava cumprida. A carga, outra vez alçada, estava agora numa posição mais próxima da estrita horizontalidade. A formiga reiniciou a marcha, sem desviar-se jamais do seu caminho em direção ao rodapé. 

As outras formigas, com seus respectivos suprimentos, haviam desaparecido por algum invisível buraco. Sobre a madeira, a formiga avançava mais lentamente do que sobre o papel. Um nó bastante rugoso da tábua significou uma demora de mais um minuto. O pauzinho esteve a ponto de cair, mas um certo vaivém do corpo da formiga segurou sua estabilidade. Dois centímetros mais e um golpe ressoou. Um golpe aparentemente dado sobre o assoalho. Exatamente como as outras, essa tábua vibrou e a formiga deu um pulinho involuntário, durante o qual perdeu sua carga. O pauzinho ficou atravessado na tábua contígua. O trabalho seguinte foi atravessar a fenda, que já nesse ponto era bastante profunda. A formiga aproximou-se da beira, fez um leve avanço em sentido de alerta, mas, mesmo assim, precipitou-se naquele abismo de centímetro e meio. Demorou vários segundos para refazer-se, escalar o lado oposto da fenda e reaparecer na superfície da tábua seguinte. Ali estava o pauzinho. A formiga permaneceu um momentinho junto dele, sem outro movimento a não ser um intermitente tremor das patas dianteiras. Depois levou a termo sua quinta operação de carga. O pauzinho ficou horizontal, porém um pouco oblíquo em relação ao corpo da formiga. Ela fez um movimento brusco e dessa forma a carga ficou mais bem acomodada. A meio metro estava o rodapé. A formiga avançou na direção anterior, que, nesse espaço, por coincidência, se correspondia com a fenda. Agora o passo era rápido, e o pauzinho não parecia correr nenhum risco de cair. A dois centímetros de sua meta, a formiga se deteve, novamente alerta. 

Então, do alto, apareceu um polegar, um grosso dedo humano,
e conscientemente esmagou carga e formiga.

Mario Benedetti

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