sexta-feira, 26 de junho de 2015

OUTROS CONTOS

«O Vizinho Invejoso», por Pearl S. Buck.

«O Vizinho Invejoso»
A Inveja/ Covarrubias, gravura séc. XVI

543- «O VIZINHO INVEJOSO»

Há muito, muito tempo vivia numa aldeia um velho casal que, visto não ter filhos a quem amar e cuidar, dedicava todo o seu afecto a um cãozinho. Era um animalzinho bonito que, em vez de se tornar mimado ou mau quando não obtinha o que queria - como às vezes acontece, até, com as crianças, se mostrava grato aos donos pela sua bondade e nunca os deixava, quer estivessem em casa, quer fora dela.

Um dia o velho trabalhava no jardim e, como de costume, o cão fazia-lhe companhia. A manhã estava quente e, a certa altura, o homem largou a enxada e enxugou a testa, notando ao mesmo tempo que o animal farejava e escarvava a terra com as patas, a pouca distância. Não havia nada de estranho nisso, pois todos os cães gostam de arranhar a terra, e o velho continuou a cavar, tranquilamente. De súbito o cão correu para ele, a ladrar, e voltou ao local onde estivera, repetindo várias vezes tal procedimento. Admirado, o homem pegou na enxada e seguiu-o. O cão estava tão contente com o seu êxito, que não parava de ladrar e saltar e o barulho que fazia atraiu a velhota, que saiu de casa para ver o que acontecera.

Com curiosidade de saber se o animal encontrara, na realidade, alguma coisa, o marido começou a cavar e a enxada não tardou a bater em qualquer coisa. Baixou-se e retirou do buraco uma grande caixa cheia de reluzentes moedas de ouro. A caixa era tão pesada que a velha teve de o ajudar a transportá-la para casa, e podeis imaginar o rico jantar que o cão teve naquela noite! Agora que os tornara ricos, todos os dias os donos lhe davam tudo quanto um cão gosta de comer e o deitavam em almofadas dignas de um príncipe.

A história do cão e do tesouro depressa se espalhou, e um vizinho cuja horta ficava pegada à dos velhotes teve tanta inveja que não podia comer nem dormir. Como o cão descobrira um tesouro, o idiota pensou que podia descobrir mais e rogou ao casal que lhe emprestasse o animal por uns tempos, para enriquecer também.

- Como se atreve a pedir semelhante coisa? - perguntou-lhe o velho, indignado. - Sabe quanto gostamos do cão e que nunca o perdemos de vista nem cinco minutos.

Mas o invejoso vizinho não fez caso das suas palavras e todos os dias vinha com o mesmo pedido, até que os velhotes, que não gostavam de dizer «não» a ninguém, prometeram emprestar-lhe o animalzinho só por uma noite ou duas. Assim que se apanhou com ele soltou-o na horta, mas o cão limitou-se a correr de lado para lado e o homem não teve outro remédio senão esperar com a paciência que pôde arranjar. À noite levou-o para casa.

Na manhã seguinte abriu-lhe a porta e o cão saltou alegremente para a horta, correu para uma árvore e começou a cavar desembaraçadamente. O homem gritou à mulher que trouxesse uma pá e correu atrás do cão, ansioso por entrever os primeiros fulgores do desejado tesouro. Mas, depois de cavar no local indicado, que julgais que encontrou? Apenas um embrulho de velhos ossos, dos quais se desprendia tal fedor que não pôde suportá-lo.

Sentiu tanta cólera contra o cão que assim o enganara que pegou numa picareta e o matou, sem saber o que fazia. Quando se lembrou de que teria de dar uma explicação ao velho casal, ficou aterrorizado, mas como não ganharia nada calando-se, arvorou uma expressão muito triste e dirigiu-se à horta do vizinho.

O vosso cão morreu de repente - informou, fingindo chorar -,embora tivesse tomado bem conta dele e lhe desse tudo quanto podia desejar. Achei melhor vir informá-los...

Chorando amargamente, o velho foi buscar o corpo do animalzinho e enterrou-o sob a figueira onde ele achara o tesouro. De manhã à noite ele e a mulher choraram a sua perda, sem que nada os consolasse. Por fim, uma noite, o velhote sonhou que o cão lhe aparecia e lhe dizia que abatesse a figueira junto da qual estava a sua campa e da madeira fizesse um almofariz. Mas quando acordou e recordou o seu sonho, não se sentiu muito inclinado a derrubar uma árvore que todos os anos dava abundantes frutos e, por isso, consultou a mulher. Esta não hesitou um momento sequer. Depois do que acontecera, disse, o conselho do cão devia ser seguido. Portanto, a árvore foi derrubada e feito dela um belo almofariz.

Quando chegou a altura de colher o arroz, o almofariz foi tirado da prateleira e meteram-se-lhe dentro os bagos de arroz, para serem pisados. Mas, maravilha!, num abrir e fechar de olhos transformaram-se em moedas de ouro! Ao verem tanta riqueza, o coração dos velhos alegrou-se e mais uma vez abençoaram o seu fiel cão.

A história não tardou a chegar aos ouvidos do vizinho invejoso, o qual se apressou a ir perguntar, ao casal se tinha um almofariz que lhe emprestasse. O velho não gostou muito de emprestar o seu precioso tesouro, mas como não sabia dizer que não o vizinho levou-o.

Mal chegou a casa, pegou num grande punhado de arroz e começou a descascá-lo, ajudado pela mulher, mas em vez das moedas de ouro que esperavam o arroz transformou-se em sementes tão malcheirosas que tiveram de fugir, mas só depois de, furiosos, partirem o almofariz e deitarem fogo aos bocados.

Os velhotes ficaram, como é natural, muito contrariados ao saberem o que acontecera ao seu almofariz, e não os confortou nada as explicações e desculpas apresentadas pelo vizinho.

Mas nessa noite o cão apareceu outra vez em sonhos ao dono e disse-lhe que fosse buscar as cinzas do almofariz e as levasse para casa. Quando o grande Manchu a quem aquela parte do território pertencia tosse à capital, o velho devia levar as cinzas à estrada pela qual o coreJ° Passaria e, assim que o visse surgir, subir a todas as cerejeiras, uma por uma, e espalhar nelas as cinzas. As árvores não tardariam a florir como jamais haviam florido.

Desta vez o velho não precisou de consultar a mulher para saber se devia fazer o que o cão lhe dissera. Assim que se levantou foi a casa do vizinho, recolheu as cinzas do almofariz, guardou-as num vaso de porcelana e levou-as para a estrada, em cuja berma se sentou à espera da passagem do Manchu. As cerejeiras estavam nuas, pois era a estação em que costumavam vender-se rebentos envasados às pessoas ricas, para que os tivessem em casa, onde desabrochariam e enfeitariam os aposentos. Quanto às árvores que ladeavam a estrada, ninguém se lembraria de procurar nelas um botão que fosse antes que decorresse pelo menos um mês.

Não esperava havia muito tempo quando viu, ao longe, uma nuvem de poeira e calculou que fosse o cortejo do Manchu. Era, de facto. Os homens que o compunham vestiam os mais belos fatos e a multidão que enchia a estrada curvava-se até ao chão, à passagem do séquito. Só o velho não se curvou, facto que não passou despercebido ao grande senhor. Este ordenou a um dos cortesãos que lhe perguntasse porque desobedecera aos antigos costumes, mas, antes que o mensageiro o alcançasse, o velho trepara à árvore mais próxima e espalhara as cinzas, num gesto largo. As flores brancas desabrocharam, num instante, e o Manchu rejubilou, cumulou o velho de presentes e convidou-o para o seu palácio.

Claro que o vizinho invejoso não tardou a saber também essa novidade e o coração quase lhe estoirou de inveja. Apressou-se a ir ao local onde queimara o almofariz e a recolher um resto de cinzas que o velho deixara, as quais levou para a estrada, na esperança de que a sua sorte fosse tão boa, ou mesmo melhor, que a do vizinho.

O coração saltou-lhe de prazer quando avistou os primeiros sinais da aproximação do cortejo, e preparou-se para o grande momento. Ao ver o Manchu, atirou um punhado de cinzas para as árvores, mas do seu gesto não nasceram botões nem desabrocharam flores. Em vez disso, o vento atirou as cinzas para os olhos do Manchu e dos seus guerreiros, que gritaram de dor. Irritado, o Manchu ordenou que capturassem o atrevido e o metessem numa prisão, onde ficou muitos meses.

Quando o libertaram toda a gente da aldeia descobrira a sua maldade e não lhe permitiram que lá continuasse a viver. Como não se emendou, foi de mal a pior e teve um fim desgraçado.

Pearl S. Buck

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