domingo, 10 de abril de 2016

OUTROS CONTOS

«A Caminho de Barroso», por Antero de Figueiredo.

«A Caminho de Barroso»
Igreja de Covas do Barroso

772- «A CAMINHO DE BARROSO»

Esta abalada para os montes de Barroso, saindo de Braga ante-manhã, numa luz de absinto aguado e num silêncio de prece, onde se coalham as badaladas das Ave-Marias a caírem, lentas, das torres cristas, acolá, alem...;—faz-me pensar naquela outra viagem a essa mesma serra, feita há trezentos e cinquenta e três anos, por Frei Bartolomeu dos Mártires, em sua segunda visitação pastoral, longa, trabalhosa, por despenhadeiros, cheia de casos extraordinários tidos como milagres.

Mas o enérgico arcebispo,—bondade activa o inteligente — no meio dos seus seguido de azêmolas de carga, cobertas com velhos telizes de veludo, brasonados, montava, paciente e contumaz, mula branca e vagarosa ; eu, moderno e insofrido, voo num febril Buick americano, de seis cilindros e quarenta e cinco cavalos, que come léguas à razão de cinquenta quilómetros à hora.

Há três séculos e meio, o que seria então esta «Bracara Augusta», quási um burgo, com seus novecentos vizinhos sumidos na toca das suas casas baixas, de pequeninas janelas bisonhas, e, graves em escuros trajes seculares e eclesiásticos, escoados na sombra das ruas estreitas, cotoveladas, a maior parte ainda dentro dos fossos, barbaças 6 muros de D. Denis e de D. Fernando, com portas torreadas, nichos de santos sobre os arcos, tendo, numa extrema, sua cidadela com albarrã no meio de quatro cubelos — capital antiga, fidalga, de igrejas cheínhas de relíquias abastecidas nos santuários de Roma e de Burgos ?

A vida civil e religiosa fazia-se em torno do Primaz das Espanhas, senhor de Braga, rodeado, no coro alto da velha Sé, de sua corte capitular, composta das dignidades de um deão, um chantre, diversos arcediagos, um mestre-escola, um tesoureiro-mor, um arcipreste, muitos cónegos e vários tercenários, vivendo todos fartamente das suas prebendas, visitas e igrejas pingues.
O que seria a vida de então ?

O arcebispo chegara, havia meses, do concílio de Trento. A ida fora uma viagem modesta, vestindo o Primaz o seu amado hábito dominicano, e pernoitando em conventos da sua ordem, em Espanha, França, Itália, incógnito sempre que podia, pois, nada sociável. detestava cerimónias e dispensava hospitação e confeitos que, por não estar afeito a eles, mais o constrangiam que o mimavam. Outros interpretarão que era propósito do humildade cristão que o levava, como frade pobre, a saborear, em sua mesquindade, a ceia minguada e o catre duro dos simples religiosos ordinários que vão de longada e demandam mosteiros por uma noite de dormida.

Em Espanha, fôra-se por Zamora, atravessou o planalto da Castela-Velha e pousara em Falência e Burgos — de grandiosas catedrais. Vitória. Transpôs a cordilheira cantábrica, entrou em França por Baiona e seguiu por Aux e daí a Tolosa— depois de Roma, o mais rico santuário de relíquias cristãs. Carcassona, Narbona, Brissiers, — num lindo alto. Santuberi. Lupiana — a infiel; Mompilher— a doutora. Carpentras. Galgou os Alpes saboianos; subiu às alturas de Mongeneura e desceu ao raso Piemonte. Passou em Turim e na fresca Brindes; atravessou os campos baixos da Lombardia; foi-se a Milão, depois a Cassino, Pontóia e Hospedalete.

Em Brexa, pela primeira vez, seus pés monárquicos pisaram terras republicanas na aristocrática Veneza; e logo em Calião. no Tirol, entrado no vale, muito verde, do Ádige, chegou, enfim, a Trento — cidadezinha clara de palácios de mármore, de muitas torres, entre serras azuis, cristadas de neve.

O decidido arcebispo, que era aturado nas suas teimas, quis — ele. o último da extrema ocidental das Espanhas — ser o primeiro a chegar a essas distantes terras austríacas. E chegou. Não perdeu tempo; em cinquenta e seis dias de duras jornadas venceu trezentas e trinta e duas léguas de caminhos aspérrimos, por vales e serras — de ordem em ordem, de convento em convento, sempre a cavalo, do nascer ao pôr do sol, e uma vez em «toboganing», deslizando vertiginoso pelas sendas nevadas das cordilheiras alpestres do Delfinado, a descerem para as terras lavradias do termo turinês.

Nessa longa viagem, ao atravessar regiões, como as de Linguadoc, onde a heresia reformista alastrara, o bom e esperto arcebispo, distanciado dos seus companheiros, só, a mula a passo, as rédeas soltas; — o arcebispo meditava, com as mãos cruzadas no peito para que pendia a sua cabeça pesada de pensamentos e de cuidados.

A hora era grave. O catolicismo sofrera nos últimos vinte anos os ataques formidáveis de um Lutero, de um Zwinglio, de um Calvino. A unidade da Igreja quebrara-se. Meia Europa estava repartida em seitas protestantes. A política fomentava as desordens nos grandes países, para, dividindo-os, os enfraquecer; e a terra estava inda ensopada no sangue do massacre do dia de São Bartolomeu e no das tremendas matanças dos anabaptistas e dos huguenotos.

O arcebispo inquietava-se. Sofria. Mas tudo nos diz que na alma inteiriça desse homem rudo, filho de lavradores, todo dentro da letra pura do Evangelho, havia também o espírito do um revoltado, em parte de acordo com o pensar dos reformadores, dando-lhes plena razão nos seus ataques contra os excessos de pompa do culto externo de uma religião humílima, que fora pregada por homens descalços, e que devia, sobretudo, viver no fundo da consciência dos seus crentes, que seriam tanto melhores quanto mais se parecessem com o simples Publicano do Evangelho. Também ele protestava contra os abusos dos papas e dos grandes eclesiásticos; contra a transigência da Igreja não só em contemporizar com as novas ideias humanistas, mas ainda em se deixar penetrar na vida sensual da Renascença, impregnada de orientalismo pagão, que tinha feito de Leão X um príncipe realengo, gastando-se em banquetes, caçadas, torneios, rodeado somente de grandes, de artistas, de letrados e de poetas, a quem pagava sonetos por quinhentos ducados de ouro.

Na alma aparentemente serena do Primaz havia, neste aspecto, o espírito revoltado de um Lutero. Calava-se, mas estava com elo.

No Concilio, no meio de trezentos prelados, a sua voz forte e calma defendeu, tenaz, a disciplina do clero e atacou, alto e bom som, as irregularidades das grandes figuras eclesiásticas por quem deviam principiar todas as reformas nos costumes e no mais. — «Os ilustríssimos e reverendíssimos cardiais hão mister uma ilustríssima e reverendíssima reforma» — dizia ele, humildemente vestido de estamenha, afoito, cara a cara de magníficas personalidades, de faces bem medradas e composturas bem cuidadas nas sedas das suas batinas e nos seus roquetes de rendas preciosas.

- Ah, quanto a Igreja se desviara do que fora! Como São Bernardo — seu santo predilecto — também Frei Bartolomeu podia dizer:

— «Que eu não morra sem ver a Igreja de Deus como ela era nos seus primeiros dias». Por sua índole plebeia, tendia para os da sua igualha e punha-se a favor dos vilões sempre que os fidalgos contendiam com eles; por sua feição política, queria firmar-se na massa anónima, mas foi-te, do povo numeroso; por seu pendor democrático, rebuscava direitos para os humildes; e por sua alma de cristão primitivo, queria que a Igreja regressasse a ser tal qual Cristo a instituíra. Nisto antecipou-se três séculos e meio ao neo-cristianismo como hoje o anelam as almas que se alimentam exclusivamente do Evangelho e querem construir Basílicas não de pedra mas de espírito, habitar celas escusas em vez de Vaticanos luxuosos, deixar ao mundo temporal o que à matéria pertence; e, todos dentro do culto interno do coração puro, viver na essência divina do sonho religioso, — extra-humano, infinito.

No intervalo dos seus trabalhos, Frei Bartolomeu, Ádige abaixo, visita Veneza. Depois, — constrangido no coche forrado de seda de um grande prelado, que viaja em pomposo estadão, com batedores, a duas soltas. e criados de libré na tábua, — segue pelas estradas que levam a Bolonha, Florença, Sena e Roma. Aqui, Pio lV admira suas letras sábias, suas virtudes, e repara em sua pessoa tão rasteira no aspecto e plebeia nas maneiras, como aficada nas ideias sãs e tenaz na defesa delas.

Ao fim de três anos, tornou-se a este seu querido Reino de Portugal e à sua muito amada arquidiocese de trezentas freguesias, em terra meiga do Minho e em serranias trasmontanas. Regressou por Perpinhão, Barcelona, Saragoça, {Salamanca, — sábia e católica —, entrando de noite, a ocultas, nesta sua Braga, cujo povo, em seu coração, o recebeu com alvoroço e doçura.

Meses depois, por certa manhãzinha de madrugar brando e bento (semelhante ao de hoje) abala para terras de Barroso. Mas não foi como eu — amador de formas e de cores — a surpreender aspectos não marcados nos polvilhos de luz da hora dilucular; a assistir aos triunfos da claridade nesses céus altos; a notar qual a beleza, sempre nova, dos gumes violáceos das serras depois que o sol se afunda por detrás delas, e, nesse crepúsculo do saudade, o tom das tintas nas quebradas dos montes, nas ramas dos arvoredos, e como a sombra se espiritualiza e reza em noites de luar verde… Ver como as árvores em fila escalam as lombas dos montes para, romeiras, alcançarem ermidas milagrosas ; nas cristas das serras, no âmbar - vitral da luz poente, as copas dos pinheiros e dos sobreiros isolados se despegam dos seus troncos, e, místicas, se suspendem nos céus. Não foi como eu, amoroso da tradição, em busca das pegadas do passado — poalha de luz desfeita mas que nos ilumina ainda, nos aquece e nos arraiga à terra onde os nossos foram nados, criados o manteúdos.

Bem diferentemente, o arcebispo ia, de surpresa, conhecer do perto esse formigueiro de gentes serranas, policiar a vida dos pastores barregueiros dessas bravas ovelhas, cuidar da sua fazenda e de seus meneios (entrar em muito passal e em muito casebre esfumado) e. sobretudo, curando do desculto, que devia ser grande, doutrinar a todos com a palavra crista do catecismo, edificando-os com os sacramentos— confessá-los, crismá-los.

Porém, repito, o prudente arcebispo, que, nas serras, se alimentava do presigo da «vaca» e, afeito a descomodidades, da bonomia do «riso», jornadeava vagarosamente, na sua mula romana, arreada de coiro coberto de veludo verde, no peitoral, na retranca e nos antolhos, bifurcado em inóspita sela de arção alto, entre coldres e alforges ; — e eu voo sobre coxins de elásticas molas, num auto veloz, de muitos cavalos de força, leve, impulsivo, brilhante, tomado da vertigem das velocidades do viver moderno, em que tudo se faz de-pressa, a correr, a fugir, numa vivacidade esperta, — num relâmpago de luminosidade estonteante.

Vou de cara para o sol nascente. Deixo a cidade. Deixo Peões. Vê-se o Bom-Jesus-do-Monte. de perfil, com as suas capelas tocadas de luz quente. Sameiro — torres afitadas de sol. Mais longe, no alto, a capelinha da Falperra — de rosa. Vinhas de enforcado. Campos de trigo. Principia a serra do Carvalho. Fresco. Em baixo, à esquerda, o vale do Fojo, cheio de prados, campos de pão, árvores, freguesias. Larguíssimo, fertilíssimo. Um nevoeiro branco, rés com a terra, enche-o todo. Parece um lago coalhado. Paisagem de fumos, de vapores, de cinza clara. No fundo, de leite anilado, as frondes das árvores saem da água — da bruma — como ilhas emergindo do mar. Nesta tinta, as massas verdes do arvoredo transformam- se em massas azuis diluídas. No alto, alêni; os cabeços dos montes são rosados ; e à direita, na encosta, o sol rasteiro pincela ouro verde nos tojos e nos fetos temos
Lugar de Pinheiro.

Castelo de Lanhoso, sobre uma enorme rocha negra. Tem a sua história de amores trágicos : Rui Pereira, alcaide-mor medieval, sabendo que sua mulher estava lá dentro «embaraçada comum frade de Bouro», cerrou as portas e pôs fogo ao castelo. Ardeu tudo: a adúltera, o frade, os criados. — Os criados ?

— Sim, porque, sabedores da maldade, nada disseram ao alcaide.

Igreja-Nova, no meio de verduras. Serra da Morosa. Vista larga. Nos campos, punge um milhinho de mês. Serra da Cabreira ao fundo, longe. Começa a cordilheira do Gerez, do lado de lá do vale de Vilar da Veiga, — verde, largo, fecundo. Em baixo, o Cávado. Branqueja, no alto. São Bento da Porta Aberta. Enorme romaria aí em Agosto. Grandes promessas : arcadas e cordões de ouro, teias de linho, juntas de bois, e amortalhados, dentro de caixões do defuntos, a que pegam quatro latagões a suar em bica : — família. Sempre a seira. Cimos alcantilados ; penedos de violeta espessa; lombas escalvadas: tufos de verdes duros nos barrancos que pregueiam os montes, de alto a baixo. A' ilharga, verdura de milhos. O Cávado, no fundo, azul, estreito, mas prestadio. Centeios secos. O auto roda vertiginoso, na estrada branca, entre duas tintas: azul e verde. Azul, de lá, da massa colossal do Gerez ; verde, de cá, nas verduras molhadas dos pastos em terras aos socalcos, pela encosta acima, nas copas de castanheiros novos, de folha tremente.

Salamonde. Casas miúdas, caiadas. Telhados com pedras a segurar as telhas. Alpendres. Espigueiros vermelhos. No maciço azul da cordilheira, na encosta rasteira, lá vai o nastro amarelo e medrado da estrada das Caldas ; no alto, trepam os riscos claros, aos zigue-zagues, dos carreiros humildes de pé posto, — caminhos de serra. Oliveiras.

Ruivães. A' saída, luz, muita luz. Sempre o Gerez, de espinhaço recortado. Em baixo, o Rabagão, encastoado em pedregulhos. Que altura! Maravilhoso. O Buick pára um instante. É o Gerez em toda a sua imponência. Formidável! Belo! Anfractuoso, de cristas recortadíssimas, alcantis sobre alcantis, massas azuis para além de outras massas azuis, de valores diversos, toando-se uns nos outros, inundados de luz poderosa que se esparge da imensidade do céu de azul ferrete com nuvens de neve. Maravilha! Maravilha! Quem me dera morar aqui defronte para estudar de perto, em estações diferentes, a horas diferentes, como as lombas desta enorme serra, de mil quebradas, de mil anfractuosidades misteriosas, reagem sob a luz que as desperta e as sombras que as mancham, e que, uma e outras, as poeiram de coloridos imprevistos. Mas já o automóvel freme, arranca, besoira, foge. A estrada desce, às voltas, seguindo do alto penhascoso, as curvas do Rabagão azul-violeta, no fundo.
Venda-Nova.

Agora, para as Alturas, é a cavalo, através da serra sem árvores, em chão roxo pelas flores das queirogas e amarelo pelas flores da carqueja : — montes de mosto onde chovesse saraiva de enxofre… Ao redor, montanhas altas e varridas. Começa a ver-se, à esquerda, em baixo, um longo vale abeberado de verdura e de fartura, que se prolonga, formando o planalto da aldeia das Alturas, e se estende para lá, até às veigas fartas de Boticas. Serras em torno. Numa aberta, entre dois montes roxos, o Cubelas azul, com claros de queimadas. Acolá, uma lomba toda topázio, — flores de carqueja; lado a lado de outra toda ametista, — flores das carrascas. Entre os verdes das torgas, das estevas e dos tojos, predomina a cor roxa das queirogas, a alastrarem-se por tudo. E' uma paisagem de serranias lilases com chapadas verdes de toucas de carvalhotos a tufarem os barrancos das serras por onde, no inverno, galoparão enxurradas barrentas. Tintas de esmalte, claridades de cristal. Tanta cor! Tanta luz! Que o Senhor seja louvado!

Numa dobra, Sarcuzelo. Lá em baixo, e nos pendores das montanhas, escorridas de prados, a veiga é toda recortada em campos murados, muitos, aos xadreses irregulares, de verdes diferentes: — os dos lameiros húmidos, os dos centeios a acabar de secar, os do milho tenro a romper. De castanhos diversos : — os das terras revolvidas, os das terras lavradas, os dos campos ceifados de fresco. Fileiras de árvores. Água. Fertilidade. No meio da verdura, do fundo i)s encostas, acolá, alem, esparsas, Pegoso; Currais, Ladrujães — povos muito unidos, de aspecto espanhol, nas suas casas terrentas de paredes sem cal, nos telhados de colmo enegrecido pelas invernias. Amplidão. Imobilidade. Silêncio. Não se vê ninguém, Aquele único homemzarrão, acolá, na lomba de um monte, isolado, sob o céu infinito, parece uma figura colossal de Rodin a meditar a eternidade. Os pardais, distantes, cantam, o seu canto dilata o silêncio…

Ao sul, a Portela Velha, que faz extrema para o concelho de Basto; pegado, a serra de Maçã, onde os povos botam em comum os gados ao pasto ; a poente, a serra da Cabreira; depois, a cordilheira do Gerez; a seguir, a Pegosa com seus pendores para o vale farto das Alturas. No horizonte, nos confins do norte, o Pico do Larouco, e nos do sul, o Marão — manchas mal distintas de fumo azul diluído em cinza. Vê-se daqui para muito longe, muito, no panorama de serras desoladas onde vivem lobos e javalis, e sobre que pairam milhafres a peneirar no ar suas asas largas — os olhos fitos nos matos, em busca de presas. E neste ondulante mar esverdido, de montes vagueiros e baldios, sem árvores e sem cultura, sobe aos céus, contra os homens, a queixa amargurada das terras que querem ser mães de florestas úteis e belas, que aproveitem às gentes e, em sua beleza vasta e religiosa, agradem a Deus. Ninguém se serve delas. Ninguém entende seus humanos anseios de amor fecundo. Sofrem. A única alegria destes maninhos desprezados, que os homens pisam sem ver ou veem sem estimar, é aquela romaria anual de luz, de cores e de perfumes silvestres.

Foi por aqui, por estas serras escalvadas, por estes prados verdes — terras de pastores e de lavradores que viviam então (como ainda hoje, em parte, vivem) em puro regime agrário, pegural e silvícola, para as searas, para os gados, para os tojos, para as lenhas e para as águas; - foi por aqui que, há trezentos anos, andou Frei Bartolomeu dos Mártires. Deve ter parado nestas aldeias e dormido nestas casas negras, construídas de enormes pedras desaparelhadas, postas umas sobre as outras, sem argamassa nem cal, cobertas de canas de milho e de palhas centeias enegrecidas, seguras com pedregulhos e compridos troncos de carvalhos novos. Deve ter representado o papel do homem do acordo, compondo partes desavindas por causa de extremas ou do moinho do povo, do forno do povo, do touro do povo e do carvão do povo; e assistido aos magnos conselhos das gentes de vereio, reunidas, nos cabeços dos montes, pelo buzinar da carrapita das selvas, a arranhar o ar, de oiteiro em oiteiro, de quebrada em quebrada. Que espanto, quando o viram chegar sem haver publicado a sua visita!

Estou a ver o arcebispo de Braga, montado na sua mula branca, um pouco dobrado, vestido de estamenha domínica, seu chapéu verde com borlas pendentes. A cabeça, de fronte alta, sai-lhe da cogula do hábito. Avoluma-se, no carão comprido e moreno, o grosso nariz ; e uns pequeninos olhos estrábicos encovam-se sob a arcada das sobrancelhas — linha serena e de mando. A boca, ora ruda ora de feição, sorri pausada ; e o olho direito do seu olhar torto mira com segurança.

Está no meio de muito povo.

Frei Bartolomeu chegou de surpresa e os homens destas montanhas não tiveram tempo de vestir a sua nissa de rabos, nem as mulheres, os seus jaqués, com pestanas, de pano preto, ou de pôr a sua capela de briche, — roupas dos dias de festa.

Recebem-no conforme estão : uns, do calções de alçapão, polainos botoados ato à cinta, sombreiros bragueses de grandes abas, fartas capas do Saragoça; outros, com suas gorras de coelho bravo, seus safões de pele de lobo. Alguns, de coroças do palha centeia, hirsutos, parecem porcos espinhos. Vão para o trabalho e levam ao ombro a enxada ou a foice roçadoira; outros, sogas de bois ; e os pastores, cajados, mantas e surrões de pele de ovelha. Todos ostentam varapau para tomar o gado — para o que for preciso. As caras são fortes e toscas. Os olhos, negros e de espanto.

As mulheres saíram dos seus colmates, e puseram-se a clamar umas pelas outras, em alvoroço, como se ouvissem sinos a tocar a rebate. Acorrem apolainadas, com capuchas de burel na cabeça grenha, e mil remendos castanhos de trapos diversos no casibeque sem cinta, atacado com atilhos de coiro, mal achegando os seios esbamboados. Trazem um e dois filhos, ao colo, enfaixados em fateiías de briche, e o resto da ninhada suja presa das suas saias de xerga.

Na frente do grupo há um clérigo, sanguíneo, de táurea cachaceira, de tamancos e barba de oito dias, — valente garanhão descido da sua residência com a filharada atrás de si.

Os homens encaram no arcebispo com espanto ; as mulheres, com devoção pasma. Nos seus olhares há a estranheza do isolamento e a independência da serra. Frei Bartolomeu era a cidade que subia a eles. Era um outro mundo.

— Como veio de tão longe ? Não pode ser ! Um arcebispo ?

Nos olhos incrédulos de algumas mulheres, com os saiotes pela cabeça, vê-se a ânsia de pôr as mãos no corpo de Frei Bartolomeu, tocai-lhe com os dedos, a certificarem-se se ele é de carne e osso — como os mais. O garoto, de cabelo chamorro, cortado às escadas pelas tesouras rombas das achavascadas das mães serranas, veio a correr, e caiu de joelhos, de mãos postas, diante dele, como se fora santo. Vacas barrosas, de tornozelos finos, pontas em lira e grandes olhos doces, que desciam para ao prados ; ovelhas que iam para o monte; — param com seus guardas à frente. Os cães de gado ladram. Ajunta-se ao grupo um almocreve de colete de lebre, com a cabeça atada num lenço encarnado por debaixo do braguês. Ia atravessar a serra com a sua recua de machos carregados de sacos de carvão. Parou também. Parece um contrabandista da Serra Morena.

Nos verdes dos prados e sobre os fundos azulinos das montanhas, formam todos, homens e mulheres, em volta do arcebispo, uma massa parda nos tons acastanhados dos rascadilhos, dos buréis, dos briches, das serguilhas, que lhes cobrem os corpos a rescender ao raposinho dos rebanhos, à calentura ácida dos currais e ao bodum dos odres azeiteiros. Da estopa da estupidez e dos tomentos da opaca incultura são também asperrimamente tecidas essas almas de brenha. Vê-se nos rostos. Está patente. São muitos e empurram-se, e calcam-se para, metendo as cabeças por entre as dos outros, verem mais de perto o seu arcebispo, que quer apear-se da mula e não o consegue.

Era aqui, no meio dos seus paroquianos, o lugar de Frei Bartolomeu, ele que, em Trento, atacou, com voz de trovão, numa assembleia adversa, os bispos opulentos que não residiam nas suas dioceses e somente delas se serviam para arrecadar as rendas — como pastores que das ovelhas só queriam o «leite e a lã», não cuidando de apascentar o rebanho que Deus lhes dera para guardar e conduzir h salvação. Era aqui o seu lugar — pobre no meio de pobres : pequeno no meio de humildes.

Como ia longe o tempo em que um João de Médicis usufruía três conezias, nove paróquias, quinze abadias. Um cardial de Lorena era arcebispo de três arcebispados, bispo de quinze bispados. E um D. Jorge da Costa, antecessor de Frei Bartolomeu dos Mártires na cadeira bracarense, possuía ao mesmo tempo, sem nunca haver saído de Roma, dois arcebispados, cinco bispados, treze abadias, oito deados, dez priorados, afora vários benefícios de pingues igrejas particulares.

Ao contrário desses, Frei Bartolomeu vivia unicamente das rendas da sua cadeira, e visitava, igreja a igreja, as trezentas freguesias do seu arcebispado, fossem elas nas inóspitas montanhas barrosãs; entre povos selvagens como estes.

O arcebispo, que passou o dia inteiro a pregar, a crismar, está agora sentado, à sombra de uma velha carvalheira e ensina o catecismo a muitos rapazinhos que estão acocorados no chão, à volta dele. E' paciente. Na sua cara bronzeada clareia a paz do humor benévolo.

— Quantos são os mandamentos da lei de Deus? — pregunta a um pequeno de olhitos vivazes.

— Dez! — responde, pronto o rapaz.

— Quais são ? Logo o mocinho, expedito, espalma as mãos muito abertas, com dedos muito afastados, e. batendo no ar, diz absolutamente seguro de si:

— São estes.

Era tudo quanto sabia.

Já cai a tarde. Voltam aos currais as vacas, as ovelhas e os cabritos. Alastra-se o fumo nos colmos dos casais. Esfiam-se véus de bruma anilada por sobre os ribeiros de veiga das Alturas. O arcebispo dirige-se agora a um moço de lavoura, atarracado e achamboado, que, de longe, o olha, num sorriso baço de estupidez estagnada.

— Oh de lá, (que entendes tu por Santíssima Trindade?

O labrosta espanta-se. Todos os da roda se voltam para ele, que gagueja:

— Entendo, entendo… (masca as palavras, coça a cabeça, sempre espasmado no mesmo sorriso boçal) — entendo…que ela é irmã de Nossa Senhora.

Anoitece de todo. O arcebispo levanta-se e retira-se. O rapazio segue-o; e as mães dos pequenos, tomadas do espírito religioso da luz crepuscular nas serras, e vendo diante delas, naquela hora benta das Ave-Marias, um arcebispo que se lhes afigura santo, começam a entoar o Bem-dito, — como se fora ao Senhor fora. E assim, com as suas capuchas de burel pela cabeça, como freiras, acompanham Frei Bartolomeu à sua humílima pousada.

Nisto, topam uma manada de apojadas vacas, que, dos prados, seguem para os currais, e logo o boieiro põe a vacada na cauda do cortejo, como em certas rústicas procissões daquelas aldeias, em que os gados também iam, atrás, com os cornos festoados de rosas silvestres e os pescoços enramados de carvalhos — procissões tão pobrinhas que, à falta de andores, os aldeões levavam os santos nas mãos, devotadamente apegados ao peito.

E o cortejo de Frei Bartolomeu lá segue vagaroso, religioso, pelos caminhos velhos daqueles povos serranos. De onde a onde, por entre os cantos lamentosos do Bem-dito, ouve-se um longo mugido de vaca que se lembra da cria — pesaroso como um sino do aldeia, a dobrar ; o todas estas vozes se toam na tinta cinzenta do silêncio magoado do anoitecer, no fundo daquele vale entre altas serras trasmontanas…

Há trezentos e cinquenta e três anos!

Antero de Figueiredo

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