terça-feira, 31 de maio de 2016

OUTROS CONTOS

«Improviso para Duas Estrelas de Papel», por Mário Cláudio.

«Improviso para Duas Estrelas de Papel»
Conto de Mário Cláudio

802- «IMPROVISO PARA DUAS ESTRELAS DE PAPEL»

São estrelas construídas sem paciência nem esperança, tão dadas às espirais da tormenta como ao toque silícico das longas línguas de saibro.

No chão articulam o catre-de-campanha, estremecem no abraço pelo trepidar do autocarro, erguem-se na madrugada para o duche repentino. Despertam o filho de bruços no beliche inferior, retiram-lhe o pijama, vestem-no para a escola. Saem para a rua onde rompe acarvoada a manhã, e os jornais pendem lívidos dos escaparates, e longas fileiras se cerram compactas nas paragens hirtas. Na chuva escalam o casario azul, com uma catedral sombria dominando vidas, varandas deitadas para vielas escorregadias, paredes de seminários e palácios transidas de invernia e musgo esfarelado. Exercitam a ternura contra uma e outra perspectiva de clarabóias e miradouros, telhados e escadórios, fachadas de azulejo e mercados marginais. Ficam sem escuna que os receba, Simões Botelho por sentenciar, os dentes cerrando todos os desafios, resignados às mãos entre mãos. A si mesma se cerca a cidade, exterminando o espaço em seu redor, concentrada lei que nenhuma infracção humaniza.

Começam insofridas por ensaiar o voo muito junto à terra, entre a extensão das searas e a cúpula aberta e translúcida.

Deixam um automóvel arfante, invadem o jardim dos organismos públicos, cortam a compósita flor que para sempre enquadra o dia. «É preciso morrer», dizem, encostando à boca o espelho dos moribundos; «é preciso beber», dizem, descobrindo países. Pernoitam em hospedarias clandestinas, com telefones desligados de medo, ramas de pinheiro, marcas de cerâmica, lâminas. Para eles se aparta o reposteiro escarlate, se lhes deparam os retratos régios, estáticos de veludos e carbúnculos, a história se entorpece de minúsculos canteiros interiores e de buxo.

No rasto das estrelas, pelos sulcos da fome, se abandonam guiados, tranquilos e loucos, Joana perseguindo o cadáver do homem pelas estradas de Espanha adustíssima, entre chufas de canalha e excrementos de mula.

O filho relata a estranha genética, reclama o direito de resultar, como todos os filhos que se sabem, do ventre virgem do pai. Divide a giz brinquedos e cobertores, fábulas e passeios de domingo.

Como diferem das estrelas as estrelas, rochas de fogo que nunca se cruzam, seguem além de além, trajectória que não se interrompe nem altera!

Realizam assim seu contrabando de violetas bravas, à revelia de mulheres legítimas e amigos estatutários. Dormem pelas valetas, acordam sacudidos de riso, a bombazine das calças tingida do amarelo poeirento das mimosas. Alimentam-se de pão e de queijo e de vinho clarete. Descansam a sesta contra a nave dos conventos galegos, com seus retábulos de oiro e seus palmares, trazidos ambos de uma América que os olhos de um nos olhos de outro já não precisam de alcançar. Adormecem de novo entre textos rascunhados, rápidas passagens do Requiem. Decifram quase o mistério dos alfabetos ibéricos, no vestíbulo do sono onde vogam hipocampos atónitos, perpassam esteiras súbitas de submersos meteoritos.

O movimento das estrelas acontece ainda em quartos de tecto baixíssimo, onde os cinzeiros se entornam, as bofetadas estalam, o choro rebenta.

Na destrambelhada noite do equinócio escolhem a forca dentro de casa, dobram-se de angústia sobre a estopa da otomana, evadem-se vomitando entrechos avulsos pelo veloz labirinto dos faróis. Assim se lhes tocam os dedos nos mamilos das raparigas de mármore, ou de cerosas folhas de camélia se lhes cobrem, descerrando os cadernos nas margens do lago. Os cães ladram no faro da senda que levam, e um noitibó lhes indica o atalho da saída.

Atrás das estrelas correm, por elas arrastados, a vontade no sentido delas transpondo abismos, peregrinando por capelas de seu culto, a que outras pombas se abrigam sempre que chove. No sol se confundem, nas esferas de refulgência, fazendo crepitar as pontas nas trevas de uma íris igual.

As crónicas antigas jazem arquivadas nas gavetas dos contadores de marfim, nas prateleiras dos imensos copeiros espanhóis, nas vitrines iluminadas de faces que o bafo embacia. Ora se lhes repousa a cabeça no ombro um do outro, ora se cortam os laços, ajoelhados e acenando na aresta mais fria da cama.

Fatigadas as estrelas se esfarrapam, tombam em pedaços de enfolipado papel-de-seda, e a armadura das asas é uma caveira de arames e madeira e cola ressequida. Mas os longes duram sempre, sempre duram, para quem quer que retenha os fios enredados.

Mário Cláudio

segunda-feira, 30 de maio de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

ECHO & THE BUNNYMEN - «The Cutter»

Poet'anarquista

O CORTADOR

Quem está no sétimo andar
Borrando alternativas?
O que está na gaveta de baixo
Esperando dar coisas?

Poupe-nos do cortador
Poupe-nos do cortador
Não cortaria a mostarda
Vou me conquistando
Até eu ver outra barreira se aproximando
Diga que podemos, diga que iremos
Não é só apenas outra gota no oceano

Venha libertar a todos
Com durex e facas
Alguns de nós têm seis pés de altura
Vamos escapar de nossas vidas

Sou a alegria perdida
Ainda vou recuar
quando a pele se perder
Sou digno de cruzar
Eu ainda estarei sujo
Quando a sujeira for limpa

Vou me conquistando
Até eu ver outra barreira se aproximando
Diga que podemos, diga que iremos
Não é só apenas outra gota no oceano

Observe os dedos fecharem
Quando as mãos esfriarem

Eu sou a alegria perdida
Eu ainda estarei sujo
Quando a sujeira for limpa

Echo & The Bunnymen
Banda Inglesa

OUTROS CONTOS

«16 Linhas Cravadas», por Mário Lago.

«16 Linhas Cravadas»
Namorados/ Cândido Portinari

801- «16 LINHAS CRAVADAS»

Lu foi comprar o queijo que Dalmo queria para o lanche. Na rua, encontrou Miro, que namorava quando tinha 15 anos e era virgem. Foram andando na companhia das lembranças. As novenas… o cinema nas matinés de domingo… os bailes no clube dos Marujos, os dois dançando sempre ao fundo do salão porque, se o pai dela visse o agarramento, era escândalo na certa e o soco do velho Justa doía mais que coice de mula… o mato escuro no fim da rua…

- Eu moro aqui. Quer entrar?

Miro foi o primeiro homem de sua vida e, na época, ela ficou sem saber direito o que isso é. O rapaz tinha 17 anos e também era virgem.

- Quer entrar?

Lu cedeu à curiosidade, entrou e conheceu delícias. Naquela noite, Miro ia a São Paulo, ela foi junto. De lá, seguiram para a Europa, Lisboa, Madrid, Paris, Roma, Berlim, Londres… Céus de diversos tons de azul, colchões e rostos diferentes… Um dia ela pensou no que fizera a Dalmo: nem sequer um telefonema de adeus. Ele não merecia. Tão amoroso, gentil. Estavam em Stutgart, Miro dormia o sono solto. Correu para o aeroporto. Era o fim de tarde quando Lu entrou em casa e, antes que Dalmo quisesse saber a razão daquela ausência de dois anos e meio, ela mostrou o embrulho e falou como se tivesse saído ainda há pouco.

- O queijo que você quer para o lanche.

Mário Lago

domingo, 29 de maio de 2016

SÁTIRA...

Tempestade num Copo de Água
Sátira...

«TEMPESTADE NUM COPO DE ÁGUA»

- O défice a agravar,
E situação controlada…?
Zé, não percebo nada,
Ainda podemos confiar??
- Raios te parta o pensar!...
Maria, tem confiança,
Vem aí a bonança
Depois da tempestade…
Houve estragos de verdade,
Mas é preciso ter esperança!

POETA

DÉCIMAS POR MATIAS JOSÉ

Recordando Mário de Sá- Carneiro...

«Dispersão»
Mário de Sá-Carneiro

«DISPERSÃO»

[Excerto]

Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto, 
E hoje, quando me sinto, 
É com saudades de mim. 

Mário de Sá-Carneiro

DISPERSO

Nascido introvertido…
Sem mais nem menos,
Achei os dias pequenos
E as noites com sentido.
Pensei no tempo vivido
E como lhe dar um fim,
A vida é mesmo assim
O que passou, não volta…
Quando se deu a revolta,
Perdi-me dentro de mim!

 Procurei em 'ene' parte
Um rasto do passado…
O relógio tinha parado,
Os ponteiros já sem arte.
Usei porta-estandarte
Como último instinto,
Brindei com absinto
Pra não mais encontrar…
Difícil de me achar
Porque eu era um labirinto.

O tempo passa a fugir
Eu mal por isso dou,
Não sei se ainda estou
Nesse tempo que há de vir;
Quis de mim partir
E dar-me como extinto,
Com certeza indistinto
O que viesse a suceder…
Esteve ontem a acontecer,
E hoje, quando me sinto. 

 Foi traçado o destino
Pela madre que pariu…
Afinal sempre existiu
Esse tempo de menino.
Tudo mui repentino
E sem disso estar afim,
Recordo-me hoje enfim
Dos tempos de criança…
Se me vem à lembrança,
É com saudades de mim!

Matias José

OUTROS CONTOS

«O Único Amigo», conto poético por Juan Ramón Jiménez.

«O Único Amigo»
Morte do Amigo Casagemas/ Picasso

800- «O ÚNICO AMIGO»

Não me alcançarás, amigo. 
Chegarás ansioso, louco; 
mas eu já terei partido. 

(E que medonho vazio 
tudo o que tiveres deixado 
atrás, para vir comigo! 

Que lamentável abismo 
tudo quanto eu tenha posto 
entre nós, sem culpa, amigo!) 

Não poderás ficar, amigo. 
Voltarei talvez ao mundo. 
Mas tu já terás partido... 

Juan Ramón Jiménez

OUTROS CONTOS

«Serão», por Baltasar Lopes.

«Serão»
A Família/ Tarsila do Amaral

799- «SERÃO»

A noite tinha para nós o atractivo das histórias. Depois da ceia, mamãe arrumava tudo e lavava a cara a Lela e Nanduca. Já não havia o receio de sairmos para a cabritagem da rua. Àquela hora tolhia-nos o medo do escuro… Tudo arrumado e rezadas as orações, mamãe e mamãe velha iam sentar-se na salinha, onde já estávamos, acomodados em bancos. A casa enchia-se de meninos. A nossa imaginação vivia apaixonadamente no mundo variado que as histórias criavam. Acaçapado ao pé de mamãe velha, o Baluca também fazia parte do serão, de orelhas caídas e cabeça pensativa, como se estivesse recordando as roncações da sua mocidade com as cadelinhas levianas que lhe davam trela.

Grande contadeira de histórias era Nhá Rosa Calita, velha pretona a quem os rapazes trocistas chamavam Camões, por lhe faltar um olho em virtude de pau-de-finado mal curado. E que lábia que ela tinha! Era um gosto ouvir-lhe referir aqueles casos todos, contos de meninos presos, a engordar, dentro de caixas grandes, por velhas feiticeiras, pastorinhos que casavam com a filha do rei, rapazotinhos sabidos que tinham enganado Aquele Homem – pelo sinal da Santa Cruz – e as demoniarias das feiticeiras que iam ao Esponjeiro tomar ordens do seu chefe, um diabo trocista, de cara descarada, e depois saíam, transformadas em bichos, a agoirentar a vida da criatura.

História, história!
Fartura do Céu, ámen!

― Era uma vez uma princesa que andava a correr mundo à procura de Passo-Amor, seu noivo, mas para o alcançar tinha de furar a sola a sete sapatos de ferro:

Acorda, Passo-Amor,
há mil léguas em procura de ti…

Chegou a casa da mãe do vento, e esta escondeu-a dentro de um cancarã. Entrou o filho, muito malcriado, com grande barulho, catã, catã, e disse:

― Aqui cheira-me a sangue real…

Nós todos queríamos mais e mais histórias. A ouvir Nhá Rosa Calita o sono fugia-nos totalmente…

― Certa ocasião havia grande fome na terra. Desde dois anos o mês de Outubro não dera pinga de água para refrescar a planta, já amorrinhada do léu-léu escasso de Setembro. Um homem de Fajã de Baixo vivia na sua casinha com duas filhas, já raparigas, na vida castigada da pobreza. Vocês sabem, pobre é como cama de chão, todos lhe passam por cima. Um dia, assim que os galos deram a última pousa (tinham dormido sem cear), saiu com as filhas a furar a vida onde Deus fosse servido de mostrar a Sua misericórdia. Andou, andou, passou a Assomada do Mancebo, e ali em direitura de Fragatinha encontrou grande estendal de batata conteira num fundo de quebrada. Encheram os balaios, mas o homem, com a voz cheia de respeito, recomendou às filhas:

― Oh, minhas filhas, vocês não dêem a ninguém conta desta senhora comida!

 E seguiam os pormenores da história, em que a humildade e a modéstia eram premiadas com um saco de dinheiro e a cobiça arrogante era castigada com um açoite de pau de tamarindo.

 Mamãe velha dormitava na cadeira de balanço, pois, além de ser já pessoa antiga e ter o corpo queixoso, levantava-se logo assim que os galos davam a última pousa, no alvor nascente da antemanhã. Mamãe, essa, entretinha-se na sua renda de duas agulhas, cuja perfeição de acabado era muito gabada pelas menininhas luxentas da vila. Mas nós, os garotos, ficávamos despertos, de sentido cegueirado nas histórias…

Baltasar Lopes

sábado, 28 de maio de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE JEFF HEALEY BAND
«Nice Problem to Have»

Poet'anarquista

The Jeff Healey Band
Banda Canadense

OUTROS CONTOS

«O Ego», conto poético por Matias José.

«O Ego»
Busto do Poeta Popular António Aleixo

Mote

Eu não sei porque razão  
certos homens, a meu ver,
quanto mais pequenos são
maiores querem parecer.  

António Aleixo

798- «O EGO»

Apregoa-se a humildade
Como nobre sentimento,
Encontras um num cento
Que a pratique de verdade.
Primeiro está a vaidade
Com o ego à condição,
Assim age o sabichão
Até inchar dentro do fato…
Tamanha falta de tacto,
Eu não sei porque razão!

Doutorados em palreio
Sabem de cor o reportório,
Não aceitam contraditório
Por estarem de papo cheio.
Quem se mete pelo meio
Acaba sempre por ceder,
De tudo julgam entender
Estes mestres da sabedoria…
Chegam a causar azia
Certos homens, a meu ver.

Se alguém lhes faz frente
Com argumentos válidos,
Os seus discursos pálidos
Mostram o lado incoerente.
Querem ser mais que gente
Cabendo na palma-da-mão,
Entram em contradição
As vezes que for preciso…
Maior a falta de juízo,
Quanto mais pequenos são!

Pode marcar a diferença
No saber, ser comedido…
Faz de todo mais sentido,
Mas ninguém nisso pensa.
Não mostrar indiferença
E com o outro aprender,
A partilha desse saber
Valor não terá menos…
Quanto mais pequenos,
Maiores querem parecer!  

Matias José

sexta-feira, 27 de maio de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

MARIA JOÃO PIRES
«Mozart/ Sonata para Piano»

Poet'anarquista

Maria João Pires
Pianista Portuguesa

OUTROS CONTOS

«Vénus Momentânea», por Manuel Teixeira-Gomes.

«Vénus Momentânea»
Detalhe/ O Nascimento de Vénus
(Sandro Botticelli)

797- «VÉNUS MOMENTÂNEA»

Vento mareiro fresco, encapelando levemente a água, em ondas verdes, floridas de espuma efémera. Aragem que sacia os pulmões.

À sombra de um leixão, deitado na areia seca e fina, eu lia ver­sos, respirando o ar iodado, ou corria com a vista a curva do vasto hori­zonte, embalado pela canção cristalina do mar.

Perto da praia, o casco todo negro, pesado e sem graça, de um vapor, com uma grande bandeira vermelha desfraldada à popa, e logo o contraste: um iate cinzento-claro, que se balouça com elegância.

De todos os pontos do horizonte surgem a cada instante as velas dos batéis de pesca, velas agudas, que se cruzam como asas simbólicas, que se perseguem, que se reviram e param, que prosseguem dispersas, precipitadas, numa desordem de fuga, ou caminham reguladamente em grupos, de conserva, e tudo vai direito à barra, cuja entrada estreita um rochedo esconde.

Outro batel, com a vela toda panda, sai, sozinho, a barra e entra no mar saltando sobre as ondas de vidro verde, franjadas de espuma, como cavalo fogoso que atravessa um prado cheio de erva.

O céu, de um azul intensíssimo, está como que esponjado de peque­nas nuvens; a Ponta do Altar perfila-se com o seu recorte siracusano, e pouco a pouco, ao declinar do Sol, acende-se em oiro.

Vai vazando a maré, alargando-se a mais e mais a faixa de areia molhada onde o céu se reflecte como num infinito espelho...

Era a hora da tarde em que os banhos recomeçam, e como de costu­me, naquela praia cheia de recortados leixões, os banhistas despiam-se junto às rochas pendurando nelas o seu fato.

Em volta do leixão, a cuja sombra eu me acolhera, havia roupas de mulheres, que sem dúvida pertenciam ao grupo de serrenhas que ali próximo, de mãos dadas e soltando gritos selvagens, tomavam à babugem da água um desses infindáveis banhos aconselhados pelos preceitos da higiene sertaneja. Pareceu-me reconhecer nelas umas criaturas sem interesse, com que amiúde me cruzara pelos caminhos, entre as quais sobressaía certa moça forte, cheia e espadaúda, que andava sempre de olhos baixos, exibindo um pudor que ninguém, certamente, desejaria ofender.

Naturalmente, a minha vista não se distraía do encanto da paisa­gem ou da intimidade do livro, para seguir no banho as evoluções mais ou menos grotescas daquelas sereias, quanto a mim muito pouco ou nada voluptuárias, e foi assim que elas saíram do mar, e vieram para o leixão onde estava a sua roupa, e ao qual voltava costas, sem eu dar por tal.

De repente, senti que alguém tossia, fazendo-o para chamar a minha atenção. Voltei-me instintivamente: era a serrenha pudenda que se limpava, acocorada, numa anfractuosidade da rocha que formava nicho.

Tão depressa verificou que se encontrava em foco, ergueu-se, abriu os braços e soltou o lençol.

Prodígio de elegância, perfeição e graça escultural, se me patenteou então o seu corpo enrijecido pela frialdade da água, cujas gotas ainda lhe escorriam pela carne marmórea. O peso da água afeiçoara-lhe na cabeça hirsuta um toucado de estátua antiga, e os seios disparavam como duas pombas que vão voar.

Impassível, sem um sorriso e lentamente - tal uma estátua em pedestal móvel -, ela rodou sobre si mesmo, franqueando à minha vista sôfrega as mais secretas maravilhas do seu corpo.

Terminada a volta agachou-se, meteu-se no lençol, e chamou por outra mulher, que a veio limpar.

Daí a nada passava por mim já vestida - entrouxada nas suas vestimentas de serrenha lorpa -, arrastando os sapatos de bezerro, estúpida, a boca mole e inexpressiva, os olhos baixos...

Espreitei-a depois, no banho, vezes sem conto, a ver se a cena se repetia, mas inutilmente.

Outras tentativas, de natureza mais prática, foram igualmente infrutíferas...

Concluí que assistira, por acaso, à passagem pelo seu corpo de uma alma de nereida encontrada dentro de água e enganada pelo aspecto helénico daquela praia...

Manuel Teixeira-Gomes

quarta-feira, 25 de maio de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

MILES DAVIS
«Miles Run the Voodoo Down»
Poet'anarquista

Miles Davis
Trompetista e Compositor de Jazz Norte- Americano

OUTROS CONTOS

«O Homem», por Sophia de Mello Breyner Andresen.

«O Homem»
São José com Menino ao Colo/ Locatelli

796- «O HOMEM»

Era uma tarde do fim de Novembro, já sem nenhum Outono.

A cidade erguia as suas paredes de pedras escuras. O céu estava alto, desolado, cor de frio. Os homens caminhavam empurrando-se uns aos outros nos passeios. Os carros passavam depressa.

Deviam ser quatro horas da tarde de um dia sem sol nem chuva.

Havia muita gente na rua naquele dia. Eu caminhava no passeio, depressa. A certa altura encontrei-me atrás de um homem muito pobremente vestido que levava ao colo uma criança loira, uma daquelas crianças cuja beleza quase não se pode descrever. É a beleza de uma madrugada de Verão, a beleza de uma rosa, a beleza do orvalho, unidas à incrível beleza de uma inocência humana. Instintivamente o meu olhar ficou um momento preso na cara da criança.

Mas o homem caminhava muito devagar e eu, levada pelo movimento da cidade, passei à sua frente. Mas ao passar voltei a cabeça para trás para ver mais uma vez a criança.

Foi então que vi o homem. Imediatamente parei. Era um homem extraordinariamente belo, que devia ter trinta anos e em cujo rosto estavam inscritos a miséria, o abandono, a solidão. O seu fato, que tendo perdido a cor tinha ficado verde, deixava adivinhar um corpo comido pela fome.. O cabelo era castanho-claro, apartado ao meio, ligeiramente comprido. A barba por cortar há muitos dias crescia em ponta. Estreitamente esculpida pela pobreza, a cara mostrava o belo desenho dos ossos. Mas mais belos do que tudo eram os olhos, os olhos claros, luminosos de solidão e de doçura. No próprio instante em que eu o vi, o homem levantou a cabeça para o céu.

Como contar o seu gesto?

Era um céu alto, sem resposta, cor de frio. O homem levantou a cabeça no gesto de alguém que, tendo ultrapassado um limite, já nada tem para dar e se volta para fora procurando uma resposta: A sua cara escorria sofrimento. A sua expressão era simultaneamente  resignação, espanto e pergunta. Caminhava lentamente, muito lentamente, do lado de dentro do passeio, rente ao muro. Caminhava muito direito, como se todo o corpo estivesse erguido na pergunta. Com a cabeça levantada, olhava o céu. Mas o céu eram planícies e planícies de silêncio.

Tudo isto se passou num momento e, por isso, eu, que me lembro nitidamente do fato do homem, da sua cara, do seu olhar e dos seus gestos, não consigo rever com clareza o que se passou dentro de mim. Foi como se tivesse ficado vazia olhando o homem.

A multidão não parava de passar. Era o centro do centro da cidade. O homem estava sozinho, sozinho. Rios de gente _ passavam sem o ver.

Só eu tinha parado, mas inutilmente. O homem não me olhava. Quis fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Era como se a sua solidão estivesse para além de todos os meus gestos, como se ela o envolvesse e o separasse de mim e fosse tarde de mais para qualquer palavra e já nada tivesse remédio. Era como se eu tivesse as mãos atadas. Assim às vezes nos sonhos queremos agir e não podemos.

O homem caminhava muito devagar. Eu estava parada no meio do passeio, contra o sentido da multidão.

Sentia a cidade empurrar-me e separar-me do homem. Ninguém o via caminhando lentamente, tão lentamente, com a cabeça erguida e com uma criança nos braços rente ao muro de pedra fria.

Agora eu penso no que podia ter feito. Era preciso ter decidido depressa. Mas eu tinha a alma e as mãos pesadas de indecisão. Não via bem. Só sabia hesitar e duvidar. Por isso estava ali parada, impotente, no meio do passeio. A cidade empurrava-me e um relógio bateu horas.

Lembrei-me de que tinha alguém à minha espera e que estava atrasada. As pessoas que não viam o homem começavam a ver-me a mim. Era impossível continuar parada.

Então, como o nadador que é apanhado numa corrente desiste de lutar e se deixa ir com a água, assim eu deixei de me opor ao movimento da cidade e me deixei levar pela onda de gente para longe do homem.

Mas enquanto seguia no passeio rodeada de ombros e cabeças, a imagem do homem continuava suspensa nos meus olhos. E nasceu em mim a sensação confusa de que nele havia alguma coisa ou alguém que eu reconhecia.

Rapidamente evoquei todos os lugares onde eu tinha vivido. Desenrolei para trás o filme do tempo. As imagens passaram oscilantes, um pouco trémulas e rápidas. Mas não encontrei nada. E tentei reunir e rever todas as memórias de quadros, de livros, de fotografias. Mas a imagem do homem continuava sozinha: a cabeça levantada que olhava o céu com uma expressão de infinita solidão, de abandono e de pergunta.

E do fundo da memória, trazidas pela imagem, muito devagar, uma por uma, inconfundíveis, apareceram as palavras:

- Pai, Pai, por que me abandonaste?

Então compreendi por que é que o homem que eu deixara para trás não era um estranho. A sua imagem era exactamente igual à outra imagem que se formara no meu espírito quando eu li:                                                
 - Pai, Pai, por que me abandonaste?

Era aquela a posição da cabeça, era aquele o olhar, era aquele o sofrimento, era aquele o abandono, aquela a solidão.

Para além da dureza e das traições dos homens, para além da agonia da carne, começa a prova do último suplício: o silêncio de Deus.

E os céus parecem desertos e vazios sobre as cidades escuras.

Voltei para trás. Subi contra a corrente o rio da multidão. Temi tê-lo perdido. Havia gente, 'gente, ombros, cabeças, ombros. Mas de repente vi-o.

Tinha parado, mas continuava a segurar a criança e a olhar o céu.

Corri, empurrando quase as pessoas. Estava já a dois passos dele. Mas nesse momento, exactamente, o homem caiu no chão. Da sua boca corria um rio de sangue e nos seus olhos havia ainda a mesma expressão de infinita paciência.

A criança caíra com ele e chorava no meio do passeio, escondendo a cara na saia do seu vestido manchado de sangue.

Então a multidão parou e formou um círculo à volta do homem. Ombros mais fortes do que os meus empurram-me para trás. Eu estava do lado de fora do círculo. Tentei atravessá-lo, mas não consegui. As pessoas apertadas umas contra as outras eram como um único corpo fechado. À minha frente estavam homens mais altos do que eu que me impediam de ver. Quis espreitar, pedi licença, tentei empurrar, mas ninguém me deixou passar. Ouvi lamenta­ções, ordens, apitos. Depois veio uma ambulância. Quando o círculo se abriu, o homem e a criança tinham desapareci­do.

Então a multidão dispersou-se e eu fiquei no meio do passeio, caminhando para a frente, levada pelo movimento da cidade.

Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso lado. Pelas ruas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 24 de maio de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

BOB DYLAN - «Early Roman Kings»

Poet'anarquista

PRIMEIROS REIS ROMANOS

Todos os primeiros reis romanos
Em suas roupas de pele de tubarão
laços e botões
botas de cano alto
Drivin ' os picos de
Blazin' dos trilhos
pregado em seus caixões
cartolas e caudas
Voe para longe terminou
Voe para longe bata suas asas
Voe por noite
como os reis romanos adiantados

Eles são vendedores ambulantes e intrometidos
Eles compram e vendem
Eles destruíram sua cidade
Eles vão destruí-lo também
Eles são lascivos e traiçoeiros
A Inferno dobrado para o couro
Cada um deles na maior
do que todos os homens juntos
Sluggers e assaltantes
fantasia anéis de ouro Wearin
Todas as mulheres enlouquecendo
Para os primeiros reis romanos

Bob Dylan
Músico, cantor e compositor norte-americano

OUTROS CONTOS

«Crimes Exemplares», por Max Aub.

«Crimes Exemplares»
Estátua em Paris de René Descartes

795- «CRIMES EXEMPLARES»

Penso, logo existo, disse o tal homem famoso.

As árvores do meu jardim existem, mas não creio que pensem, pelo que fica demonstrado que o senhor René não estava bom do juízo e que o mesmo acontece com outros seres: o meu sogro, por exemplo – existe, mas não pensa. Ou o meu editor, que pensa, mas não existe. E se pomos isto ao contrário, também não fica certo. Não existo porque penso ou penso porque existo. Pensar, pensa-se, existir é um mito.

Eu não existo, sobrevivo, porque viver – aquilo a que se chama viver – só os que não pensam. Os que se metem a pensar, não vivem. A injustiça é por demais evidente.
Bastaria que pensássemos para nos suicidarmos.

Não; senhor Descartes: vivo, logo não penso, se pensasse não vivia, se vivesse não pensava, senhor… etc., etc. Se para viver fosse necessário pensar, estaríamos lúcidos.

Mas, enfim, se os senhores estão convencidos de que assim é, estou inocente, completamente inocente, pois não penso nem quero pensar. Logo, se não penso não existo e, se não existo, como diabo posso ser responsável por essa morte?

Max Aub

segunda-feira, 23 de maio de 2016

OUTROS CONTOS

«Havia Sol na Praça», por Vergílio Ferreira.

«Havia Sol na Praça»
Conto de Vergílio Ferreira

794- «HAVIA SOL NA PRAÇA»

E era assim todas as manhãs. Eu subia a rua para a repartição ele descia-a para a vadiagem. Vinha com as suas grandes barbas numa caranguejola a quatro rodas, puxada por um jerico. Era velho o jerico, devia ser da idade dele, com placas lazarentas a surrarem-lhe o pêlo. E a caranguejola era uma espécie de jangada com várias pranchas pregadas umas às outras. Mas como era aí que ele vivia, em cima dela cabia tudo: manta para dormir, vários trastes de cozinha e às vezes roupa, como galhardetes de um navio, suspensa de um fio a secar. A proa, sentado no traseiro, viajava um cão a gozar a paisagem. E sentado no meio a tocar realejo, viajava ele. Na cidade e redondezas toda a gente o estimava muito. E como resolvera em quatro pranchas o problema da habitação e transportes, também toda a gente o admirava. Os garotos faziam-lhe uma festa quando ele aparecia com a viatura a tocar realejo:

- Eh, Fadista!

Fadista propriamente era o nome do cão. Mas como constituíam uma família e a vida do homem podia cantar-se no fado, o nome de Fadista ficou para ele. A garotada seguia-lhe a caranguejola a bater palmas, mas o homem nem ouvia. Só a polícia embirrava com ele porque, além de perturbar o trânsito, tinha a mania de parar às vezes em certo sítio da praça para catar o piolho. Podia catá-lo noutro lado. Não catava - era ali. Chegava mesmo a despir a camisa para uma pesquisa mais conscienciosa, menos sujeita à contingência da simples apalpação. E, certo dia, levado no entusiasmo da busca, acabou por desapertar outras peças de roupa que já não eram de desapertar. As senhoras que passavam, passavam de olhos no chão ou bastante no ar para não olharem para ele depois de terem olhado. E como ele não sabia que as partes do corpo que se podem mostrar não eram todas as que ele mostrava, a polícia deitou-lhe a mão e levou-o ao posto para o esclarecer.

Teve-o lá um dia e uma noite. Mas o cão fazia um alarido infernal, e havia ainda o burro, De modo que, passada a noite e o dia, soltaram-no outra vez. E um dia que eu subia a rua para a repartição, descia-a ele outra vez para a vadiagem. Até que, depois de fazer a sua ronda por longe, voltou de novo a estabelecer-se na praça. Gostava de certo sítio onde batia o sol, sobretudo no tempo frio, parava o burro e estava ali. Como a caça ao piolho o levara à cadeia, já não caçava. Gostava era daquele sítio batido do sol e de ver a gente a passar. As vezes, quando chegava, atravancando quase toda a rua, os carros buzinavam à volta dele com uma fúria de canzoada, mas ele nem ouvia. Travava o burro, o cão à proa sentado no traseiro, ficavam os três ali, parados ao sol. De modo que as forças vivas da cidade, para clarearem um pouco o aspecto da praça e praticarem a justiça social, meteram-no no as!!? A caranguejola ficou encostada ao alto, no pátio, talvez para ser queimada por altura de mais frio, o cão andava aos ossos pela cozinha e o burro ajudava as carroças que por lá havia. Fadista estava outro, lavado à agulheta, tosquiado, metido numa farda grande de asilado. De uma vez que passei ao pé, lá o vi ao alto no muro, sentado ao sol com os colegas. Tinha um capote castanho com uma gola que lhe subia até ao queixo e um barrete de pala na cabeça.

- Eh, Fadista!

Ele rodou a cabeça devagar, fez-me um gesto brusco com o queixo como a mandar-me aonde não devia. Depois, como havia sempre outras coisas para lembrar, acabei por esquecê-lo. Até que um dia, subia eu a rua para a repartição, descia-a ele outra vez na caranguejola.

Foi o director do asilo que nos contou. Certa madrugada, apanhou o burro e o cão, endireitou a jangada e partiu. Foi passado ainda um mandado de busca ou de captura. Mas como o não encontraram e havia sempre outras coisas para buscar, também o esqueceram. Quando tempo depois voltou a aparecer, na praça, como havia muita coisa burocrática a pôr em andamento, largaram-no de mão. Assim Fadista se estabeleceu de novo na ordem da vida e voltou à praça outra vez. Os motoristas buzinavam à volta dele, diziam-lhe à passagem muitas ordinarices, ele nem ouvia. De modo que, muito tempo antes de ele tirar a camisa, já toda a gente voltava a escandalizar-se. E foi assim que, para aclarar a limpeza da praça e pôr em acção a justiça social, empalmaram-no outra vez e meteram-no outra vez no asilo. Um dia que eu passava cá em baixo do muro, lá o vi ao alto, sentado com uma farda nova entre os colegas. Por um impulso irresistível de solidariedade humana e porque já me fazia falta a sua passagem na rua, parei e disse-lhe lá para cima:

- Eh, Fadista!

Ele rodou o pescoço, olhou-me algum tempo cá em baixo e fez-me um gesto brusco com o queixo como a mandar-me aonde não achei bem que mandasse. Mas desta vez, como nos explicou no café o director do asilo, escavacaram-lhe a caranguejola e desfizeram-se para longe do burro e do cão para ele se não tentar outra vez. A cidade acabara por se interessar pelo vagabundo. Mas escavacado o seu meio de locomoção e havendo sempre coisas novas para lembrar, acabou outra vez por esquecê-lo. Eu, como tinha também sempre coisas novas a lembrar, acabei também outra vez por esquecê-lo.

Até que alguns meses depois, subia eu a rua para a repartição, descia-a ele de novo para a vadiagem. Vinha já de barbas numa caranguejola nova a quatro rodas, puxada por um jerico. Era um jerico muito velho, já com certa relutância em puxar, cheio de placas lazarentas no lombo surrado. A um impulso irresistível de simpatia humana, saudei-o com entusiasmo:

- Eh, Fadista!

Ele sentava-se no meio da jangada cheia de trastes velhos de cozinha tocando gaita-de-beiços, com roupa como galhardetes suspensa de um fio a secar. E postado à proa, sentado no traseiro, viajava um cão a gozar a paisagem. E pouco tempo depois estava outra vez na praça. Estava frio e havia lá um sítio onde batia o sol. Os motoristas deram urros quando o viram, porque a caranguejola era larga e atravancava o trânsito. Guinavam bruscamente com o volante para se desviarem dele e à passagem diziam-lhe tudo. Mas ele nem ouvia entretido a caçar o piolho. Chegou mesmo a abrir a camisa para uma busca mais meticulosa, e certa vez, largado no entusiasmo, foi descendo na procura até a sítios onde já não devia procurar. As forças progressivas da cidade puseram-se outra vez em andamento, mas teve de se esperar algum tempo para acertar a burocracia. Até que tudo se acertou, e um dia que ele passava na praça e nem sequer ficara ao sol, a polícia deitou-lhe a mão e todo o progresso da cidade rejubilou. Certa vez que eu passava cá em baixo do muro, lá o vi outra vez, sentado no parapeito, já metido no capote do fardamento, ao pé dos outros colegas. Por um impulso expansivo de calor humano gritei-lhe cá de baixo:

- Eh, Fadista!

Mas ele, dessa vez, nem me olhou. Tinha o queixo enterrado na gola do capote e assim ficou. Um pouco vexado de me não ligar importância, ao menos para me mandar aonde tinha o mau hábito de me mandar, voltei a berrar-lhe com mais força:

- Eh, Fadista!

As pessoas que passavam olhavam acima e abaixo a medirem-nos aos dois, sorriam e desandavam. E os colegas, desejosos de colaborar, olhavam-me também e tocavam-lhe com o cotovelo. Mas ele, embezerrado, não se mexeu. E um dia que eu voltei a passar ao muro, não o vi lá. Olhei de novo, não o vi lá. E outro dia que voltei a passar, também o não vi. E como a vida tem sempre coisas novas para pensarmos, deixei de pensar nele.

Até que um dia o director do asilo se veio sentar de novo à nossa mesa de café. Era um tipo muito alto e muito progressivo. Acomodou-se à mesa e, como o clube da terra tinha perdido, falou de futebol. Depois, como era muito progressivo e tinha um convívio diário com a justiça social, falou de justiça social. E então bruscamente lembrei-me do Fadista. Que era feito dele? Quando é que ele voltava a aparecer com a caranguejola? O homem, que era muito abonado em ironia, disse-me que de caranguejola? O Fadista? Só se fosse no Paraíso.

- Morreu - clamei eu, iluminado de evidência.

- Mas diga-me o meu amigo o que é que a gente havia de fazer. Nós a querer fazer-lhe bem, ele a teimar. A gente a lavá-lo, ele a encher-se de bicharia. A gente a querer a limpeza da cidade, ele a dizer que não. Foi assim.

- E morreu.

- A gente a querer o bem dele, ele a estragar.

- E matou-se. Enforcou-se.

- A gente a querer corrigir as injustiças sociais, ele a tramar-nos a vida. E desculpem que tenho agora uma reunião.

- E enforcou-se.

- Tenho agora uma reunião.

Levantou-se, tinha agora uma reunião. Estava um dia bonito. Havia sol na praça.

Vergílio Ferreira

sexta-feira, 20 de maio de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

BEN WEISMAN - «Crawfish»

Poet'anarquista

CARANGUEJO

Bem, eu fui para a albufeira na noite passada
Não havia lua, mas as estrelas estavam brilhantes
Coloque um longo gancho na extremidade
E eu puxei o Sr. Caranguejo para fora de seu buraco

Caranguejo

Veja, eu tenho ele, veja o tamanho
Despojado e limpo diante de seus olhos
Olhe a carne doce, fresca e pronto para cozinhar

Caranguejo

Agora pegue o Sr. Caranguejo na sua mão
Ele vai ficar bem em sua frigideira
Se você fritar ele como batata frita você ferve-lhe a razão
Ele vai ser mais doce do que o açúcar quando você levar uma mordida

Caranguejo

Ben Weisman
Pianista e Compositor Norte-Americano

OUTROS CONTOS

«Angústias do Mundo», por António Pedro.

«Angústias do Mundo»
Os Ritos do Silêncio/ Agustín Bejarano

793- «ANGÚSTIAS DO MUNDO»

Só eu ficara abandonado o tempo todo, naquele lugar do Minho que era o único que estava perto da minha pele. Arranjei cama de camarinhas junto à raiz duma árvore, à espera do meu fim. E ainda não sei se chegou...

Sei que a Lua, certa noite, tomou um bruto pifão. Surgiu lá das bandas do mar inchadíssima e encarnada. Custou mesmo a despegar-se da água e deixou-a, por um tempo, cheia de malhas de sangue. Depois, andou aos tombos pelo ar e minguou. Encarrapitou-se nas nuvens, jogou com elas às escondidas e, finda a correria, caiu de cansada nas galhas dum espinheiro.

Teria ficado aí, lindíssima, se não fosse aquela moleza de queijo que a enlanguescia. Assim, foi-se desfazendo numa pasta empalidecida e, devagar, entornou-se sobre mim. Sei lá desde quando eu dormia ali, a cabeça no tufo das camarinhas, embotados os sentidos por aquele cheiro da erva fresca e da areia humedecida! Sei que com o banho da Lua fiquei translúcido e molhado, bêbado e imponderável. Sei que me pegou o vento e me entremeou nos ramos das roseiras, me fez dançar na copa das árvores, rebolar nos telhados mais íngremes, descer como uma avalanche a encosta das colinas e estatelar-me nas planícies, encher-me de pólen por causa do apetite das flores. Sei que andei como uma bola de roleta no côncavo esférico do céu. Sei finalmente que, ao bater numa estrela, me incendiei como um fogo de artifício.

Foi delicioso e saborosíssimo aquele crepitar de meus ossos que se haviam tornado invisíveis, aquele estalejar das bolinhas da gordura, salpicando tudo, aquele perfume de cabelos queimados como nas estrebarias onde foi o ferrador, aquela festa de S. João na estratosfera!

Só por causa de ter batido numa estrela!

A estrela era bonita e tinha os olhos saídos como os das moscas, olhos míopes e inúteis na escuridão do céu.

Vieram-me então à memória todas as angústias do mundo – as inundações e as guerras, o medo dos fantasmas e a maldade dos homens, aquele cheiro de arroto de certas bocas que só comem o suor dos miseráveis, aquela tristeza de flor quebrada que apodreceu num monturo, aquele pst das prostitutas, aquele sorriso dos clérigos, aquele olhar para o único vestido que se rompeu, o frio e o ciúme, o tédio e a malária ao recolher das áfricas, os hospitais, as cadeias, aquele somar números abstractos toda a vida no emprego mal pago, aquele adormecer nos portais, aquele agradecer o favor indispensável, aquele ser coveiro e polícia, os leprosos, as feias, os marrecas, os generais, a morte... Ao fim fiquei como uma nuvem de cinzas.

Caí então de novo sobre a Terra. Caí como uma chuva suave. Confundiram-me com o luar quando me espalhei no descampado alucinando os gatos, pintando as casas, murchando as flores e apodrecendo o peixe... Por mim sei, no entanto, que são humanos este gosto das surpresas e esta permanente tentação de dilúvio. Sei que viverei eternamente embora não tenha nem intestinos nem fígado.

António Pedro

quinta-feira, 19 de maio de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

PETE TOWNSHEND - «Wistful»

Poet'anarquista

Pete Townshend
Músico e Compositor Britânico

OUTROS CONTOS

«Ressurreição», por Mário de Sá-Carneiro.

«Ressurreição»
Conto de Mário de Sá-Carneiro

792- «RESSURREIÇÃO»

Tinha sido em Paris. Uma noite, casualmente, encontrara-se num pequeno teatro vermelho para Montmartre, bocejando o seu tédio. Mas de súbito, entre as intérpretes da revista idiota, os seus olhos fixaram-se numa dançarina meia nua – esplêndida, duma beleza enclavinhada: corpo agreste, musculoso, seios oscilantes, pequenos e esguios – lábios roxos, grandes olhos admirados, cabelos negros, - e a carne, a carne luminosa, mordorada a trigueiro, para se cobrir de esmeraldas. Nocturnamente, seria bem aquele talvez – excelsior! o corpo triunfal
da Salomé...

E no enlevo granate da maravilha, contemplando-a suspenso, o seu cérebro imaginoso logo se lembrou de construir um romance sobre ela – ai, agora, bem barato romance...

Voltara-lhe de súbito a nostalgia da gentileza – desses brandos episódios loiros que, em todo o caso, nos desenastram a alma e agitam véus cor-de-rosa em cerca à nossa vida.

Sim, pelas mesas dos cafés, quantas vezes invejara aqueles que esperavam uma companheira gentil que aparecia modesta, ligeira, afável – ao passo que ele se detinha solitário sempre, endurecido... 

Todo de incoerências – embora as suas repugnâncias, não lograra ainda renunciar definitivamente àquilo que os outros possuíam, e devia ser em verdade de tão meigas cores...

A sua primeira amante não a buscara ele; ela própria viera ao seu encontro – nem a possuíra ele; ela só o possuíra... As outras tinham sido tão raras, tão distantes...

Eis pelo que em face do corpo aureoral, recordando-lhe estas invejas, estes desgostos – o romancista começara, em inferioridade, a arquitectar um enredo...

Hoje corava de si mesmo se lhe lembrava a pobre história – nem podia acreditar que a tivesse vivido...

Ela fora assim:

No dia seguinte pegara num exemplar luxuoso da sua última obra e enviara-o pelo correio à bailarina, acompanhado duma carta escrita premeditadamente, em romantismo, do Pavilhão d’Armenonville – uma carta tola onde justificava o seu envio desta maneira: a dançarina dera-lhe uma sensação tão grande de beleza – ah! de beleza apenas, não o fosse julgar apaixonado – que, ele, o Artista, o divino que só procurava por toda a parte as emoções gloriosas, não resistira, em primeiro lugar, a agradecer-lhe a visão estética sublime que o seu corpo lhe proporcionara e, depois, a ansiar viver um pouco em torno à maravilha – de qualquer forma referindo-se a ela.

Assim lhe mandava esse volume – que de resto a encantadora nem saberia ler, escrito numa língua estrangeira – para que ao menos os seus dedos esguios, maquilhados, perturbantes, uma vez tacteassem alguma coisa dele (o seu nome, as suas palavras) – e essa carta, para que um dia, mais tarde, longos anos volvidos, as suas mãos secas a achassem, quem sabe, entre velhos papéis... E então, longinquamente o recordaria – isto é: fosse como fosse, ele volvera-se uma personagem da sua existência...

Mas havia mais, pois – suave glória! – a partir da tarde em que lhe escrevera, ele, o desconhecido, ao admirá-la nos teatros onde dançaria nua – saberia em verdade alguma coisa do seu passado: que ela uma vez recebera uma carta sua, um livro seu, estrangeiro...

Enfim, o certo era que, sem nunca se terem encontrado, milagrosamente iam deixar de ser dois estranhos – uma pequenina coisa de ora avante os ligaria: existiriam com efeito em relação um ao outro...

A rapariguinha – romanesca talvez, ou apenas interesseira – breve lhe respondera numa pobre carta sem ortografia, acusando a recepção do livro, afirmando que tinha gostado muito da carta, pedindo que lhe escrevesse mais.

E havia nas suas frases toscas um tal desejo de corresponder ao pensamento delicado, de ser graciosa – que uma onda de ternura quebrantou Inácio...

Logo essa tarde, num entusiasmo, correu a um grande florista da rua Scribe e enviou cinquenta francos de cravos à bailadeira – com um simples cartão de visita prometendo nova carta.

Só lha escreveu no outro dia. Então, insidiosamente, ele dispunha o curso ido enredo – cantando em audácia o esplendor da sua carne ébria, dando-lhe a entender que não era rico, mas tinha vinte anos – para prevenir uma desilusão...

Terminava a lastimar-se, sempre em ardil, que era muito belo o seu papel misterioso de «desconhecido» mas que ignorava se teria coragem para o desempenhar até ao fim...

Na volta do correio, recebeu a resposta. E logo de novo se enterneceu, ondeadamente. A caligrafia era melhor – mais cuidadosas a ortografia e a gramática... Um desejo evidente de agradar... E, com uma simplicidade adorável, a rapariguinha perguntava porque se não haviam de conhecer. Ela gostaria tanto...

Um júbilo infinito, esplêndido, lhe correu na alma. Beijou a carta repetidas vezes...

– Enfim! um pouco de sol chegava à sua vida... Ah! que triunfo admirável passear nas ruas de Paris com essa mulher dourada, e possuí-la – estiraçar-se imperialmente sobre a sua carne de aurora, entregar-se-lhe todo em amor e anseio fluido!... Havia de a morder, de a ferir – sim, de a ferir! – com os seus beijos, arroxeadamente...

... E ela parecia-lhe tão humilde, tão pobrezinha, tão pouca coisa... Pois bem! ele a levaria aos maiores restaurantes, às casas de chá mais luxuosas... Era-lhe impossível vesti-la de jóias, mas ensinar-lhe-ia que os grandes perfumistas são Delettrez, Houbigant, Lanthéric – que os mais esquisitos bombons saem das lojas do Boissier, do Marquis...

Como ia ser venturoso, como ia ser belo... Na manhã seguinte esperava três mil francos de Lisboa!

Saiu. Após o almoço entrou na Napolitano para lhe escrever uma carta em que marcaria o primeiro rendez-vous para dali a dois dias. Pediu café, papel, sobrescritos... E, de súbito, encontrou-se a pensar:

«– Afinal para quê... para quê... Aonde vou?... Sim, de que me vale prolongar tudo isto?... Conhecê-la-ei... beijá-la-ei, pode ser... e depois?... Que haverá de comum entre mim e ela?... Pobre criaturinha fútil, banalizada, insensível...

Possuí-la? – oh!... possuí-la... Demais sei o que me espera!... E seguir-se-ão mil pequenas contrariedades... mil pequenos desenganos... encontros a certas horas... mil complicações inúteis... Para que? para quê?... Não... Decididamente não vale a pena... de modo algum…»


E, numa resolução momentânea, limitou-se a escrever-lhe um rápido bilhete onde lhe dizia que era na realidade tão encantadora, tão cendrada, aquela aventura longínqua – que o melhor seria pôr-lhe termo, ser subtil até ao fim: não prosseguir para não quebrar o encanto... Saiu. Estampilhou o bilhete no bureau próximo do Boulevard dos Italianos – deitou-o na caixa... sem uma saudade; sem mágoa nem arrependimento...

Ainda alguns dias pensou, é claro, no triste episódio – mas sempre levemente, embora com ternura.

A rapariguinha não lhe tornou a escrever – e ele lembrava-se da cruel desilusão que fora talvez para ela a sua última carta... Via-a também sonhando amor, como ele, a certas horas – e a caminhar radiante para uma aventura literalizada em pacotilha, mas quem sabe se ideal aos seus pobres olhos...

E chegava-lhe assim uma piedade esvaída pela bailadeira nua, perversamente: só porque ela sofrera talvez dele, muito, um dia...

As suas cartas, guardara-as num grande sobrescrito – preciosas, pois iam-lhe servir para fixar palpavelmente alguns instantes dessa época da sua vida, alguns instantes do Paris dos seus vinte e três anos...

Aliás notava hoje bem como tivera razão em pôr um termo à aventura. Lançado nela, coisa alguma o deteria – e embalde, pois o certo era que nem mesmo por mais que beijasse esse corpo esplêndido, alcançaria nele aquilo por que uma noite o ambicionara. Com efeito o artista só poderia saciar os seus desejos – não estrebuchando esse corpo nu, magnífico; mas sim se ao mesmo tempo vencesse possuir os passos da bailarina sobre aquele pequeno tablado dum teatro vermelho para Montmartre... e os seus gestos, os seus sorrisos, o carmim dos seus lábios, os seus véus, as suas lantejoulas, as suas jóias falsas, as luzes que a iluminavam – todos os ritmos de cor e som que soçobravam rodopiando em volta da sua carne, a subtilizarem-lhe, a aureolarem-lhe o corpo indistinto em vertigens e apoteoses!...

Mário de Sá-Carneiro