sábado, 30 de agosto de 2014

OUTROS CONTOS

«A Doida e os Miúdos», por Soeiro Pereira Gomes.

«A Doida e os Miúdos»
Soeiro Pereira Gomes, In Esteiros

252- «A DOIDA E OS MIÚDOS»

Certa noite, Sagui acordou em sobressalto, ao barulho de alguém que resmungava. Mirrou-se mais contra as pedras, tapou a cabeça com a manta de retalhos. Mas a voz trespassava a roupa, tanto como os baques do coração sob a caverna do peito. «Quem seria, àquela hora?... Talvez ladrão que descobrira o esconderijo da fruta, ou espião mandado pelo senhor Castro».
A voz, aguda e áspera, parecia de mulher. «Se calhar era algum dos companheiros disfarçado, por brincadeira... » Espreitou por um rasgão da manta.

A fraca claridade da lua definia um vulto escuro, estendido sobre monte de caliça, como que à espreita também. Sagui sentiu saudades da palhota da vinha em que dantes dormia, e onde nada mais chegava que latidos de cães.

«...E se aquele vulto fosse de cão raivoso?» Um calafrio gelou-lhe o corpo e as pedras da cama. «Não. A voz era de mulher.» Ouvia agora gemidos abafados e palavras sem nexo... Depois, o silêncio pesou-lhe nas pálpebras. Fechou os olhos, esquecido; mas logo voltou a fixá-los no vulto imóvel. Por fim, cansado, adormeceu profundamente.

Quando acordou, o dia dormitava ainda, e o vulto também. Aproximou-se dele. Era a Doida. Ao primeiro impulso pensou em fugir, antes que ela tivesse algum daqueles ataques em que corria, à pedrada e aos gritos, os garotos da rua. Mas viu-lhe o rosto pálido, empastado de sangue. Lembrou-se da mulher que veio na lancha, chorosa, a engalhar o menino morto – e apiedou-se.

Levemente, estancou-lhe a ferida com um trapo molhado. Ela abriu para ele os olhos tontos, susteve-o nos braços, chamou-lhe meu menino. Sagui quis libertar-se daquelas mãos frias que o afagavam; mas, por medo, deixou-se embalar como criança de colo, fitando a Doida, de esguelha. Pelo decote da blusa, via-lhe o seio muito branco e uma nódoa negra no pescoço.

– Estás tão crescido, meu menino...

O sorriso dela era um esgar de amargura. Sagui esboçou uma carícia que se perdeu no ar, e voltou mais a cara para o lado. Os olhos, porém, continuavam hipnotizados pela nesga do seio. Contra vontade, a mão prendeu-se também no decote, trémula e suplicante... A Doida beijou-o. E ele esqueceu-se que era menino ao colo de mãe...

No dia seguinte, Sagui não vendeu fruta. Mas os companheiros andaram pelas portas, como de costume.

– Quer laranjas? Uma dúzia dez tostões.

– Se calhar são roubadas...

Gaitinhas corava sempre, enquanto que os companheiros protestavam:

– Nã sou ladrão. Fui comprá-las às Areias.

Guedelhas palmilhava três quilómetros de estrada, para vender a fruta toda noutra vila, de manhã. Depois, ia treinar-se com bolas de trapos, crente de que em breve lhe dariam admissão no clube desportivo. Os outros acompanhavam-no, ou então jogavam o chinquilho no Mirante.

Foi lá que Sagui lhes falou, embaraçado, com olheiras profundas no rosto.

– Hoje nã vendi nada...

– Tás doente, pá?

– Não. Andaram uns gajos a ver a capela.

O bando assustou-se.

– Disseram-te alguma coisa?

– Perguntaram só se eu morava ali. O melhor é arrecadar as laranjas noutro sítio.

– Adonde?

– No telhal do Zé Vicente.

– Tás parvo. Qualquer dia vão pra lá arranjar o forno...

Gineto pôs termo à discussão. – Mudam-se logo à noite, pronto.

– É melhor de dia – contestou Sagui. – Se os gajos desconfiaram, são capazes de lá aparecer logo, outra vez.

Gineto começou a duvidar das palavras atabalhoadas do pequeno companheiro.

«Outra história» – pensou.

Seguiu-lhe as passadas toda a tarde. Viu-o entrar na capela com embrulhos misteriosos, e depois correr as ruas como que à procura de alguém. Entusiasmado pela perseguição, escondeu-se atrás dumas pedras, entre ruínas, e, enquanto esperava, desejou ser polícia, mais do que ladrão de fruta. Um polícia assim como o «Rei dos Cow-Boys», que fazia justiça por
suas mãos, nas fitas de cinema.

Mas Sagui apareceu com a Doida, que ria e gesticulava. Da boca do Gineto quase se desprendeu um assobio de pasmo, tão longe estava daquele desfecho.

«Ai o gajo!... Misturado com a Doida sem dizer nada aos amigos...». Riu-se.

«E a comer com ela as laranjas da quadrilha...».

Não sossegou enquanto não falou ao Sagui.

– Atão tu, grande impostor, inganchas-te na Doida e vens pra cá enganar a gente.

– Eu?!

– Nã te faças de novas, que eu vi vocês dois, na capela.

Sagui embatucou por momentos.

– Tive medo que tu lhe fizesses mal... A gaja até faz pena. Olha que às vezes nem parece que é maluca.

– Eu só quero é trincar também. Já sabes... – declarou Gineto, impaciente.

– Mas não digas aos outros...

– Digo nada.

Uma semana depois, todos os componentes da quadrilha gastavam os lucros do negócio
em prendas para a Doida.

Soeiro Pereira Gomes

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