segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

OUTROS CONTOS

«Silêncio», por Edgar Alan Poe.
«Silêncio»
Conto de Edgar Alan Poe

393- «SILÊNCIO»

Escuta - disse o demónio, pousando a mão sobre a minha cabeça. - O país de que te falo é um país lúgubre, na Líbia, às margens do rio Zaire. E ali não há repouso nem silêncio. As águas do rio, amarelas e insalubres, não correm para o mar, mas palpitam sempre sob o olhar ardente do Sol, com um movimento convulsivo. De cada lado do rio, sobre as margens lodosas, estende-se ao longe um deserto sombrio de gigantescos nenúfares, que suspiram na solidão, erguendo para o céu os longos pescoços espectrais e meneando tristemente as cabeças sempiternas. E do meio deles sai um sussurro confuso, semelhante ao murmúrio de uma torrente subterrânea. E os nenúfares, voltados uns para os outros, suspiram na solidão.

E o seu império tem por limite uma floresta alta, cerrada, medonha! Lá, - como as vagas em torno das Híbridas, pequenos arbustos agitam-se sem repouso, contudo não há vento no céu! - e as grandes árvores primitivas oscilam continuamente, com um estrépito enorme. E dos seus cumes elevados filtra, gota a gota, um orvalho eterno. A seus pés contorcem-se num sono agitado, flores desconhecidas - venenosas. E por cima das suas cabeças, com um ruge-ruge retumbante, precipitam-se as nuvens negras a caminho do ocidente, até rolarem as cataratas para trás da muralha abrasada do horizonte. E nas margens do rio Zaire há repouso nem silêncio.

Era noite e a chuva caía enquanto caía, era água mas quando chegava ao chão era sangue! E eu estava na planície lodosa, por entre os nenúfares, vendo a chuva que caía sobre mim. E os nenúfares voltados uns para os outros suspira na solenidade da sua desolação.

De repente apareceu a lua através do nevoeiro fúnebre vinha toda carmesim! e o meu olhar caiu sobre um rochedo enorme, sombrio, que se erguia a borda do Zaire, reflectindo a claridade da lua; era um rochedo sombrio sinistro de uma altura descomunal!

Sobre o seu cume estavam gravadas algumas letras. Caminhei através dos pântanos de nenúfares, até a margem para ler as letras gravadas na pedra; mas não pude decifrá-las. Ia voltar quando a lua brilhou mais viva e mais vermelha; olhando outra vez para o rochedo distingui só caracteres. E esses caracteres diziam: desolação.

Levantei os olhos; na crista do rochedo estava um homem de figura majestosa. Pendia-lhe dos ombros a antiga toga romana, cobrindo-se até aos pés. Os contornos da sua pessoa não se distinguiam, mas as feições eram as da divindade porque brilhavam através da escuridão da noite a do nevoeiro. Tinha a fronte alta e pensativa, os olhos profundos e melancólicos. Nas rugas do semblante, liam-se as legendas da desgraça e da fadiga o aborrecimento da humanidade e o amor da solidão. Escondi-me no meio dos nenúfares para ver o que aquele homem fazia ali.

E o homem assentou-se no rochedo, deixou pender a cabeça sobre a mão e espraiou a vista pela soledade, contemplou os arbustos buliçosos e as grandes árvores primitivas; depois, ergueu os olhos para a céu a para a lua carmesim. Eu observava as acções do homem escondido no meio dos nenúfares e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.

Então o homem desviou os olhos do céu para o rio lúgubre para as águas amarelas do Zaire, e para as legiões sinistras dos nenúfares; escutou-lhes os suspiros melancólicos e as oscilações murmurantes E eu o espreitava sempre, do meu esconderijo e o homem tremia na solidão.
Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.

Embrenhei-me na profundezas longínquas do pântano, caminhei sobre e as flores dos nenúfares e chamei os hipopótamos que habitavam a espessura do bosque. E os hipopótamos ouviram o meu chamado e vieram os Behemothes até o pé do rochedo e soltaram um rugido medonho. E eu, escondido por entre os nenúfares, espreitava os movimentos do homem e o homem tremia na solidão. Todavia a noite avançava e ele continuava assentado sobre o rochedo.

Então invoquei os elementos e uma tempestade horrorosa sobreveio. E o céu tornou-se lívido pela violência da tempestade e a chuva caía em torrente sobre a cabeça do homem e as ondas do rio transbordavam e o rio espumava enfurecido e os nenúfares suspiravam com mais força, e a floresta debatia-se com o vento, e o trovão ribombava e os raios flamejavam, e o rochedo estremecia.

Irritei-me e amaldiçoei a tempestade, o rio e os nenúfares, o vento e as floresta, o céu e o trovão. E na minha maldição os elementos emudeceram e a lua parou na sua carreira, e o trovão expirou e o raio deixou de faiscar, e as nuvens ficaram imóveis e as águas tornaram a repousar no seu imenso leito, e as árvores cessaram de se agitar, e os nenúfares não suspiraram mais e na floresta não se tornou a ouvir o mínimo murmúrio, nem a sombra de um som no vasto deserto sem limites. Olhei para os caracteres escritos no rochedo e os caracteres diziam agora: Silêncio.

Volvi outra vez os olhos para o homem, e o seu rosto estava pálido de terror. De repente, levantou a cabeça, ergueu-se sobre o rochedo e pôs o ouvido à escuta. Mas não se ouviu nem uma voz no deserto ilimitado. E os caracteres gravados no rochedo diziam sempre: Silêncio. E o homem estremeceu e fugiu e para tão longe fugiu que jamais o tornei a ver.

Ora, os livros dos magos, os melancólicos livros dos magos encerram belos contos, esplêndidas histórias do céu, da terra e do mar poderosos; dos génios que têm reinado sobre a terra, sobre o mar e sobre o céu sublime. Há muita ciência na palavra das Sibilas. E das florestas sombrias de Dodona saíam outrora oráculos profundos.

Mas jamais se ouviu uma história tão espantosa como esta! Foi o demónio que ma contou, assentado a um lado, na solidão do túmulo. Quando acabou de falar, desatou a rir e como não pudesse rir com ele, amaldiçoou-me. Então o lince, que vive eternamente no túmulo, saiu do seu esconderijo e veio deitar-se aos pés do demónio, olhando-o fixamente nas pupilas.

Edgar Alan Poe

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