quarta-feira, 30 de março de 2016

OUTROS CONTOS

«Colóquio Sentimental», conto poético por Paul Verlaine.

«Colóquio Sentimental»
Poema de Paul Verlaine

766- «COLÓQUIO SENTIMENTAL»

No velho parque frio e abandonado
Duas formas passaram, lado a lado.

Olhos sem vida já, lábios tremendo,
Apenas se ouve o que elas vão dizendo.

No velho parque frio e abandonado,
Dois vultos evocaram o passado.

– Lembras-te bem do nosso amor de outrora?
– Por que é que hei de lembrar-me disso agora?

– Bate sempre por mim teu coração?
Vês sempre em sonho minha sombra? – Não.

– Ah! aqueles dias de êxtase indizível
Em que as bocas se uniam! – É possível.

– Como era azul o céu, e grande, o sonho!
– Esse sonho sumiu no céu tristonho.

Assim por entre as moitas eles iam,
E só a noite escutou o que diziam.

Paul Verlaine

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

TRACY CHAPMAN - «She's Got Her Ticket»

Poet'anarquista

ELA TEM UM BILHETE

Ela tem um bilhete
Eu acho que ela vai usá-lo
Eu acho que ela vai voar para longe
Ninguém deveria tentar impedi-la
Persuadi-la com o seu poder
Ela diz que sua decisão já foi
Tomada

Por que não deixar, por que não
Vá embora
Muito ódio
A corrupção e ganância
Dê a sua vida
E, invariavelmente, eles deixam você com
Nada

Jovem menina não tem nenhuma chance
Nenhuma raiz para mantê-la forte
Ela derramou todas as pretensões
Que um dia ela vai pertencer
Algumas pessoas chamam-na de fugitiva
Uma falha na corrida
Mas ela sabe aonde o seu bilhete a levará
Ela vai encontrar seu lugar ao sol

E ela vai voar, voar, voar

Tracy Chapman
Cantora e Guitarrista Norte-Americana

segunda-feira, 28 de março de 2016

OUTROS CONTOS

«Descolonizámos o Land-Rover», conto poético por Albino Magaia.

«Descolonizámos o Land-Rover»
Conto poético de Albino Magaia

765- «DESCOLONIZÁMOS O LAND-ROVER»

Já não é carro cobrador de impostos.
Nós descolonizámo-lo.
Já não é terror quando entra na povoação
Já não é Land-Rover do induna e do sipaio.
É velho e conhece todas as picadas que pisa.
É experiente este carro britânico
Seguro aliado do chicote explorador.
Mas nós descolonizámo-lo:
No matope e no areal
Sua tracção às quatro rodas
Garante chegada às machambas mais distantes
Às cooperativas dos camponeses.
Entra na aldeia e no centro piloto
Ruge militante nas mãos seguras do condutor
Obedece fiel a todas as manobras
Mesmo incompleto por falta de peças.

- Descolonizámos o Land-Rover!

Com nossos produtos
Compramos combustível que consome
Com nossa inteligência
Consertamos avarias que surgem
Com nossa luta
Transformamos em amigo este inimigo.
Nós, descolonizadores
Libertámos o Land-Rover
Porque também ficou independente, afinal
Transformaram-se os objectivos que servia
E hoje é militante mecânico
Um desviado reeducado
Uma prostituta reconvertida em nossa companheira.
Descolonizámo-la e com ela casámos
E não haverá divórcio.

De Tete a Cabo Delgado
Do Niassa a Gaza
Da sede provincial ao círculo
Este jeep saúda quando passa
O Caterpillar seu irmão
Outro descolonizado fazedor de estradas
E cruza-se com o Berliet atarefado
Ex-pisador de minas
Eles aprenderam com a G-3
Menina vanguardista na mudança de rumo
A primeira a saber e a gostar
A diferença antagónica
Entre a carícia libertadora das nossas mãos
E o aperto sufocante e opressor do inimigo que servia.

As mãos dos operários que o fabricam
são iguais às mãos dos operários da nossa terra.
Essas mãos inglesas que o criam
Um dia saberão que ajudaram a fazer a revolução
e vão levantar o punho fechado da solidariedade.

Ruge este militante nas picadas da Zambézia
Galga as difíceis estradas de Sofala
Passa pelos pomares de Manica
Pelo milho de Gaza
Pelas palmeiras de Inhambane
Na cidade do Maputo descansa.
Transporta pelo país
Os olhos dos estrangeiros amigos
Que querem conhecer de perto a nossa Revolução

- Descolonizámos uma arma do inimigo
Descolonizámos o Land-Rover!

Aquelas quatro rodas e um motor potente
Aquela cabine dos mecanismos de comando
Aquelas linhas da carroçaria irmanadas ao medo
Já não afugentam o povo:
Homens, mulheres e crianças do campo
Fazendo sinal ao condutor,
Pedem boleia.
Nós descolonizámos o Land-Rover
E dele
O povo já não foge!

Albino Magaia

domingo, 27 de março de 2016

SÁTIRA...

Indecisões
HenriCartoon

«INDECISÕES»

- Senhor Presidente da Nação:
Sobre o Orçamento d’Estado
Que não foi promulgado…
Afinal, qual a sua posição?
- Só prá semana tenho opinião…
Por enquanto estou a hesitar
Entre promulgar ou publicar,
Tudo o que for preciso…
Mas confesso-me indeciso
Em deixar passar ou aprovar!

POETA

sexta-feira, 25 de março de 2016

OUTROS CONTOS

«Coisa Horrenda», conto poético por Novalis.

«Coisa Horrenda»
Conto Poético de Novalis

764- «COISA HORRENDA»

 Haverá coisa mais horrenda
do que disseminar que Deus
mande torrar no fogo os ateus
e que comemore a exequenda?

Haverá coisa mais indistinta
do que achar que sua religião
seja o uniquíssimo vinho/pão
para saciar uma fome faminta?

Haverá coisa mais medonha
do que pré-qualificar, exprobar,
condenar e mandar incinerar
um travesseirinho sem fronha?

Haverá coisa mais bodosa
do que se julgar um privilegiado
e admitir que será arrebatado
por ser cordeiro e não raposa?

Haverá coisa mais farsante
do que tornar menor o valor,
dizer que o amarelo é incolor
e, por fim, arruinar o tirante?

Haverá coisa mais fedida
do que ser juiz e carrasco
de alguém tido por diasco,
e excluí-lo da Eterna Vida?

Novalis

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

CLAUDE DEBUSSY- «The Ash Grove»

Poet'anarquista

Claude Debussy
Compositor Francês

quinta-feira, 24 de março de 2016

OUTROS CONTOS

«Canoa do Tejo», conto poético por Frederico de Brito.

«Canoa do Tejo»
Conto de Frederico de Brito

763- «CANOA DO TEJO»

Canoa de vela erguida
Que vens do Cais da Ribeira,
Gaivota que anda perdida
Sem encontrar companheira,
O Vento sopra nas Fragas,
O Sol parece um morango
E o Tejo baila com as vagas
A ensaiar um fandango

Canoa, conheces bem,
Quando há Norte pela proa,
Quantas docas tem Lisboa
E as muralhas que ela tem!
Canoa, por onde vais,
Se algum barco te abalroa,
Nunca mais voltas ao Cais!
Nunca, nunca, nunca mais!!

Canoa de vela panda
Que vens da Boca da Barra
E trazes na aragem branda
Gemidos duma guitarra,
Teu arrais prendeu a vela;
E se adormeceu, deixá-lo!
Agora muita cautela
Não vá o Mar acordá-lo!

Frederico de Brito

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

CARLOS DO CARMO - «Canoas do Tejo»

Poet'anarquista

Carlos do Carmo
Fadista Português

Por aqui- «OUTROS CONTOS», letra de Canoas do Tejo

quarta-feira, 23 de março de 2016

OUTROS CONTOS

«O Vestido Novo», por Joaquim Paço D’arcos.

«O Vestido Novo»
Vestido Azul/ Herrador Joseph

762- «O VESTIDO NOVO»

Maria Eduarda e as irmãs escoltaram-na, numa excitação inocente, enquanto ela transportava para a mesa de jantar o bolo de aniversário, ao centro do qual se erguiam, muito empertigadas, as onze velas pequeninas.

Para as garotas, o cúmulo da festa seria o jantar à mesa, com os pais e os avós. Habitualmente tomavam as refeições na copa, muito ampla e fria, com a Mademoiselle. Uma vez por outra Maria Eduarda comia com os pais na sala de jantar – uma transigência de D. Maria Francisca – à pieguice do marido – mas a Mademoiselle permanecia na copa com as mais pequenas.

– Que bom, jantar hoje com os avós. E a Mademoiselle também janta connosco.

E as crianças cirandavam em volta da mesa, a querer ajudar a Joana na sua faina, para afinal só atrapalharem a rapariga.

– Joana, ponha oito lugares na mesa. Ponha os talheres de prata e os copos bons.

– Mas somos nove – observou Maria Eduarda para a mãe, com a sua voz infantil mas já pausada, de menina precocemente séria.

– Nove, como, não me dirás?

– Então a mãe e o pai, os avós e o tio, cinco, a Mademoiselle e nós três, nove.

– A Mademoiselle não janta connosco – disse D. Maria Francisca com secura.

E voltando-se para Maria Lucinda: – Não tem que levar a mal. É um jantar de família. Os meus pais quase que não a conhecem. E nem a mesa ficaria certa com nove pessoas.

Maria Lucinda sentiu que a vermelhidão lhe cobrira as faces. Tartamudeou: – Oh, minha Senhora, nunca pensei em incomodá-los!

Ainda ouviu a pequenita dizer para a mãe: – Mas eu gostava tanto, no dia dos meus anos, de jantar com a Mademoiselle...

Ela já se escapulira da sala de jantar, mas a voz cortante de D. Maria Francisca ainda a perseguiu no corredor: – Não diga disparates, cada um no seu lugar. Se tem muito gosto nisso, jante na copa com ela.

Maria Eduarda não insistiu com a mãe. Esta não se ensaiaria para lhe ferrar um sopapo e, acima de tudo, ela não queria por coisa alguma, no dia dos seus anos, ter de jantar na copa. Ficou calada, a olhar o bolo e as velas empertigadas e a pensar na Mademoiselle. A mãe devia ter razão. As mestras não podem comer com as pessoas crescidas à mesa. Maria Lucinda fechou à chave a porta do seu quarto, não fossem as pequenas vir interrompê-la. Queria-lhes muito, mas naquele momento não lhes poderia dar atenção. Não que tivesse alguma coisa para fazer.

Não tinha nada para fazer. Só tinha que voltar a pendurar o vestido, o vestido azul que tencionara estrear no jantar dos anos da Maria Eduarda. Tirou-o de cima da cama, onde o estendera com cuidado, e voltou a pendurá-lo no cabide e a guardá-lo no armário. Fechou a porta deste com extrema lentidão e enxugou duas lágrimas, com o lencinho amarrotado, na face que ainda lhe ardia. – Que disparate o seu: jantar com os donos da casa, com os srs. Condes, com o D. Miguel! Ela, a mestra das pequenas...

Para afastar do espírito as ideias disparatadas que a magoavam, encostou a testa ao vidro da janela do quarto, como se da vista lá de fora lhe pudesse vir distracção ou lenitivo para aquela sensação escaldante de vexame, para a dor absurda de não ser uma princesa vestida de azul, mas uma simples mestra de meninas.

Dos plátanos grandes, de folhagem espessa, caía sobre o pátio uma sombra muito fresca. Mas o dia quente ainda não morrera. O Sol inclinava-se para o biombo verde dos outeiros ondulados, mas resistia ainda, em espasmos de sangue, à queda que o sepultaria. Ela ficou por muito tempo naquela posição, sem saber bem no que pensava. Uma dorzinha fina verrumava-lhe a alma, por mais que ela teimasse em sacudi-la. Já não sentia o ardor nas faces. Talvez as lágrimas o tivessem mitigado.

O ruído dum automóvel que se aproximava quebrou, de repente, o silêncio bucólico em que nenhuma voz se erguia, em que ela só escutava, no segredo do seu coração, vozes indefinidas. O automóvel entrou o portão e por instantes ela viu-o rodar no pátio, até desaparecer sob o arco da frontaria. Percebeu que as crianças corriam ao encontro dos avós e do tio. Pudera relancear, num segundo, o vulto de Miguel ao volante do carro. – Até daqui a três semanas. – Não, ela não tinha nada que ir à sala cumprimentar as visitas. Talvez nem jantasse, para não ter que sair do quarto.

O verde dos outeiros adquirira, no cair da tarde, cambiantes azulados. O céu coloria-se de vermelho, como se o Sol, ao avizinhar-se da terra, pegasse fogo ao mundo. Um fogo que devorasse tudo: os pinheirais e o milho, os plátanos e a casa grande, o automóvel e as mobílias, o seu vestido azul, a sua vida inteira...

Joaquim Paço D’arcos

terça-feira, 22 de março de 2016

SÁTIRA...

Pedido de Esclarecimento
Sátira...

«PEDIDO DE ESCLARECIMENTO»

- Dizem que tens andado,
(A Isabel é quem diz)
A intrometer o nariz
Onde não és chamado…
- Andas mal informado!
Isabel? Nunca ouvi falar…
Só podes estar a gozar,
Esse nome, não me soa…
Não conheço tal pessoa,
Mas julguei ver, ia jurar…?

POETA

segunda-feira, 21 de março de 2016

OUTROS CONTOS

«Teatro Simbólico dos Contos Maravilhosos», por António Quadros.

«Teatro Simbólico 
dos Contos Maravilhosos»
Ilustração de Gustave Doré

761- «TEATRO SIMBÓLICO DOS CONTOS MARAVILHOSOS»

Pretendeu-se que o conto maravilhoso constituía uma falsificação da realidade, pura e simplesmente porque narrava mentiras. Mesmo se entendido simbolicamente, tal género de literatura podia ser perigoso, pois daria talvez acesso a um sem-número de alienações na idade adulta: escapismo, perda de sentido do concreto, imaginação doentia, distanciação da realidade... as crianças, contudo, resistiram.

(...)

O deslumbramento perante o desconhecido, a atracção pelo enigmático e pelo misterioso, a decisão do trabalho e da investigação desinteressada, a capacidade de fugir às tiranias do mundo burocrático e imediato, a virtualidade sempre aberta da intuição, do sonho, do ideal, a conservação de um olhar inocente perante a espessura das coisas ou perante a presença dos males, das angústias e das dificuldades, a sublimação dos impulsos instintivos em obra criadora e fecunda, a disponibilidade diante do inesperado e do insólito são apenas algumas, de entre muitas dádivas que as crianças recebem na infância, dos contos maravilhosos. 

(...) 

À laboração misteriosa do inconsciente se devem muitas vezes, tanto como à própria razão consciente, os inventos da ciência ou os conceitos da filosofia. 

(...) 

Talvez que, aos jovens das gerações de hoje tenham faltado os avós, as mães e as tias que sabiam contar histórias de fadas, pela calada da noite, a crianças palpitantes e deslumbradas.

(...)  

Talvez essa oportunidade perdida os tenha desequilibrado para sempre. Se não ressuscitamos o teatro simbólico dos contos maravilhosos, talvez o mundo pereça entre escombros, ou simplesmente se detenha, desgostado com a pobreza espiritual da humanidade nova...

António Quadros

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

JOHANN SEBASTIAN BACH
«Pequeno Prelúdio»

Poet'anarquista

Johann Sebastian Bach
Compositor Alemão Quando Criança

domingo, 20 de março de 2016

OUTROS CONTOS

«Por Extenso», por Luísa Costa Gomes.

«Por Extenso»
Conto de Luísa Costa Gomes

760- «POR EXTENSO»

Quero o maior! – desde pequeníssima, sempre o maior. O urso: o maior. O cãozinho: o maior. O livro, se o escolhia: o maior, o com mais cores, o com a letra mais gorda. E, na comida: o prato maior, a fatia maior, a posta maior. O bolo: evidentemente, o maior. Poupada apenas nisto das letras. Abreviaturas, simplificações. Escolhido para nome Nê, porque encontra muito comprido o que lhe impuseram – Ana Lúcia é o seu nome da escola, com que assina os testes e os trabalhos, e Nê o seu nome livre.

Vai agora a atravessar a passadeira de peões e a escrever uma sms ao mesmo tempo. É um truque que costuma fazer para mostrar que tanto se lhe dá. Que é forte. Um carro pára, os travões guincham, os pneus até deitam fumo, a mulher baixa o vidro e grita-lhe:

- Ó menina, quer ir já para o céu, tão novinha?

Nê treme tanto que os dentes chocalham na boca, o carro a dois milímetros dos ténis de plataforma que nesse dia estreia, o telemóvel na mão onde a sms começada ainda enlanguesce: “vmos hje ao cc cnema k v o k?”; e a condutora olha-a de dentro da carrinha familiar, sorrindo, cínica e arrancando, em esfogueteada primeira, grita:

- Menina (...) ! Menina qualquer coisa, palavra que ela não percebe e escreve no tlm “ia sendo atropelada! tou aq td a trmer!” e envia à Ana Márcia que lhe responde logo “táse!”.

Aquela palavra que ela não percebeu teve um efeito curioso em Ana Lúcia. Começou a tomar mais atenção ao mundo, a estar mais alerta para tudo o que ia e vinha à sua volta, à espera de a reconhecer. Podia acontecer em qualquer lado, na piscina, a meio de um salto da prancha, e ter a orelha tapada pela touca. No polivalente, à passagem de alguém, embora lhe parecesse pouco provável. No polivalente havia sobretudo ruído. Mas era preciso estar preparada. No café, ao intervalo do almoço, no meio da vozearia dos rapazes que se batiam por tudo e por nada, ouviu a palavra “desconchavada” vinda de uma mesa de mulheres-gralhas e achou q não era aquela a que demandava, mas acabou por ficar.

Agora, em vez de responder “táse” quando o tio António, o meio tolinho meio-irmão do pai que vive na cave, lhe pergunta com um olho meio fechado: “Q tal o dia...? Na escola...?”, ela diz “Olha, tive um dia mesmo desconchavado”, deixando a Leila interdita, com a franja a encaracolar-se-lhe e a escova de alisar o cabelo a pilhas rodando estupidamente na mão. Foi lanchar, quase sem fome, escolhendo a fatia maior. Leila disse, no dia seguinte, afundada na torrente de palavras sem sentido com que normalmente a enviava para a escola: “encardida”. “O quê?”, perguntou. “O quê o quê?”, perguntou a Leila. “Disseste que a camisola estava o quê?”. “Encardida?”. A palavra que Ana Lúcia buscava não era “encardida”, mas passou a usá-la também na frase “ Sinto esta fase da minha vida um bocado encardida”. E comeu pouco ao pequeno-almoço.

SMS para cá e para lá nas aulas. O tema: um MMS da Ana Sandra que mostrava um homem todo nu com uma grande cabeça de abóbora. Mas Nê já estava noutra. Achou os colegas todos “lúgubres”. E, no intervalo das dez e meia, espantou a Ana Margarida ao dizer que a comida do refeitório era “sórdida”, que o Paulo andava “sorumbático” e “extravagante”, mas sorriu ao nome da namorada dele, quando lho disseram: Mirtília Túlia. Não era de troça, era um nome verdadeiro. E a frase favorita: “O Paulo é cá um lapa”. E o filme de murros no centro comercial? “Inane”, comentou. Procurou (sem realmente procurar) os sítios onde seria mais provável ouvir o que não percebera da primeira vez. A casita onde morava com o meio tio e a mulher, Leila, passou a ser uma “choça” e o carro deles um “chaço”. Olhou Silvestre, o misterioso vizinho que estudava matérias misteriosas, com nova motivação. Espiava-o do seu pátio em frente à garagem e achava tudo feio – fora a cameleira, “deslumbrante”. E pequenos musgos no muro, “pitoresco”. Não falava muito. Ficava a apreciar o pouco que tinha, procurando as palavras mais apropriadas com gula. Não era, por exemplo, paixão o que sentia por Silvestre, mas “encantamento”, e em outros momentos, “delírio”. De vez em quando escrevia uma palavra no muro, de líquen a líquen. Silvestre, entretanto conquistado pelo prolongado silêncio dela, convidou-a para tomar um café. Acompanhou-a à vitrina.

- É um pastelzinho, por favor – pediu Ana Lúcia - aquele ali.

E apontou, discreta. Era o mais humilde, mas foi dito por extenso, com um belo sorriso de amor, com as letras todas.

Luísa Costa Gomes

sábado, 19 de março de 2016

INTROSPECÇÃO

Recordando Fernando António Nogueira Pessoa...

Fernando Pessoa
O Poeta Criativo

FITO-ME FRENTE A FRENTE

Fito-me frente a frente
E conheço quem sou.
Estou louco, é evidente,
Mas que louco é que estou?

É por ser mais poeta
Que gente que sou louco?
Ou é por ter completa
A noção de ser pouco?

Não sei, mas sinto morto
O ser vivo que tenho.
Nasci como um aborto,
Salvo a hora e o tamanho.

Fernando Pessoa

Matias José
Poeta Popular

INTROSPECÇÃO

Faço introspecção
Ao ver-me no espelho,
Aceito bom conselho
De irmão pra irmão.
Abro o meu coração
Com a força da mente,
Sinto o que ele sente
E nada digo a ninguém…
Quando me convém,
«Fito-me frente a frente».

De mim pouco sabem
Passo despercebido…
Sem dar grande alarido,
Não há que me gabem.
As dúvidas acabem
Se alguma ainda restou,
Houve quem se enganou
Pensando conhecer-me…
Sou eu a contradizer-me,
«E conheço quem sou».

Acordo meio agitado
De um sono inquieto,
O sonho anda por perto
E o tempo ali parado.
Fico assim em estado
D' aflição permanente,
Penso até estar ausente
Neste mundo perdido…
Será que perdi o sentido?
«Estou louco, é evidente»!

Não é fácil descrever
Certo estado d’alma…
Se consigo, isso acalma,
A mão deixa de tremer.
O tempo passa a correr
Como vento que passou,
Nunca mais cá voltou
Assim é desde o começo…
Louco dizem que pareço,
«Mas que louco é que estou»?

O vício da poesia
Foi mais forte que eu,
Bem cedo aconteceu
Escrever o que sentia.
Versar me sucedia
De alma desperta,
A métrica era certa
Na sua profundidade…
Rimar, em boa verdade,
«É por ser mais poeta»?

Pode às vezes parecer
Exagero da minha parte…
Não é preciso ter arte
Pra me dar a conhecer.
Começo por vos dizer
Que hoje acordei mouco,
A quem isto sabe apouco
Acabei por ficar mudo…
Penso de mim, contudo,
«Que gente que sou louco»!

Não há ementa perfeita
Nem sabor que se repita…
Mesmo em papel escrita,
Sai sempre outra receita.
Dizem ser imperfeita
A mão que não acerta,
Não creio estar certa
Essa forma de pensar…
Sem razão ao afirmar,
«Ou é por ter completa»?

Pequeno grão de areia
Que coisa insignificante,
Não deixa de ser brilhante
Quando nasce a lua-cheia.
De um átomo nem meia
Partícula sou tampouco,
Questiono-me semilouco
Com todo o meu empenho…
Em resposta só obtenho
«A noção de ser pouco».

Planeio separar-me
E encontrar um fim,
Iludo-me ainda assim
Ao querer achar-me.
Se ouso escutar-me
Aceito tal conforto,
Pra chegar a bom porto
Evito o compromisso…
A viver, sem dar por isso?
«Não sei, mas sinto morto»!

Nada que sou ou fui
Muda que quer que seja,
No final pouco sobeja
Quando a vida se dilui.
A alma do corpo flui
Num último desempenho,
Não sou quem a detenho
Se de mim pensa fugir…
Com ela pretende ir
«O ser vivo que tenho».

O berço tudo me deu,
A tumba é quem o tira…
Por mais que isto fira,
Assim se estabeleceu.
Minha mãe concebeu
Pra meu desconforto,
Ao ver fiquei absorto
Com a minha imagem…
Salvo esta miragem,
«Nasci como um aborto»!

Foi num dia de Março
Que apareci no mundo…
Meu ser, antes fecundo,
Resolveu dar o passo.
Saí sem embaraço
Pra este lugar estranho,
No meio do rebanho
Senti-me deslocado…
Andei tresmalhado,
«Salvo a hora e o tamanho».

Matias José

OUTROS CONTOS

Conclusão... por aqui- «OUTROS CONTOS» e aqui- «OUTROS CONTOS»

«Introspecção», conto poético por Matias José.

«Introspecção»
Conto Poético de Matias José

Mote

Não sei, mas sinto morto
O ser vivo que tenho.
Nasci como um aborto,
Salvo a hora e o tamanho.

[Fernando Pessoa]

759- «INTROSPECÇÃO»

Planeio separar-me
E encontrar um fim,
Iludo-me ainda assim
Ao querer achar-me.
Se ouso escutar-me
Aceito tal conforto,
Pra chegar a bom porto
Evito o compromisso…
A viver, sem dar por isso?
Não sei, mas sinto morto!

Nada que sou ou fui
Muda que quer que seja,
No final pouco sobeja
Quando a vida se dilui.
A alma do corpo flui
Num último desempenho,
Não sou quem a detenho
Se de mim pensa fugir…
Com ela pretende ir
O ser vivo que tenho.

O berço tudo me deu,
A tumba é quem o tira…
Por mais que isto fira,
Assim se estabeleceu.
Minha mãe concebeu
Pra meu desconforto,
Ao ver fiquei absorto
Com a minha imagem…
Salvo esta miragem,
Nasci como um aborto!

 Foi num dia de Março
Que apareci no mundo…
Meu ser, antes fecundo,
Resolveu dar o passo.
Saí sem embaraço
Pra este lugar estranho,
No meio do rebanho
Senti-me deslocado…
Andei tresmalhado,
Salvo a hora e o tamanho.

Matias José

sexta-feira, 18 de março de 2016

OUTROS CONTOS

Continuação... por aqui- «OUTROS CONTOS»

«Introspecção», conto poético por Matias José.

«Introspecção»
Conto Poético de Matias José

Mote

É por ser mais poeta
Que gente que sou louco?
Ou é por ter completa
A noção de ser pouco?

[Fernando Pessoa]

758- «INTROSPECÇÃO»

O vício da poesia
Foi mais forte que eu,
Bem cedo aconteceu
Escrever o que sentia.
Versar me sucedia
De alma desperta,
A métrica era certa
Na sua profundidade…
Rimar, em boa verdade,
É por ser mais poeta!?

Pode às vezes parecer
Exagero da minha parte…
Não é preciso ter arte
Pra me dar a conhecer.
Começo por vos dizer
Que hoje acordei mouco,
A quem isto sabe apouco
Acabei por ficar mudo…
Penso de mim, contudo,
Que gente que sou louco!

Não há ementa perfeita
Nem sabor que se repita…
Mesmo em papel escrita,
Sai sempre outra receita.
Dizem ser imperfeita
A mão que não acerta,
Não creio estar certa
Essa forma de pensar…
Sem razão ao afirmar,
Ou é por ter completa?

 Pequeno grão de areia
Que coisa insignificante,
Não deixa de ser brilhante
Quando nasce a lua-cheia.
De um átomo nem meia
Partícula sou tampouco,
Questiono-me semilouco
Com todo o meu empenho…
Em resposta só obtenho,
A noção de ser pouco!

Matias José

quinta-feira, 17 de março de 2016

OUTROS CONTOS

«Á Memória de Fernando Pessoa», conto poético de António Botto.

«Á Memória de Fernando Pessoa»
Conto Poético de António Botto

757- «Á MEMÓRIA DE FERNANDO PESSOA»

Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão
- Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boemia
Coberta de farrapos e de estrelas
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma:
Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio da descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo. . .
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes. . .
E a mesma intriga; as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver
- Sem estímulo, sem fé, sem convicção...

Poetas, escutai-me: transformemos
A nossa natural angústia de pensar
- Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!

António Botto

quarta-feira, 16 de março de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

LED ZEPPELIN - «In The Evening»

Poet'anarquista

NA NOITE

Eu procuro uma mulher, mas a garota não vem
Então, não deixes que ela te faça de parvo
Ela não mostra piedade, querida, ela não faz as regras

Oh! Oh! Eu preciso do seu amor
Preciso do seu amor
Oh! Eu preciso do seu amor
Eu preciso ter

Então, não a deixe ficar em baixo da sua pele
Será apenas má sorte e problemas, desde o começo
Eu já ouço você chorando na escuridão,
Pedindo pela ajuda de ninguém
Sem sorte, querida, porque você só pode se culpar

Oh! Oh! Eu preciso do seu amor
Preciso do seu amor
Oh! Eu preciso ter

Oh! É simples: Por toda a dor que você passa
Você pode desviar-se da fortuna, fortuna, porque isso
É tudo que a deixa sozinha no fundo.
Rapaz, isso me deixa extremamente tonto
Mas se você está em pé, no centro, não tem jeito de você parar

Oh! Oh! Eu preciso do seu amor
Preciso do seu amor
Oh! Eu preciso do seu amor
Eu preciso ter

Oh! Tudo o que seus dias possam trazer
Não se esconda no canto porque isso não mudará as coisas
Se você está dançando no tédio, e um dia - não tão longe-, isso parará,
Quando você for o chefe dos ”improváveis”,
Quando você não esperar muito.

Led Zeppelin
Banda Britânica

terça-feira, 15 de março de 2016

OUTROS CONTOS

«Os (M)eus Tolos Argumentos», por Oneide Dee Diedrich.

«Os (M)eus Tolos Argumentos»
Conto de Oneide Dee Diedrich

756- «OS (M)EUS TOLOS ARGUMENTOS

Lembro muito bem da primeira vez que tomei o meu primeiro copo de água ardente. Foi uma experiência marcante — daquelas que recordo, foi a mais —, já que não me lembro como foi quando nasci. Alguém havia largado aquele pequeno copo, que parecia conter apenas água, ao lado de minha lancheira e de minha chupeta. Eu não ia pra aula sem elas. Bateu lá no fundo e fez eco, e um mundo novo então brotou em meu pátio; eu estava descalço e dava passos de tango esperando o almoço ou o moço que me levaria à escola. Na verdade, essas são lembranças confusas, não me recordo com exactidão, acho que também recalquei. (Enquanto isso) “Garçom, mais uma dose, é claro que eu tô afim.”

Aquele copo me abraçou como um polvo, como um urso, como uma mãe que sente saudades demais ou talvez como a morte abraçaria Dóris sob o varal. 

Eu e aquela água fomos cúmplices de alegrias, brigas e fiascos. “Lembra daquela vez que te encontrei de baixo da cama?”. Ela nunca respondia, sempre foi fiel ao meu estranho gosto pelo silêncio. 

Andávamos lado a lado. Eu dava dois passos na lua, ela me esperava no bar da esquina, e isso era o máximo da fidelidade. E, ao nos separarmos, eu a deixava nas privadas ou em postes solitários e ela me deixava louco. Como explicar tal paixão? Eu não merecia tanto, era demais para mim, foi então que decidi que era necessário sofrer. Com o advento da hipocondria, tudo ficou menos complicado, pude sentir-me o pior, mesmo estando bem.

Assim é mais fácil entender o peso de minhas cadeias. Então eu estava pronto e bêbado, e o olhar de Dóris pode ser o tiro mais certeiro que me atingiu e que me fez bem, e que me fez mal. Esse é o grande segredo: o que faz bem também faz mal, não há saída. Algo faz falta, e eu não me posso enrolar (ou enrolar vocês) em mil cores como os pirulitos perfeitos daqueles desenhos animados de antigamente. Deixemos pra lá e com gritos de viva! Brindemos aos meus mais tolos argumentos. Depois é só esquecer. Não há como explicar, não é preciso nem entender.

Rua sem saída! Eu pensava em tudo, menos em estar ali. Deitado na rede, rente à janela, eu fitava os passantes, tremendo de medo. Eu tinha muito medo. A loucura de Dóris não era mais tão estranha, na verdade se tornara algo bem familiar, e Linda, coberta de cuidados, parecia uma boneca. Então eu colocava meus óculos escuros e ficava de olho. Tomava um chá amargo, que me fazia bem e mal, e depois de alguns minutos, ficava apavorado. Havia naquela vizinhança uma nota promissória que me perseguia. Cada vez que ela virava a esquina, eu pulava para dentro da casa, mas não era só isso. Só de vê-la, a angústia interditava o meu peito e de imediato me vinham à mente as contas atrasadas: água, telefone, luz e gás. 

Lembro-me de uma vez em que Dóris me chamou de poeta, eu nunca havia levado aquilo a sério, mas tamanha era a angústia, que pensei em acreditar e escrever. Quem sabe as letras em associação livre me levassem para um outro lugar. Um país colorido, edênico e distante. Mas não, eu fiquei ali aos pés da torre de Babel, falando sozinho pelos cotovelos. Pensei então que deitado na rede seria impossível prevenir-me daquela nota desafinada e promissória. A solução seria morar no último andar de um prédio muito alto de onde eu pudesse ver a Cruz Machado terminar seu calvário na Tiradentes. Aí eu escreveria um poeminha para o meu lindo lar. Se eu tivesse anotado o poeminha seria assim:

Curitiba do alto

Eu tenho flores
Um lindo quarto
Vejo do alto
A Curitiba
Dona Tereza
Limpa a sala
Que é tão bela
Mas não é dela
E sobre a mesa
Contas esperam
Que o meu saldo
Volte ao zero

Não anotei o verso, o que me deixou ainda mais apavorado. Notei que eu não tinha a menor ideia de como assinar tão singela obra poética. Sempre estive perdido a esse respeito, não me sabia localizar na história de Dóris, já que em alguns momentos da saga, eu era simplesmente “aquele que”. Em outros trechos me propus a ser o objeto de seu olhar e de seu desejo, e muitas vezes me surpreendi na função de narrador. Mas quase sempre, e a todo instante, me sentia um quase nada, medroso e preso pelo pé.

Oneide Dee Diedrich

sábado, 12 de março de 2016

DÉCIMA DA DESPEDIDA

Faleceu ontem o Melga, pai do Bomer. É sempre muito triste ver partir um amigo fiel! Um abraço de solidariedade ao Rui, e outro à Bia.
Poet'anarquista
«Décima da Despedida»
Melga, Fiel Amigo

«DÉCIMA DA DESPEDIDA»

O Melga partiu em paz…
Estava em boa companhia,
Teve tudo quanto queria
Nesta ‘passagem’ fugaz.
Contra a morte incapaz
De resistir, impotente,
Deixa saudade na gente
Perder um amigo assim…
Tudo tem que ter fim,
Nada dura eternamente!

Matias José

OUTROS CONTOS

«Introspecção», conto poético por Matias José.

«Introspecção»
Conto Poético por Matias José

Mote

Fito-me frente a frente
E conheço quem sou.
Estou louco, é evidente,
Mas que louco é que estou?

[Fernando Pessoa]

755- «INTROSPECÇÃO»

Faço introspecção
Ao ver-me no espelho...
Aceito bom conselho
De irmão pra irmão.
Abro o meu coração
Com a força da mente,
Sinto o que ele sente
E nada digo a ninguém…
Quando me convém,
Fito-me frente a frente.

De mim pouco sabem
Passo despercebido…
Sem dar grande alarido,
Não há que me gabem.
As dúvidas acabem
Se alguma ainda restou,
Houve quem se enganou
Pensando conhecer-me…
Sou eu a contradizer-me,
E conheço quem sou.

Acordo meio agitado
De um sono inquieto…
O sonho anda por perto,
E o tempo ali parado.
Fico assim em estado
D' aflição permanente,
Penso até estar ausente
Neste mundo perdido…
Será que perdi o sentido?
Estou louco, é evidente!

Não é fácil descrever
Certo estado d’alma…
Se consigo, isso acalma,
A mão deixa de tremer.
O tempo passa a correr
Como vento que passou,
Nunca mais cá voltou
Assim é desde o começo…
Louco dizem que pareço,
Mas que louco é que estou?

Matias José

sexta-feira, 11 de março de 2016

OUTROS CONTOS

«Um Nosso Semelhante», por Manuel da Fonseca.

«Um Nosso Semelhante»
Conto de Manuel da Fonseca

754- «UM NOSSO SEMELHANTE»

Leonel Badanas, o bombeiro, acaba de vestir a farda cheia de botões dourados. Está diante do espelho e põe de várias maneiras o rebrilhante capacete. Vira-se para um lado e para outro. Torna a mudar-lhe a posição sem se decidir por nenhuma. Mas, como não tem pressa, ainda teima em pôr de acordo aquele extraordinário chapéu com a alevantada e grave expressão do rosto. Por fim, já com os músculos da cara doridos, sai, muito embora não vá plenamente satisfeito.

Na rua, alarga um passo de ginasta e adianta o peito; a espinha flecte em arco, pondo em grande relevo as nádegas magras. Apesar disso, Leonel Badanas sacode os braços com arrogância. Tem assim como que uns longes de galo, de asas meio abertas, chispando raios de sol da luzidia crista.

De repente, ao voltar da esquina, tropeça numa súbita ideia, e tudo aquilo se desfaz. Equilibra-se a custo: fica uma farda amarrotada; lá dentro, um homenzinho mirrado com uma enorme campânula amarela na cabeça.

Desalentado, o bombeiro retrocede. Empurra a porta de casa e grita, levantando lentamente as mãos:

- Onde está a minha medalha ? Do quarto sai uma mulher de feição apagada e receosa:

- Estive a areá-la. ..Esqueci-me. ..

- Vai buscá-la, mulher! "Que irritação! Por um pouco, e entrava no jardim sem a medalha! No jardim, onde está toda a gente da vila, na grande festa a favor das Florinhas da Rua! ..." E, mesmo agora, enquanto a mulher lhe cose na farda a fitinha que segura a medalha, ele a descompõe. De instante a instante, repete:

- Olha se eu me esquecesse, hem! De novo na rua, volta ao passo largo e seco; peito arqueado, nádegas saídas. Dependurada da farda, a medalhinha branca agita-se em movimentos desordena- dos. E reluz ao Sol, num alegre desafio com o capacete.

Esta medalha ganhou-a ele no último Inverno. Os bombeiros formaram em parada diante da casa-esqueleto onde fazem exercícios ao domingo. O povo, rodeando as individualidades mais representativas, assistiu. E, após ter falado cerca de dez minutos, o comandante dos Voluntários parecia muito comovido; depois de condecorar o bom do Leonel, abraçou-o carinhosamente.

Em seguida, o presidente da Câmara desenrolou uma folha de papel, pôs as , lunetas, e começou a ler num estranho tom de voz, áspero e sacudido. Louvou o Badanas, comparou-o com os mais abnegados heróis da humanidade, enalteceu a corporação e o seu chefe. Espraiou-se sobre as belezas da paisagem em redor da vila, falou das riquezas agrícolas do concelho, elogiou de novo Badanas. E, com palavras ainda mais sacudidas e ásperas, disse que ia dar uma grande novidade: em breve, os Voluntários teriam, enfim, a sua autobomba!

Apesar de esta informação não constituir surpresa para ninguém, a assistência rejubilou. Enquanto as palmas reboavam, todos se voltaram enternecidos para o Leonel Badanas. Em sentido, rígido como uma estaca espetada no chão, debaixo do capacete amarelo, Badanas, de pálpebra caída, fitava modestamente os barrotes da casa-esqueleto.

Vai à mulher e empurra-a para dentro do casebre. Volta-se de braços erguidos:

- E eu? Que me deu você? Nem a ponta dum corno! Em que é que você é meu pai, diga lá?

O mendigo vai recuando. E, sem tirar a mão de entre as pernas, cauteloso pela descida que o atalho faz até à entrada, toma a direcção da vila. Atravessa-a sempre de olhar fixo. E desaparece ao longe, enrolado no vento e na noite que cresce sobre a planície.

Volta no outro dia, batendo de porta em porta -como não é sábado, nada lhe dão. Pelo meio-dia, escorrega rente à parede da venda do largo. Ajeita-se melhor, todo dobrado, a barba contra os joelhos.

Parecem de cego os olhos que a fome tornou baços; parados, nada vêem. Assim a mesma quietude por todo o corpo, como se a imobilidade da morte lhe houvesse tocado no coração.
Um camponês passa pelo Rana, olha-o atentamente, e entra na venda:

- Sabem quem é esse que está aí fora ?

Dois homens afastam-se até à porta. Devagar, examinam o mendigo coberto de farrapos.

- Ná -diz um deles. -Não o conheço.

O camponês está junto do balcão, de costas para a rua:

-É o Rana.

Vira-se, e repete:

- O Rana, um que, por último, trabalhava na herdade da Salgada.

-Tem razão -diz o dono da venda, encostando-se ao mostrador. - Vi-o andar por aqui, ontem, e não o reconheci. Olha quem me havia de dizer que o Rana, um homem de trabalho. ..

- É verdade -recomeça o camponês, sorrindo contrafeito. - Trabalhou sempre. E, agora, a pedir.
Baixa a cabeça; o rosto some-se-lhe sob a aba do chapéu:

- Encha-me aí um copo, mestre Zé. Endireita-se, e fita os dois homens:

-Vocês já pensaram que, quando a gente não prestar para nada. ..

Cala-se. No silêncio, ouve-se a torneira do barril ranger; depois, o vinho escorrendo para o copo.

Fora, pesadas nuvens negras escurecem o dia muito antes do Sol desaparecer, e a ventania gelada varre o largo deserto. Os camponeses saem da venda a caminho de casa. Apenas o Rana continua sentado junto da parede.

Súbito, atira a mão para a frente e ergue-se, trémulo. Deixa abandonados no chão os seus únicos bens: a vara e o saco vazio. E, de braços abertos, caminha, inseguro e desolado, como os ébrios. Perto do poço que há a um canto do largo a dor trava-lhe os pés. Cuidadosamente, ajeita o intestino entre as pernas; encosta-se ao bocal, com o braço livre puxa o corpo, e tomba para dentro.

A pancada na água ressoa no largo. Aparece gente, correndo.

Leonel Badanas é o primeiro a debruçar-se sobre o bocal; logo que os olhos se habituam ao escuro do poço, grita:

-Teve sorte, o raio do velho!

Todos vêem agora o Rana, ansiado, de boca aberta, como para vomitar. A água dá-lhe pelos ombros. Então, compreendem a frase do Badanas. O velho caiu no estrado de madeira que apanha metade do círculo do poço, um pouco abaixo do nível da água, e serve para os trabalhos de limpeza quando, no Verão, a nascente enfraquece.

Dirigindo o salvamento, Leonel Badanas dá ordens. Vem uma escada; descem-na até ao estrado, e o bombeiro prepara-se para saltar, quando lhe ocorre uma ideia. Para quê molhar-se com um frio daqueles? E, seguindo o curso do pensamento, ordena ao mendigo:

-Sobe, maroto !

A cabeça do Rana desaparece debaixo da água. Por momentos, cresce a expectativa em volta do bocal. Badana ainda sobe para a escada, mas de novo estaca. Nesse instante, a cabeça do mendigo. reaparece. A água escorre-lhe da boca e das barbas.

- Sobe, malandro! - grita Leonel, Badanas. - Senão vou lá abaixo!

Reanimado, o Rana volta a mergulhar. Quer morrer e, no entanto, já sob a água, no último momento, não consegue evitar aquele retesamento de músculos que lhe estica imperiosamente o corpo. Respira de novo o bom ar da vida, e o primeiro movimento é a mão que o faz, introduzindo-se entre as pernas, compondo a quebradura.

Badanas corre à venda e volta com uma comprida vara. Intima o mendigo a subir; como este se não resolve, aplica-lhe uma varada na cabeça.

-Sobes ou mato-te, patife!

As pancadas sucedem-se umas às outras. O velho mete a cabeça debaixo de água: vem a aflição da asfixia. Ergue-se: cá fora espera-o uma varada. Estonteado, por fim sobe a escada, de mão na virilha, gemendo.

-Malandro, que te mato! - grita o bombeiro, de vara no ar.

Levam-no até à Câmara Municipal. O presidente adianta-se e, com os modos carrancudos de sempre, começa a falar ao Badanas. Nos olhos do mendigo abre-se um luaceiro de esperança; decerto, iam castigar aquele maldito que o não deixara aquietar-se de vez. Mas tudo acaba de modo diferente. O presidente aperta a mão do bombeiro:

-Vai então ganhar a medalha, hem? Merece-a. Salvou um homem.

Assim veio a acontecer. Datava de há muito pouco a corporação dos Voluntários e de modo nenhum se deixaria passar aquela esplêndida oportunidade para lhe justificar os préstimos. O próprio comandante já ali estava a tomar nota do caso. E Leonel Badanas baixa os olhos, cheio da natural modéstia dos homens decididos.

Nesse momento, alguém ergue o Rana por debaixo dos sovacos. É o carcereiro. Pingando água, de mão entre as pernas, o mendigo é arrastado como um saco para dentro da cadeia.

Não assistiu à cerimónia junto da casa-esqueleto onde os bombeiros fazem exercícios aos domingos, nem teve notícia dos discursos em louvor do "salvamento de um nosso semelhante", pois foi posto na rua e enxotado para fora do concelho dois dias depois de preso. Antes disso, no entanto, ainda ficou por largo tempo olhando de longe para as grades da cadeia.
Tinham-lhe dado de comer enquanto lá estivera.

Manuel da Fonseca