terça-feira, 5 de maio de 2015

OUTROS CONTOS

«Maio Moço», por Miguel Torga.

«Maio Moço»
Conto de Miguel Torga

496- «MAIO MOÇO»

Só quem já passou por elas ou tem imaginação é que pode fazer ideia do desconsolo que era a vida do Gonçalo em Dornelo, órfão de pai e mãe, a ser criado por esmola em casa do Anastácio. Fome, pancadaria, e o dia inteiro atrás do gado na serra como um escravo. Desprezível e sem uma letra, metia dó. Valia-lhe um pífaro de barro, que trocara por um pião de buxo, que fizera à podoa, onde contava às fragas a sua melancolia de criança infeliz.

Enquanto as ovelhas, que conhecia uma a uma como se fossem pessoas, iam tosando o panasco das lombas, soltava ele as suas queixas, empoleirado nos lapedos. Lamentava-se dum abandono humano que lhe doía no coração, vazio duma palavra de carinho ou de um gesto de ternura.

Embora recebesse dos montes, sempre abertos e atentos às suas mágoas, a dádiva duma liberdade difusa, era do próprio bafo da aldeia que precisava, quente e ritmado a bater-lhe na pele.

Esse calor, porém, estava Dornelo longe de lho dar. A solidão do pastor entranhara-se de tal modo no quotidiano da povoação, que o viam entrar à noite e sair de manhã como se ele fosse um borrego do próprio rebanho que guardava. E o seu nome nunca ocorria a ninguém, quando a arraia miúda tinha lugar de honra à mesa da gente grande.

Todos os rapazes da idade do Gonçalo guardavam na memória uma aventura. Um fora de profeta na festa, outro vestira opa e segurara as borlas do pendão, outro pegara na caldeirinha ao dia de Páscoa. Ele, nada. As grandes horas de Dornelo passavam-se à margem da sua vida, rota e desamparada. Nem sequer fizera a primeira comunhão. Sem licença de ir à doutrina, enquanto os mais, de roupa nova e laço branco na manga do casaco, pisavam solenemente as lajes da capela, calcorreava o desgraçado as veredas do Cabril.

Assim decorria tão negregada existência, quando o destino compassivo lhe modificou a catadura de uma maneira inesperada e bonita. Fria já de si, a Montanha naquele ano encaramelara de vez. Punha-se o nariz fora da porta, e as espadanas do ribeiro eram lâminas de gelo a trespassar-nos. Mas que remédio senão levar o gado à serra, a pastar o sincelo!

Ora os nevões, o nevoeiro e o codo são a bem-aventurança dos lobos. Num desses dias, em que só havia brancura de morte por todos os lados, de repente, surgido não sabia de onde, o Gonçalo deu com os olhos num a abocar-lhe uma cordeira.

O cão de guarda ficara-se na povoação, atrás duma cadela na cainça. Alentado e de poucas festas, era ele que dava paz e segurança ao rebanho, numa vigilância guerreira, simbolicamente representada na coleira eriçada de pregos. Por isso, sem aquela protecção, o mesmo terror que tresmalhou as reses, siderou o pastor. Garanho de frio e de medo, o pobre coitado mal podia segurar no lódão. 

Bambeavam-lhe as pernas, e o coiro da cabeça queria despegar-se-lhe dos ossos. Mas, subitamente, por mistérios insondáveis da natureza humana, ergueu-se-lhe dentro do corpo acobardado uma onda de coragem. E arremeteu com tal fúria sobre o ladrão, que parecia uma fera a avançar sobre a outra.

- Grande como! - gritou, a dar solidariedade aos berros da ovelha agadanhada, enquanto levantava o varapau.

Filado à cernelha da churra, o salteador negava-se a largar a bocada. Ágil e teimoso, tentava arrastar a presa e furtar-se aos golpes. O gosto doce do sangue exacerbava-lhe a fome e assanhava-lhe a teimosia. Tanto montava as bordoadas choverem, como nada.

- Cabrão! Cada vez mais desesperado, o cacete ia e vinha, numa raiva animada de minuto a minuto pela insólita duração da violência.

- Larápio dos infernos! Impávidos, os montes, numa neutralidade polar, assistiam à luta. Nem os comoviam os balidos lancinantes da borrega, nem a angústia do garoto a lutar à sobreposse.

- Não a levas, nem que te danes!

O ímpeto inicial, fruto da espontânea reacção a qualquer desafio que nos é feito, dera lugar a uma serena e voluntariosa consciência protectora. Rei dos animais pela razão, o pastor perdera o sentido do perigo e o terror dele. Agora era um inexorável fiscal da ordem a impedir desmandos.

- Excomungado! Num salto imprevisto, o inimigo arredara-se de uma estadulhada que parecia certeira, e o cajado batera em falso num fragão.

- E esta?

Desiludido com a perícia da emenda, que foi rápida e lhe assentou em cheio no lombo ‘ o lobo hesitou. Mas quando se resignou a abandonar a vítima e se dispôs a fugir, o Gonçalo cortou-lhe a retirada.

- Tem paciência: agora ficas aqui! Disse, e redobrou a força das mocadas.

- Não pões os queixos em mais nenhuma! Derreado, o lobo arreganhava os dentes inutilmente. Com mais três ou quatro amacios, estava liquidado, com a espinha quebrada, caído aos pés do vencedor.

Calhou ser dia de feira em S. Lourenço, e o Nicolau almocreve, que regressava a casa, dar de chofre com aquele espectáculo: o catraio, pálido de emoção e possuído ainda da fúria vingadora, a migar os ossos do agressor; este, esquadrilhado, a babar a neve do sangue da agonia.

- Com trinta milheiros de diabos! Tu onde arranjaste tanta coragem, rapaz?!

O pequeno limpou o ranho do nariz.

- Filho de quem o pariu! Olhe o que ele fez!

Sem vaidade, singelamente, mostrava a mola que o empurrara - a ovelha morta. O Nicolau, e logo a seguir Dornelo, é que não viam no feito senão a valentia na sua pureza original. Quantos e quantos, em semelhante situação, não teriam dado às de vila-diogo!

E a vida do Gonçalo transfigurou-se. Relatada a façanha, e provada com a presença da bicheza, que percorreu o povoado em procissão, um outro sol iluminou os seus gestos, as suas palavras, a sua solidão. Todos passaram a dar-lhe a dignidade que lhe negavam até ali. Os grandes queriam protegê-lo; os pequenos imitá-lo. A mestra protestou que era uma barbaridade deixá-lo analfabeto; o abade declarou que Ia ensinar-lhe o catecismo; a ração aparecia-lhe dobrada no bornal.

Começara entretanto a primavera a despontar da terra e dos céus. Não havia outeiro encardido que se não cobrisse de lírios, torgas e tojos em aleluia. O rebanho, farto, anediava. E a flauta de barro trinava de manhã à noite nos lábios do pastor, curados do cieiro.

- Muito bem toca o demónio do garoto! Herói do povo, aconchegavam-no orgulhosamente à fibra mais generosa do coração. Inventavam-lhe façanhas antigas, ditos cheios de graça, habilidades que nunca tivera. Do deserto monótono de outrora ia surgindo uma biografia rica, divertida, recheada de peripécias e de sentido. Pareciam abelhas a encher um favo. Ninguém queria deixar de colaborar na gesta redentora.

- Uma vez vi-o eu, por causa dum ninho, subir ao alto do negrilho, que até a gente se arrepiava!

Dita, a mentira mudava logo de sinal aos olhos do próprio mentiroso. Transformava-se numa verdade evidente, óbolo de boa vontade deposto aos pés do ídolo, passava a fazer parte da sua intangível realidade.

- Tinha ele dez anos, quando deu tamanha capilota à minha burra! Saltou-lhe para cima do lombo, credo, santo nome de Jesus!

Pouco a pouco, iam tornando sobrenatural tudo quanto fora medíocre na vida do pequeno. Uma glória sem raízes parecia-lhes inverosímil. E doiravam-lhe o passado. Forjavam-lhe a perfumada crónica dos que merecem, por qualquer acção grata aos semelhantes, que se lhes estenda aos pés, desde o berço à mortalha, um tapete de luz.

Mas nada disso os satisfazia ainda. E as próprias serras resolveram então propor um remate alegórico àquela azáfama nobilitadora. Cada vez mais floridas, metiam pelos olhos dentro uma apoteose de cor. 

Urdido o mito, que melhor remate do que nimbar a divindade da alegria conivente da natureza?

E o Gonçalo até santas mulheres teve ao serviço da sua causa.

- Para onde levas o gado, hoje? - perguntou-lhe à saída de casa a filha do patrão, a Sílvia, a olhá-lo numa carícia de Madalena arrependida.

- Para o Vimieiro.

- Calha bem...

- Porquê?

- Isso é cá um segredo... 

Na sua inocência, nem pensou no dia em que estavam, que era o primeiro de Maio, nem adivinhou a fundura da intenção. Só à tarde, quando encantava os penedos a arrancar melodias da Wina, é que viu um bando de raparigas surgir atrás (Num outeiro, como se fossem atraídas pelo som dos seus trilos. 

Carregadas de flores de giesta, rodearam-no e puseram-se a adorná-lo como um deus.

Submisso, deixou-se vestir e coroar por aquelas mãos carinhosas e devotadas do oiro que a imaginação há muito lhe prometia, e agora lhe era finalmente entregue.

E assim, feliz e festivo, entrou em Dornelo.

Miguel Torga

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