sexta-feira, 14 de novembro de 2014

OUTROS CONTOS

«Uma Consulta», por Júlio Dinis.
«Uma Consulta»
O Médico e a Paciente/ Jan Steen

327- «UMA CONSULTA»

 – Dá licença?

– Entre quem é.

– Muito bons dias

– Olé,
Por aqui, minha senhora?
Desculpe vossa excelência
Se a não conhecia agora.

– Sem mais… À sua ciência
Recorrer venho. 

– Deveras?
(Senhor me dê paciência!
Nunca tu cá me vieras)
Então que temos? 

– Padeço

– Sim? Porém de que doença?
Essa é boa! Acaso pensa
Que eu, porventura a conheço?

– Ah! Não conhece?

– Quem dera!

 – Então não o consultava.

– (E eu que muito estimava)
Mas diga, então? 

– Eu lhe conto…
Oiça bem. Não perca um ponto.

 – Nem um ponto hei de perder

 – Ai doutor, doutor, meu peito…

– É do peito que padece?
Quem havia de o dizer?

 – E Jesus doutor parece
Que me quer interromper?!
Não era a isso sujeito

 – Nem o tornarei a ser…
Vamos lá

 – Ora eu começo…
Atenção é o que lhe peço;
Diga-me: que lhe pareço?
Não me acha muito abatida?

 – Assim, assim; mas às vezes
A vista pode enganar.

 – Não, não. Pode acreditar
Que há já um bom par de meses
É um tormento esta vida.

 – Então o que é que sente?

– O que sinto? Ora eu lhe digo:
O doutor é meu amigo?

 – Ó! Senhora… 

– E é prudente?
Oiça pois: eu dantes era
Fera e rija, que era um gosto!
Ou em Dezembro ou Agosto
Correr o mundo pudera,
Sem no fim me achar cansada

– E hoje? 

– Não lhe digo nada
Nem comigo posso já.

– Mau é! 

– Quer saber doutor?
Só para vir até cá
Que tormentos não passei!

 – Diga-me, se faz favor,
Que idade tem?

 – Eu nem sei…
Eu sou mais nova três anos
Que o reitor da freguesia

– (É grande consolação!)

– Tenho ainda outros dois manos
Que mais velhos do que eu são
Porém, como eu lhe dizia
Doutor… 

– Que mais sente então?

– A vista sinto estragada,
Até já me custa a ler,
De mais a mais sou nervosa.
Isso não lhe digo nada!
Olhe estou sempre a tremer.

– Faço ideia 

– Andava ansiosa
Por consultar o doutor;
Eu tenho em si muita fé

 – Lisonjeia-me 

– Outra queixa…
Que eu sofro também 

– Qual é?

– É dum forte mal de dentes.
Todos me caiem 

– Bem, bem

– E os que restam, mal assentes,
Qualquer dia vão também

– É provável 

– Ai doutor!
Que cruel enfermidade!
Não acha? 

– Acho e o pior…

– Há de curar-me, não há de?

– E então não sente mais nada?

– Nada… ai, sim, tem-me parecido,
Porém, talvez me iludisse…

– Diga 

– A semana passada
Como ao espelho me visse…
Pareceu-me ter percebido…

– O quê? 

– Que a pele não era
Como dantes, tão macia

– E então?

 – Quem visse dissera
Que eram rugas 

– (Eu dizia)
E é isso que padece?

 – Ainda pouco lhe parece
Doutor? 

– Por certo que não.

– Então que doença tenho?

– Em sabê-lo muito empenho
Sempre tem? 

– Eu? Pois então!
Para isso o procurei.

 – Bem, então sempre lho digo
Mas julgo não ficarei
Por isto, seu inimigo.

– Ó meu doutor! 

– O seu mal
É, senhora, de algum perigo.

– Ai Jesus! 

– E muita gente
Dele morre 

– Ó Santo Deus!
Por quem é não diga tal!
E… morre-se, de repente?

– Conforme 

– Pecados meus!
E então é isso que pensa?
Porém ainda me não disse
O nome dessa doença.
E eu sempre o quero saber…

– O nome? 

– Sim 

– É… velhice!

 – E o remédio? 

– Morrer?

Júlio Dinis

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma consulta com lição de português à borla para muitos que têm a mania que escrevem bem. Um texto riquíssimo em linguagem e pontuação, e que toda a gente percebe. Grande Júlio Dinis!

Obrigado ao blogue!