domingo, 24 de maio de 2015

OUTROS CONTOS

«A Fronteira de Asfalto», por José Luandino Vieira.

(Em 24 de Maio de 2006, foi-lhe atribuído o «Prémio Camões» que viria a recusar, alegando «motivos íntimos e pessoais». Mais tarde soube-se que não aceitara o prémio por se considerar um escritor morto e, como tal, entendia que o mesmo deveria ser entregue a alguém que continuasse a produzir. Ainda assim publicou dois novos livros no ano de 2006.)
Poet'anarquista
«A Fronteira de Asfalto»
Conto de Luandino Vieira

513- «A FRONTEIRA DE ASFALTO»

A menina das tranças loiras olhou para ele, sorriu e estendeu a mão.

 – Combinado?

– Combinado – Disse ele.

Riram os dois e continuaram a a andar, pisando as flores violeta que caiam das árvores.

– Neve cor de violeta – disse ele.

– Mas tu nunca viste neve…

– Pois não ,mas creio que cai assim…

– É branca, muito branca…

– Como tu!

E um sorriso triste aflorou medrosamente aos lábios dele.

– Ricardo! Também há neve cinzenta… cinzenta escura.

– Lembra-te da nossa combinação. Não mais…

– Sim, não mais clara da tua cor. Mas quem falou primeiro fostes tu.

Ao chegarem a ponta do passeio ambos fizeram meia volta e vieram pelo mesmo caminho.

A menina tinha tranças loiras e laços vermelhos.

– Marina, lembras-te da nossa infância? – e voltou-se subitamente para ela.

Olhou-a nos olhos. A menina baixou olhar para a biqueira dos sapatos pretos e disse:

– Quando tu fazias carros com rodas de patins e me empurravas a volta do bairro?

– Sim lembro-me…

A pergunta que o persegui há meses saiu, finalmente.

– E tu achas que esta tudo como então? Como quando brincávamos a barra do lenço ou as escondidas? Quando eu era o teu amigo Ricardo, um pretinho muito limpo e educado, no dizer da tua mãe? Achas…

E com as própria palavras ia-se excitando. Os olhos brilhavam e o cérebro ficava vazio, porque tudo o que acumulara saía numa torrente de palavras.

– Que eu posso continuar a ser teu amigo…

– Ricardo!

– Que a minha presença na tua casa…no quintal da tua casa, poucas vezes dentro dela ! não estragará os planos da tua família a respeito das tuas relações…

Estava a ser cruel. Os olhos azuis de Marina não lhe diziam nada. Mas estava a ser cruel.
O som da própria voz fê-lo ver isso. Calou-se subitamente.

– Desculpa – disse por fim.

Virou os olhos para o seu mundo. Do outro la da rua asfaltada não havia passeio. Nem árvores de flores violeta. A terra era vermelha, com piteiras e casas de pau-a-pique à sombra de mulembas. As ruas de areia eram sinuosas. Uma ténue nuvem de poeira que o vento levantava cobria tudo. A casa dele ficava ao fundo. Via-se do sítio donde estava. Amarela. Duas portas, três janelas. Um cercado de aduelas e arcos de barril.

– Ricardo – disse a menina das tranças loiras – tu dissestes isso para quê? Alguma vez te disse que não era tua amiga? Alguma vez que se te abandonei ? Nem os comentários da minhas colegas, nem os conselhos velados dos professores, nem a família que se tem voltado contra mim…

– Está bem. Desculpa. sabes, isto fica dentro de nós. Tem de sair em qualquer altura.

E lembrava-se do tempo em que não havia perguntas, respostas, explicações. Quando ainda não havia a fronteira de asfalto.

– Bons tempos – encontrou-se a dizer.

– A minha mãe era a tua lavadeira. Eu era o filho da lavadeira. Servia de palhaço a menina Nina. A menina Nina dos caracóis loiros. Não era assim que te chamavam? – Gritou ele.

Marina fugiu para casa. Ele ficou com os olhos marejados, as mãos ferozmente fechadas e as flores violeta caindo-lhe na carapinha negra.

Depois, com passos decididos, atravessou a rua, pisando com raiva a areia vermelha e sumiu no emaranhado do seu mundo. Para trás ficava a ilusão.

Marina viu-o afastar-se. Amigos desde pequenos. Ele era o filho da lavadeira que distraía a menina Nina. Depois a escola. ambos na mesma escola ,na mesma classe. A grande amizade a nascer.

Fugiu para o quarto. Bateu com a porta. Em volta o aspecto luminoso, sorridente, o ar feliz, o calor suave das paredes cor-de-rosa. E lá estava sobre a mesa de estudo «… Marina e Ricardo – amigos para sempre». Os pedaços da fotografia voaram e estenderam-se pelo chão. Atirou-se para cima da cama e ficou de costas a olhar o tecto. Era ainda o mesmo candeeiro. Desenhos de Walt Disney. Os desenhos iam-se diluindo nos olhos marejados. E tudo se cobriu de névoa. Ricardo brincava com ela.

Ela corria feliz, o vestido pelos joelhos, e os caracóis loiros brilhavam. Ricardo tinha uns olhos grandes. E subitamente ficou a pensar no mundo para lá da rua asfaltada. E reviu as casas de pau-a pique onde viviam famílias numerosas. Num quarto como o dela dormiam os quatro irmãos de Ricardo…Porquê? Porque é que ela não podia continuar a ser amiga dele, como fora em criança? Porque é que agora era diferente?

– Marina, preciso falar-te.

A mãe entrara e acariciava os cabelos loiros da filha.

– Marina, já não és nenhuma criança para que não compreendas que a tua amizade por esse… teu amigo Ricardo não pode continuar. Isso é muito bonito em criança. Duas crianças. Mas agora … um preto é um preto…

As minhas amigas todas falam da minha negligência na tua educação. Que te deixei…Bem sabes que não é por mim!

– Está bem, eu faço o que tu quiseres. Mas agora deixa-me só.

O coração vazio. Ricardo não era mais que uma recordação longínqua. Uma recordação ligada a uns pedaços de fotografia que voavam pelo pavimento.

– Deixas de ir com ele para o liceu, de vires com ele do liceu, de estudares com ele…

– Está bem mãe.

E virou a cabeça para a janela. Ao longe percebia-se a mancha escura das casas de zinco e das mulembas. Isso trouxe-lhe novamente Ricardo. Virou-se subitamente para a mãe. Os olhos brilhantes, os lábios arrogantemente apertados.

– Está bem , está bem, ouviu? – gritou ela.

Depois mergulhando a cara na colcha chorou.

Na noite de luar, Ricardo, debaixo da mulemba, recordava. Os  e a barra do lenço. Os carros de patins. E sentiu necessidade imperiosa de falar-lhe. Acostumara-se demasiado a ela. Todos aqueles anos de camaradagem, de estudo em comum.

Deu por si a atravessar a fronteira. Os sapatos de borracha rangiam no asfalto. A lua punha uma cor crua em tudo. Luz na janela. saltou o pequeno muro. Folhas secas rangeram debaixo dos seus pés. O “Toni” rosnou na casota. Avançou devagar até a varanda, subiu o rodapé e bateu com cuidado.

– Quem é? – a voz de Marina veio de dentro, íntima e assustada.

– Ricardo!

– Ricardo? Que queres?

– Falar contigo. Quero que me expliques o que se passa.

– Não posso. Estou a estudar. Vai-te embora. Amanhã na paragem do maximbombo. Vou mais cedo…

– Não. Precisa de ser hoje. Preciso de saber tudo já.

De dentro veio a resposta muda de Marina. A luz apagou-se. Ouvia-se chorar no escuro. Ricardo voltou-se lentamente. Passou as mãos nervosas pelo cabelo. E, subitamente o facho da lanterna do polícia caqui bateu-lhe na cara.

– Alto aí! O qu’ é que estás a fazer?

Ricardo sentiu medo. O medo do negro pelo polícia. Dum salto atingiu o quintal.
as folhas secas cederam e ele escorregou. O “Toni” ladrou.

Ricardo levantou-se e correu para o muro. O polícia correu também. Ricardo saltou.

– Pára, pára! – gritou o polícia.

Ricardo não parou. Saltou o muro. Bateu no passeio com a violência abafada pelos sapatos de borracha. Mas os pés escorregaram quando fazia o salto para atravessar a rua. Caiu e a cabeça bateu violentamente de encontro a aresta do passeio.

Luzes acenderam-se em todas as janelas. O “Toni” ladrava. Na noite ficou o grito loiro da menina de tranças.

Estava um luar azul de aço. A lua cruel mostrava-se bem. De pé o polícia caqui desnudava com a luz da lanterna o corpo caído. Ricardo , estendido do lado de cá da fronteira , sobre as flores violeta das árvores do passeio.

Ao fundo, cajueiros curvados sobre casas de pau-a-pique estendem a sombra retorcida na sua direcção.

Luandino Vieira

1 comentário:

Anónimo disse...

uma bonita história do preto luandino