quinta-feira, 30 de junho de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

STEVE HACKETT - «Los Endos»

Poet'anarquista

OS ENDOS

Há um anjo em pé no sol.
Há um anjo em pé no sol,
Livre para voltar para casa.

Steve Hackett
Guitarrista e Compositor Britânico

OUTROS CONTOS

«A Vida nos Bosques», conto poético por Henry David Thoreau.

 «A Vida nos Bosques»
Interior de Bosque/ Charles Davidson

825- «A VIDA NOS BOSQUES»

[Pequeno Excerto]

“...Talvez os factos mais estarrecedores e verdadeiros
Nunca sejam comunicados de homem a homem.

A verdadeira colheita do meu dia-a-dia
É algo tão intangível e indescritível
Como os matizes da aurora e do crepúsculo.

O que tenho nas mãos
É um pouco de poeira de estrelas
E um fragmento de arco-íris.”

Henry David Thoreau

quarta-feira, 29 de junho de 2016

DÉCIMA/ A DOR

A Dor
Décima, por Matias José

A DOR

Há certo mau-estar
Dentro da minha cabeça,
Nada que eu não conheça…
Passo então a explicar:
A cabeça a latejar
Com intermitência,
Alguma dormência
Na zona da nuca…
A dor anda maluca,
E eu sem paciência!

Matias José

E a música de hoje é...

THE GO-BETWEENS - «Spring Rain»

Poet'anarquista

CHUVA DE PRIMAVERA

Vestido com uma camisa branca e com o meu cabelo penteado
Aqui nos meus sapatos pretos e eu retrospecto sem uma data
Quando vai mudar,
Assim como chuva de Primavera
Caindo como folhas
(caindo como folhas)
Descendo como o amor
(descendo como o amor)
Caindo aos meus pés
(Caindo como)
Chuva de Primavera
Pé no relvado com os primos e noivas crianças
Pose para a câmara em seus melhores lados
Sendo avisado dos seus melhores lados
Quando vai mudar
Assim como chuva de Primavera
Dirigindo meu primeiro carro
Meus cotovelos na brisa
Com todas essas pessoas que eu nunca, nunca preciso
Essas pessoas estão entusiasmados com seus carros
Eu quero surpresas
Assim como Chuva de Primavera
Caindo como folhas
(caindo como folhas)
Descendo tão difícil
(descendo tão difícil)
Caindo aos meus pés
(Caindo como)
Chuva de Primavera
Descendo como o amor
(descendo como o amor)
Caindo aqui tão suave
(Caindo aqui tão suave)
(Caindo como)
Chuva de Primavera
Caindo como o amor
(Caindo, caindo)
Descendo tão difícil
(Caindo)
Você ouve cair, cair
Chuva de Primavera
Caindo apenas como o amor
(Caindo, caindo)
Caindo tão difícil
(Caindo)
Você ouve cair, cair
Chuva de Primavera

The Go-Betweens
Banda Australiana

OUTROS CONTOS

«Excertos Auto-Biográficos», por Ferreira de Castro.

«Excertos Auto-Biográficos»
Escritor Ferreira de Castro

824- «EXCERTOS AUTO-BIOGRÁFICOS»

 I

«Eu nasci a 24 de Maio de 1898. Mas, quando penso na minha idade, sinto-me sempre mais novo, sinto-me sempre beneficiado por quatro anos a menos. São quatro anos iguais a um noite escuríssima, onde não é possível acender luz alguma. Não os viveu o meu espírito. Não estão na minha memória. Não me pertencem. Para a minha realidade espiritual eu tenho 28 anos. É em 1902 que começo a povoar o museu da minha vida, a decorar a galeria das minhas recordações. Foi numa tarde de sol – tarde de luz forte que eu vejo ainda – que dei início ao longo da casa onde nasci. A diabrura que pratiquei, desvaneceu-se no esquecimento, mas lembro-me, sim, que minha mãe, saindo do quintaleiro e agarrando-me por um braço, castigou-me. Passava na estrada, enxada ao ombro, um homem alto, bigodes retorcidos festonando as faces trigueiras. Deteve-se, sorriu e disse:

- “Assim é que é, senhora Mariquinhas! Nessa idade é que eles se ensinam”.

Odiei aquele homem. Por que, em vez de me proteger com a sua força, ele estimulava minha mãe a castigar-me ainda mais? Por que era ele tão mau e por que sorria vendo-me sofrer, se eu não nunca lhe tinha feito mal?

É esta a minha recordação. E foram de ódio e de sofrimento as primeiras sensações que a vida me deu. Eu tinha quatro anos e meio.»

II

«Quando vinha com minha mãe ao mercado de Oliveira de Azeméis, passava por uma meia porta e via lá uma máquina a trabalhar, a tirar o jornal; aquilo parecia-me uma obra de Deus e o meu sonho todo, tinha 9 anos, seria escrever umas coisas para aquele jornal, para a 'Opinião'. Se alguém podia ter feito a felicidade de uma criança, seria aquele jornal.»

III

« ...Na minha aldeia fiz a instrução primária; no seringal, lia todos os livros que conseguia encontrar, o que estava muito longe de ser suficiente. Eu sou autodidacta. Não posso mesmo dizer que estudei no que isto significa de disciplina, pois tudo o que aprendi, desde as línguas que me permitissem conhecer o espírito dos outros povos, até à Sociologia e a Filosofia, que tanto me interessavam, o fiz sem esforço... e graças a isso, todas as minhas incursões no mundo do conhecimento humano foram agradáveis em vez de penosas.»

Ferreira de Castro

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

THE GO-BETWEENS - «Spring Rain»

Poet'anarquista

CHUVA DE PRIMAVERA

Vestido com uma camisa branca e com o meu cabelo penteado
Aqui nos meus sapatos pretos e eu retrospecto sem uma data
Quando vai mudar,
Assim como chuva de Primavera
Caindo como folhas
(caindo como folhas)
Descendo como o amor
(descendo como o amor)
Caindo aos meus pés
(Caindo como)
Chuva de Primavera
Pé no relvado com os primos e noivas crianças
Pose para a câmara em seus melhores lados
Sendo avisado dos seus melhores lados
Quando vai mudar
Assim como chuva de Primavera
Dirigindo meu primeiro carro
Meus cotovelos na brisa
Com todas essas pessoas que eu nunca, nunca preciso
Essas pessoas estão entusiasmados com seus carros
Eu quero surpresas
Assim como Chuva de Primavera
Caindo como folhas
(caindo como folhas)
Descendo tão difícil
(descendo tão difícil)
Caindo aos meus pés
(Caindo como)
Chuva de Primavera
Descendo como o amor
(descendo como o amor)
Caindo aqui tão suave
(Caindo aqui tão suave)
(Caindo como)
Chuva de Primavera
Caindo como o amor
(Caindo, caindo)
Descendo tão difícil
(Caindo)
Você ouve cair, cair
Chuva de Primavera
Caindo apenas como o amor
(Caindo, caindo)
Caindo tão difícil
(Caindo)
Você ouve cair, cair
Chuva de Primavera

The Go-Betweens
Banda Australiana

terça-feira, 28 de junho de 2016

OUTROS CONTOS

«A Expulsão do Paraíso», por Jorge Larrosa.

«A Expulsão do Paraíso»
Adão e Eva Expulsos do Paraíso/ Marc Chagall

823- «A EXPULSÃO DO PARAÍSO»

Um dia, o menino Jean Jaques Rousseau, que na época tinha 10 anos e passava uma temporada no campo, na casa de uns parentes, foi acusado e castigado injustamente. Acusaram-no de ter quebrado os pentes da senhorita Lambercier que uma empregada havia posto para secar na estufa do quarto onde ele estudava sozinho suas lições. Jean Jaques jurava que não havia tocado os pentes, mas esses estavam quebrados e ninguém mais que ele tinha entrado no quarto. Os protestos do menino, que persistia teimosamente em sua negativa, foram tomados como obstinação no engano. O pequeno Jean Jaques, inocente não confessava. E, naturalmente, foi duramente castigado, não só pela travessura de ter quebrado os pentes, se não, sobre tudo, por ter sido teimoso, arrogante e mentiroso. Um episódio trivial. Algo que, seguramente, deve ter ocorrido com todo mundo. Mas o importante é como Rousseau o conta. E como o leva a categoria de um trauma inicial, de uma verdadeira expulsão do Paraíso.

O que aí viu Jean Jaques – não o menino Jean Jaques, que então não via nada, o pobre menino somente sentia indignação e raiva, sentia a arbitrariedade, ou seja lá o que sente um menino de dez anos em um caso assim. Para o Jean Jaques adulto - o que escreve as Confissões e que já estava armado de uma linguagem bastante consolidada, foi o final da infância, da felicidade, da inocência e da pura presença em si da imediatez dos sentimentos. Até o momento do castigo havia confiança, intimidade e transparência entre os corações: era possível para uns ler diretamente o que sucedia nas almas dos outros e era possível também que uma pessoa lesse o que ocorria em sua própria alma. Mas a injustiça fez nascer uma distância entre a verdade (o fato de que o menino não tinha quebrado os pentes) e as aparências (o fato de que parecia que tinha quebrado) e deu a Jean Jaques a consciência da separação: um véu cobria a verdade dos sentimentos, a realidade das almas humanas. Sobre o que cada um é se estendia já irremediavelmente o véu das aparências. E abriu, por tanto, a possibilidade de jogar com o véu, por tanto a possibilidade da mentira, da dissimulação e da hipocrisia. A moral era de que se uma pessoa pode parecer culpada sem ser, também pode parecer inocente sem ser. Segundo nos conta Jean Jaques o jogo das aparências lhe ensinou a mentir. E quando uma pessoa aprende a mentir, aprende também, em seguida, a mentir-se.

E assim foi como nossa inocente criatura se fez uma pessoa adulta. Porque as pessoas adultas são adultas por que esqueceram que foram crianças, por que sepultarão em algum lugar remoto de sua consciência a violência que os fizeram adultos. E porque se esquecerão inclusive do esquecimento, desse gesto que os fizeram enterrar o que são. Para ser adulto confortavelmente, as pessoas adultas tem que pensar que as aparências são a realidade, que o deserto é o paraíso, que a mentira é a verdade.

Jorge Larrosa

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

DAVID BOWIE - «Rock 'N' Roll Suicide»

Poet'anarquista

SUICIDA DO ROCK

O tempo pega um cigarro, coloca-o na boca
Você prende com seu dedo e outro dedo, e aí seu cigarro
O intercomunicador está chamando, ele não pára, mas logo você esquece
Você é um suicida do rock

Você é velho demais para perdê-lo, jovem demais para escolhê-lo
E o relógio espera tão pacientemente na sua canção
Você passa por um café mas você não come quando se viveu muito
Oh não, não, não, você é um suicida do rock

Os freios do chevrolet estão rosnando enquanto você desliza pela estrada
Mas o dia nasce e você corre pra casa
Não deixe a luz do sol arruinar sua sombra
Não deixe o leite derramar, leve sua mente
Você é tão natural - religiosamente cruel

Oh não, amor! você não está só
Você está se observando mas você é tão injusto
Sua cabeça está confusa mas se pudesse fazê-lo se importar
Oh não, amor! você não está só
Não importa o que ou quem você foi
Não importa quando ou onde você foi visto
Todas as facas parecem dilacerar seu cérebro
Eu tive minha cota, agora eu a ajudarei com a dor
Você não está só

 Apenas apoie-se em mim e você não está sozinho
Apenas me dê sua mão porque você é maravilhoso
Me dê sua mão porque você é maravilhoso
Me dê sua mão porque você é maravilhoso
Me dê sua mão

David Bowie
Músico, Cantor e Compositor Britânico

segunda-feira, 27 de junho de 2016

OUTROS CONTOS

«A Luz da Outra Casa», por Luigi Pirandello.

«A Luz da Outra Casa»
Hotel/ Edward Hopper

822- «A LUZ DA OUTRA CASA»

Foi numa tarde de domingo, ao voltar de um longo passeio.

Tulio Buti alugara aquele quarto havia dois meses apenas. A dona da casa, Senhora Nini, boa velhota à antiga, e a filha, solteirona, desiludida, não o viam nunca. Ele costumava sair de casa, todos os dias, de manhã cedo, e só voltava à noite, a horas mortas. Sabiam que era funcionário do Ministério de Graça e Justiça; sabiam também que era advogado. Mais nada.

O quarto, pequeno e estreito, modestamente mobiliado, não conservava nenhum vestígio seu, como se ele, de propósito, quisesse aí permanecer ignorado, como num quarto de hotel. Uma caixa de madeira para a roupa branca; um armário para os ternos; mas nas paredes, sobre os outros móveis, nada; nem um estojo, nem um livro, nem um retrato; nada, nem nunca, sobre alguma cadeira, uma peça de roupa branca esquecida, um colete, uma gravata, nada enfim que pudesse confirmar a sua existência naquela casa.

Mãe e filha temiam que ele aí não permanecesse muito tempo. Fora tão difícil alugar aquele quarto! Vieram vê-lo muitos, mas ninguém o quis. Realmente, não era muito cómodo, nem muito alegre. Tinha só uma janela, que dava para uma ruazinha estreita, privada, e da qual não recebia luz nem ar, devido à casa fronteira, que o impedia.

Mãe e filha estudavam e preparavam atenções e cuidados para prender o inquilino tão almejado: "Faremos isto... diremos isto..." — e mais isto e mais aquilo; sobretudo a filha, Clotildinha... Quantas delicadezas, quantas finezas! Tudo, porém, desinteressadamente, sem malícia, sem segundas intenções... Mas como, se ele não aparecia nunca?

Se acaso o vissem, compreenderiam logo quanto era infundado o seu receio. Aquele quartinho triste, escuro, tapado pela casa fronteira, condizia bem com o temperamento do inquilino.

Tulio Buti andava sempre sozinho, sem mesmo os dois companheiros dos solitários mais equívocos: a bengala e o cigarro. Com as mãos enterradas nos bolsos do capote de ombros encolhidos, taciturno, dir-se-ia que incubasse o ódio mais profundo contra a vida.

Na repartição não trocava nem uma palavra com os seus colegas, os quais hesitavam entre os dois apelidos que lhe enquadrassem melhor: urso ou coruja.

Ainda ninguém o vira entrar, à tarde, num café; em compensação, muitos o tinham visto evitar, à pressa, as ruas mais freqüentadas e iluminadas, para mergulhar na sombra das longas alamedas, direitas e solitárias, dos arrabaldes distantes, afastando-se dos muros, toda vez que encontrava o círculo de luz que os faróis projetam sobre a calçada.

Nem um gesto involuntário, nem mesmo a mínima contração dos músculos da face, nem um movimento dos olhos ou dos lábios traíam nunca os pensamentos em que parecia absorto, o secreto pesar em que se fechava. Mas deste secreto pesar e dos lúgubres pensamentos que se lhe aninhavam no cérebro estava toda impregnada a sua fisionomia. A devastação, que eles deviam produzir naquela alma, estava flagrante na fixidez espasmódica dos olhos claros, agudos, na lividez do rosto desfigurado, nos precoces fios grisalhos da barba crespa e desleixada.

Tulio Buti não escrevia nem recebia cartas; não lia jornais; não parava nem se virava para ver o que quer que acontecesse pela rua e que atraísse a alheia curiosidade, e, se .alguma vez a chuva o colhia de improviso, continuava caminhando, no mesmo passo, como se nada tivesse acontecido.

Por que insistisse em viver desse modo, era o que ninguém sabia... Nem ele mesmo, talvez. Vivia... Nem sequer suspeitava que fosse possível viver de modo diverso, ou então, que, vivendo-se diversamente, se poderia diminuir o peso da tristeza e do tédio.

Não tivera infância; não fora moço. As cenas selvagens a que assistira, no lar, desde os mais tenros anos, motivadas pela brutalidade e pela tirania feroz do pai, lhe haviam crestado no espírito todos os germes de vida.

Morta a mãe, vítima de atrozes sevícias do marido, a família se dispersara: uma irmã entrou para o convento, um irmão fugiu para a, América, ele também fugira e, errante, graças a incríveis sacrifícios, tinha conseguido alcançar a posição que hoje ocupava.

Agora, não sofria mais. Parecia que sofresse; mas até o sentimento da dor se obliterara nele. Parecia que estivesse absorto sempre em pensamento; engano; já nem sequer pensava. O espírito ficara-lhe como que suspenso numa espécie de atônita obscuridade, que só lhe permitia perceber um quê de amargo na garganta. À noite, passeando pelas ruas solitárias, contava, mentalmente, os lampiões; mais nada; ou olhava para a sua sombra ou escutava o som dos seus passos, ou, alguma vez, parava diante dos jardins das vilas, a contemplar os ciprestes mudos e fechados como ele, mais noturnos do que a própria noite.

Naquele domingo, cansado do longo passeio pela rua Ápia antiga, e contra os seus hábitos, decidiu recolher-se. Era ainda cedo para a ceia. Ficaria esperando, no quarto, que o dia acabasse de morrer.

Para as Nini, mãe e filha, foi uma surpresa bastante agradável. Clotildinha até bateu as mãos de contente. Quais dos muitos cuidados e atenções estudados e preparados, quais das muitas finezas e distinções particulares, dispensar-lhe em primeiro lugar? A mãe e a filha confabularam, e de repente, Clotildinha firmou um pé e bateu com a mão na testa. Ó, santo Deus, antes de tudo, a luz! Era preciso levar-lhe o lampião, o melhor, o que estava guardado de propósito, que tinha umas papoulas pintadas na porcelana, e era de globo esmerilhado. Acendeu-o, e foi bater discretamente à porta do inquilino. Tremia tanto, de emoção, que o globo, oscilando, batia no tubo, que ameaçava esfumaçar-se.

— Com licença? O lampião...

— Não, muito obrigado — respondeu Buti, do outro lado. — Eu saio já.

A solteirona fez uma careta, e, de olhos abaixados, como se o inquilino a estivesse vendo, insistiu:

— Tenho-o aqui... É para não deixá-lo no escuro...

Buti, porém, repetiu secamente: 

— Não, muito obrigado.

Estava sentado no pequeno canapé, em frente à mesa, e escancarava os olhos na sombra que, a pouco e pouco, se ia adensando no quartinho, enquanto nos vidros da janela tristemente desmaiava o último reflexo do crepúsculo.

Quanto tempo esteve assim, inerte, com os olhos escancarados, sem pensar, sem perceber as trevas que já o tinham envolvido?

De repente, os seus olhos viram. Olhou em torno de si, espantado. O quarto se havia, realmente, iluminado, de improviso; como se um sopro misterioso o tivesse enchido de um brando lume discreto.

Que era? Que acontecera?

Isto: a luz da outra casa. Acendera-se, na casa fronteira, um lampião. Era o hálito de uma vida exterior que vinha desfazer as trevas, o vácuo, o deserto de sua existência...

Ficou, longo tempo, contemplando aquele clarão, como se fosse efeito de magia; e uma angústia intensa lhe apertou a garganta, ao .notar com que suave carícia ele se pousava sobre o seu leito, sobre a parede, e sobre as suas mãos pálidas abandonadas sobre a mesa. Surgiu-lhe no meio daquela angústia, a lembrança do seu lar destruído, da sua infância oprimida, de sua mãe; foi como se a luz de uma alvorada, de uma alvorada distante, expirasse na noite do seu espírito.

Ergueu-se, foi à janela e, furtivamente, por trás dos vidros, olhou para a casa fronteira, para a janela de onde lhe vinha aquele raio de luz.

Viu uma família pequena reunida em torno da mesa de jantar: três meninos, o pai, que estava sentado, e a mãe, que, ainda de pé, os estava servindo, e procurando — segundo o que ele deduzia dos movimentos — refrear a impaciência dos dois maiores, que brandiam a colher e se sacudiam na cadeira. O último esticava o pescoço, agitava a cabecinha loira: evidentemente, lhe haviam amarrado com muita força o guardanapo; mas se a mãe se apressasse em servir-lhe a sopa, ele não mais se queixaria daquele nó muito forte. Era isso mesmo. Com que voracidade começou a comer! Enfiava a colher inteira na boca... E o pai, através do fumo que se erguia do seu prato, ria. Agora, a mãe também se havia sentado ao lado deles, ali mesmo, em frente.... Tulio Buti tentou recuar, instintivamente, vendo que ela, ao sentar-se, erguera os olhos para a janela; mas lembrou-se de que, estando no escuro, não podia ser visto, e continuou a assistir à ceia daquela pequena família, esquecendo-se prontamente da sua.

Desse dia em diante, todas as tardes, saindo da repartição, ao invés de se dirigir para os seus habituais passeios solitários, enveredava pelo caminho da sua casa; esperou, todas as tardes, que as trevas do seu quarto se desfizessem, suavemente, sob a luz da outra casa, e aí ficou, atrás dos vidros, como um mendigo, a saborear, com angústia infinita, aquela doce e amorável intimidade, de que os outros gozavam e de que ele, em criança, numa ou noutra rara tarde de paz, gozara também, quando a mãe... a sua mãe... como aquela... E chorava.

Sim. A luz da outra casa operou este prodígio. A obscuridade atônita em que seu espírito permanecera suspenso durante tantos anos, se dissolveu sob o influxo daquela luz suave. Entretanto, Tulio Buti não pensou em todas as suposições estranhas que a sua atitude devia fazer nascer na dona da casa e na filha. 

Por mais duas vezes, Clotildinha tentara oferecer-lhe o lampião. Tivesse, ao menos, acendido a vela! Não, nem isso. Porventura, sentia-se mal? 0usara perguntar-lhe Clotildinha, com voz meiga, na segunda vez que lhe fora bater à porta. Ele lhe havia respondido:

— Não; estou bem assim...

Mas, santo Deus! Não precisava, realmente, de luz... Clotildinha espiava pelo buraco da fechadura e vira, maravilhada, no quarto do inquilino, a luz difusa da outra casa, exatamente da casa da família Masci, e, o que é pior, vira-o a ele, por trás dos vidros da janela preocupado em contemplar a casa da família Masci... E Clotildinha correra toda sobressaltada, a anunciar à mãe a grande descoberta:

— Ele está enamorado de Margarida! de Margarida Masci!

Poucos dias depois, uma tarde, enquanto estava a contemplar, Tulio Buti viu, com surpresa, naquela sala fronteira, onde a pequena família habitualmente — (naquela tarde faltava o pai) — se reunia ao jantar, viu entrar a velhinha, sua dona de casa, e a filha, que foram acolhidas como amigas de longa data.

Num dado instante, Tulio Buti recuou, de um salto, ansioso, perturbado. A mãezinha e os três pequenos tinham erguido os olhos, na direção da sua janela. Sem dúvida, aquelas duas estavam falando dele.

E agora? Agora, talvez tudo estivesse acabado!

Na tarde seguinte, aquela mãezinha ou o marido, sabendo que no quartinho em frente havia um homem que, misteriosamente, os espiava, na escuridão, fechariam as janelas; e assim daí por diante, não lhe viria mais aquela luz de que vivia, aquela luz que era o seu gozo inocente, o seu consolo...

Mas não foi o que aconteceu.

Naquela mesma noite, assim que a luz da outra casa se apagou, e ele, chumbado na treva, depois de ter esperado ainda um pouco que a família se recolhesse, foi abrir cautamente a janela para renovar o ar, viu que a janela de lá estava também aberta, viu, pouco depois (e, mesmo no escuro, teve um estremecimento de espanto), viu assomar àquela janela a mulher, talvez curiosa de tudo quanto lhe haviam contado dele as Nini, mãe e filha.

Aquelas duas casas muito altas, que abriam, tão perto um do outro, os olhos das suas janelas, não deixavam ver, em cima, a faixa clara do céu, nem, embaixo, a faixa escura da terra, fechada numa das extremidades por um portão; não deixavam penetrar jamais nem um raio de sol, nem um raio de lua.

Ela, portanto, não podia ter assomado à janela senão por causa dele e, naturalmente, porque percebera que ele também se achava debruçado na sua janela apagada.

Na escuridão, mal se podiam distinguir. Ele, porém, sabia, desde algum tempo, que ela era formosa; já lhe conhecia todo o encanto dos seus movimentos, os lampejos dos seus olhos pretos, os sorrisos dos seus lábios vermelhos...

Antes de tudo, porém, naquela primeira vez, devido à surpresa que o revolvia todo e lhe tolhia a respiração, num frêmito de inquietude, ele teve pena; foi preciso fazer um esforço violento sobre si mesmo para não recuar, para esperar que ela se retirasse antes dele.

Aquele sonho de paz, de amor, de suave e doce intimidade, que ele imaginara reinar sobre aquela pequena família, e de que ele também, por reflexo, tinha até gozado, ss desmanchava todo, se aquela mulher às escondidas, no escuro, vinha à janela por causa de um estranho... Mas este estranho não era ele? E antes de se retirar, antes de fechar a vidraça, ela lhe sussurrou:

— Boa-noite!

Que coisas haviam fantasiado a seu respeito as duas mulheres que o hospedavam, e que excitaram e acenderam tanto a curiosidade daquela mulher? Que atração estranha, poderosa, operava sobre ela o mistério daquela sua vida enclausurada, se desde a primeira vez ela,deixando de lado os seus filhinhos, viera a ele, como que para fazer-lhe companhia?

Sim, um em frente ao outro, ainda que ambos tivessem evitado olhar-se e tivessem quase fingido, reciprocamente, que estavam à janela sem nenhuma intenção, ambos, sim, ambos — ele estava certo disso — tinham vibrado pelo mesmo frêmito de expectativa, ignorada, espantados da atração que, tão de perto, os envolvia no escuro.

Quando, muito tarde, ele fechou a janela, teve a certeza de que, na tarde seguinte, depois de apagada a luz, ela voltaria por causa dele. E foi, de fato, assim.

Daí por diante, Tulio Buti não esperou mais no seu quarto a luz da outra casa; ao contrário esperou com impaciência que a luz se apagasse.

A paixão do amor, ainda não experimentada, irrompeu, devoradora, tremenda, no coração daquele homem que estivera por tantos anos fora da vida, e investiu, absorveu, arrastou, como num turbilhão, aquela mulher.

No mesmo dia em que ele se retirou do quartinho da casa das Nini, explodiu como uma bomba a notícia de que a senhora do terceiro andar, ao lado, a Masci, tinha abandonado o marido e os três filhos.

Ficou vazio o quartinho que hospedara, durante quase quatro meses, ao Buti; ficou apagada, por algumas semanas, a sala da frente, onde a pequena família costumava reunir-se à hora do jantar.

Depois, acendeu-se de novo a luz sobre aquela mesa triste em torno da qual um pai apalermado pela desgraça contemplava os rostos espantados de três crianças, que não ousavam volver os olhos para a porta, por onde a mãe costumava entrar, todas as noites, com a sopeira fumegante.

Aquela luz reacendida sobre a mesa triste tornou, então, a clarear suavemente o quartinho fronteiro, vazio.

Lembraram-se dela, alguns meses após a sua cruel loucura, Tulio Buti e a amante? 

Uma noite as Nini, espantadas, viram aparecer, diante delas, desfigurado e convulso, o seu estranho inquilino. Que queria, o quarto, se ainda estivesse desalugado!

Não, não para si, não para morar! mas poder ficar aí, todas as tardes, uma hora apenas, às escondidas! Ah, por piedade, por piedade daquela pobre mãe que desejava rever, de longe, sem ser vista, os seus filhinhos! Tomariam todas as precauções necessárias; se fosse preciso, se mascarariam; aproveitariam, todas as tardes, o momento em que não houvesse ninguém pelas escadas; ele pagaria o dobro, o triplo, pelo aluguel, só para aquele minuto breve...

— Não. As Nini não quiseram consentir. Apenas enquanto o quartinho estivesse desalugado, consentiram que algumas vezes, muito raras...— oh, mas pelo amor de Deus! com a condição de que ninguém os descobrisse!...algumas raras vezes...

Na tarde seguinte, eles vieram, como dois ladrões. Entraram, quase cambaleando, no quartinho às escuras, e esperaram, e esperaram que ele alvorecesse de novo sob a luz da outra casa.

Dessa luz deviam viver eles, assim, de longe.

E a luz apareceu!

Tulio Buti, a princípio, não pôde suportá-la. Como lhe pareceu gelada agora, ríspida, cruel, espectral, criminosa! Ela, porém, com os soluços que lhe borbulhavam na garganta, teve sede daquela luz, bebeu-a de um hausto, precipitou-se para os vidros da janela, apertando o lenço contra a boca. Os seus filhinhos... os seus filhinhos... os seus filhinhos estavam lá... à mesa, inocentes...

Ele correu a ampará-la nos braços, e ambos ficaram ali, estreitamente unidos, como que pregados, espiando.

Luigi Pirandello

domingo, 26 de junho de 2016

OUTROS CONTOS

«O Velho Demónio», por Pearl S. Buck.

«O Velho Demónio»
Conto de Pearl S. Buck

821- «O VELHO DEMÓNIO»
Pearl S. Buck

sábado, 25 de junho de 2016

OUTROS CONTOS

«É Inútil Chorar», conto poético por António Cardoso.

«É Inútil Chorar»
A Criança Morta/ Cândido Portinari
(Série 'Os Retirantes')

820- «É INÚTIL CHORAR»

É inútil chorar:
«Se choramos aceitamos. É preciso não aceitar.»
Por todos os que tombam pela verdade
Ou que julgam tombar.
O importante neles é já sentir a vontade
De lutar por ela,
Por isso é inútil chorar.
Ao menos se as lágrimas
Dessem pão,
Já não haveria fome.
Ao menos se o desespero vazio
Das nossas vidas
Desse campos de trigo.
Mas o que importa
É não chorar:
«Se choramos aceitamos. É preciso não aceitar.»
Mesmo quando já não se sinta calor
É bom pensar que há fogueiras
E que a dor também ilumina.
Que cada um de nós
Lance a lenha que tiver,
Mas que não chore
Embora tenha frio:
«Se choramos aceitamos. É preciso não aceitar.»

António Cardoso

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

RED HOT CHILI PEPPERS
«Red Turn Red»

Poet'anarquista

NECESSIDADES OBSCURAS

Saio em plena luz do dia
Temos muitas luas que um lugar mais profundo
Então fico de olho no sorriso da sombra
Para ver o que tem a dizer
Você e eu sabemos
Tudo deve ir embora
O que você diz?
A cabeça está no meu coração
É como um pouco de luz e um toque de escuridão
Você ataca sorrateiramente do zodíaco
Mas vejo uma chama em seus olhos
Mantenha a brisa e vá
Tintim por tintim e vá embora
O que você diz?

É, você não conhece a minha mente
Você não conhece o meu tipo
As necessidades obscuras são parte do meu projeto
Diga ao mundo que estou caindo do céu
As necessidades obscuras são parte do meu projeto

Tropeço até o estacionamento
Você não tem tempo para reflexões
São como um sorvete para um astronauta
Bom, esse sou eu à procura de maconha
Viro a esquina e
Encontro o mundo e comando o show
Tocando a mão

É, você não conhece a minha mente
Você não conhece o meu tipo
As necessidades obscuras são parte do meu projeto
Diga ao mundo que estou caindo do céu
As necessidades obscuras são parte do meu projeto

Você quer o meu amor?
A escuridão ajuda a classificar o brilho
Você quer, você quer agora?
Você quer nas horas extras?
A escuridão ajuda a classificar o brilho
Você quer, você quer agora?

Pego você como um livro de bolso
Com a trajetória de um maníaco
Então, estou me mudando e desempacotamos
Igual a ontem
Querida, aonde nós ficamos
Tudo deve ir embora
O que você diz?

É, você não conhece a minha mente
Você não conhece o meu tipo
As necessidades obscuras são parte do meu projeto
Diga ao mundo que estou caindo do céu
As necessidades obscuras são parte do meu projeto

Red Hot Chili Peppers
Banda Norte-Americana

SÁTIRA...

Prexit
Sátira...

«PREXIT»

- Eu penso que devemos
Fazer como o Reino Unido…
Um referendo faz sentido,
Sair da UE se queremos.
- Acho que não devemos…
- Não vejo mal nisso;
O céu continuava inteiriço,
E a minha cabeça segura…
Quem foi a cavalgadura
Que me acertou no toutiço?

POETA

sexta-feira, 24 de junho de 2016

OUTROS CONTOS

«A Fome», conto poético por Matias José.

«A Fome»
Mote de António Aleixo

MOTE

Quem nada tem, nada come;
E ao pé de quem tem de comer,
Se alguém disser que tem fome,
Comete um crime, sem querer.

António Aleixo

819- «A FOME»

Diferença em abastança
Que não tem explicação…
Uns vivem na ostentação,
E outros sem esperança.
O peso certo na balança
Devia ser uniforme,
Uma mentira disforme
Em que já ninguém crê…
Só um cego é que não vê,
Quem nada tem, nada come!

Há quem tenha pança farta
De tudo quanto é melhor…
Há os que morrem na pior,
A fome, por vezes mata!
Esta desigualdade nefasta
Nunca deixou de suceder,
A ganância sem pretender
O pão na mesa repartir…
Não ter nada pra engolir,
E ao pé de quem tem de comer!

Conheci pessoas à pida
Quando eu era menino…
A cabeça num desatino,
Ter gente sem comida (?)
Minha avó decidida,
Dizia: ‘Deus não dorme!’
Um coração enorme
E vontade d’agradar…
Sempre pronta a ajudar,
Se alguém disser que tem fome.

 Tanta boca faminta
Neste mundo desigual…
É nela que mora o mal,
Não há quem desminta!
Pra de todo ser extinta
Ainda muito que fazer,
Ninguém devia morrer
Ou penar tais tormentos…
Quem nos priva d’alimentos
Comete um crime, sem querer.

Matias José

quinta-feira, 23 de junho de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

IGGY POP - «Lust For Life»

Poet'anarquista

LÚXURIA PARA A VIDA

Aqui vem Johnny Yen novamente
Com as bebidas e as drogas
E a máquina de carnes
Ele vai fazer outro striptease
Ei rapaz, aonde você pegou essa loção?
Eu estive caçando desde que eu comprei o truque
Sobre algo chamado amor
Sim, algo chamado amor
Bem, isso é como hipnotizar galinhas

Bem, eu sou apenas um rapaz moderno
Claro, eu tive isso no meu ouvido antes
Eu tenho uma paixão pela vida
Porque tenho uma paixão pela vida

Eu mereço um milhão em prémios
Com meu filme de tortura
Dirija um GTO
Usando um uniforme
Tudo num empréstimo do governo
Eu mereço um milhão em prémios
Sim, eu estou completamente dormindo na calçada
Não estou mais batendo em meu cérebro
Não estou mais batendo em meu cérebro
Com bebidas e drogas
Com bebidas e drogas

Bem, eu sou apenas um rapaz moderno
Claro, eu tive isso no meu ouvido antes
Bem, eu tenho uma paixão pela vida (paixão pela vida)
Porque por uma paixão pela vida (paixão pela vida, oo)
Eu tenho uma paixão pela vida (oo)
Tenho uma paixão pela vida (oo)
Ah, um desejo de vida (oo)
Ah, um desejo de vida (oo)
A paixão pela vida (oo)
Eu tenho uma paixão pela vida (oo)
Tenho uma paixão pela vida

Bem, eu sou apenas um rapaz moderno
Claro, eu tive isso no meu ouvido antes
Bem, eu tenho uma paixão pela vida
Porque eu tenho uma paixão pela vida

Aqui vem Johnny Yen novamente
Com as bebidas e as drogas
E a máquina de carnes
Ele vai fazer outro striptease
Ei rapaz, aonde você pegou essa loção?
Na sua pele começa a coceira depois de comprar o chamariz
Sobre algo chamado amor
Amor, amor, amor
Bem, isso é como hipnotizar galinhas

Bem, eu sou apenas um rapaz moderno
Claro, eu tive isso no meu ouvido antes
E eu tenho uma paixão pela vida (luxúria para a vida)
Porque eu tenho uma paixão pela vida (luxúria para a vida)
Tenho uma paixão pela vida
Sim, uma paixão pela vida
Eu tenho uma paixão pela vida
A paixão pela vida
Tenho uma paixão pela vida
Sim, uma paixão pela vida
Eu tenho uma paixão pela vida
Apetite pela vida
Apetite pela vida
Apetite pela vida
Apetite pela vida
Apetite pela vida

Iggy Pop
Músico e Vocalista Norte-Americano

OUTROS CONTOS

«Sátira», conto poético por Nicolau Tolentino.

«Sátira»
Décimas de Nicolau Tolentino

818- «SÁTIRA»

Em frege estreita entaipados,
Sol á ilharga, Sol por cima,
Vinha eu, e o Padre Lima
Cheios de pó, e encalmados.
Eis que, na estrada atacados,
Param as mulas baratas;
Cuidei eu que eram Piratas,
Que tiram vida, e dinheiro,
Fui ver se era o Clavineiro,
E achei duas Açafatas.

Traziam a arma mais dura,
Que nos peitos se tem posto,
Traziam ambas no rosto
O respeito, e a formosura.
Querem sege mais segura,
Porque a sua está quebrada;
E enquanto o Padre na estrada
Lhe diz palavras pomposas,
As minhas mãos respeitosas
Lhe afofavam a almofada.

Nicolau Tolentino

SÁTIRA...

O Dever Chama
Sátira...

«O DEVER CHAMA»

(Chamado pelo dever)
- Ronaldo, que achou do jogo?
- O microfone pegou fogo…
Jogo na água, não vai arder!
- Viu o que acaba de fazer?...
Não é digno de um capitão!!
- Eu a jogar com a mão
Sou o melhor do mundo…
Resolvo num segundo,
Afogo a CM Televisão!!!

POETA

quarta-feira, 22 de junho de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

ANA MOURA - «Ao Poeta Perguntei»

Poet'anarquista

AO POETA PERGUNTEI

Ao poeta perguntei
como é que os versos assim aparecem
disse-me só, eu cá não sei
são coisas que me acontecem
sei que nos versos que fiz
vivem motivos dos mais diversos
e também sei que sendo feliz
não saberia fazer os versos

Oh! meu amigo
não penses que a poesia
é só a caligrafia num perfeito alinhamento
as rimas são, assim como o coração
em que cada pulsação nos recorda sofrimento
e nos meus versos pode não haver medida
mas o que há sempre, são coisas da própria vida

Fiz versos como faz dia
a luz do sol sempre ao nascer
eu fiz os versos porque os fazia,
sem me lembrar dos fazer
como a expressão e os jeitos
que para cantar se vão dando à voz
todos os versos andam já feitos
de brincadeira dentro de nós

Oh! meu amigo
não penses que a poesia
é só a caligrafia num perfeito alinhamento
as rimas são, assim como o coração
em que cada pulsação nos recorda sofrimento
e nos meus versos pode não haver medida
mas o que há sempre, são coisas da própria vida

Assim amigo já vez que a poesia
não é só caligrafia, são coisas do sentimento!

Ana Moura
Fadista Portuguesa

OUTROS CONTOS

«A 25ª Hora», por Virgil Gheorghiu.

«A 25ª Hora»
Conto de Virgil Gheorghiu

817- «A 25ª HORA»

Fântâna

I

— Não posso acreditar que esteja de partida! — disse Suzanna a Iohann Moritz, abraçando-o.
Levou as mãos à cabeça do homem e acariciou-lhe os cabelos pretos. Ele deu um passo para trás.

— Por que não acredita? — respondeu ele, num tom de voz seco. — Partirei depois de amanhã, ao amanhecer.

— Eu sei! — murmurou ela.

Permaneciam de pé, junto à sebe. Fazia frio. Passara da meia-noite. Iohann tomou as mãos da mulher, deixou-as cair e disse:

— Então, até logo!

— Fique um pouco mais! — suplicava ela.

— Por que deseja que eu fique? — Sua voz era firme, decidida. — Está tarde. Amanhã tenho que trabalhar.

Ela não respondeu, mas o apertou ainda mais nos braços. Entreabrindo a camisa do homem, ela pousou a face em seu peito e ergueu os olhos.

— As estrelas são lindas! — disse.

Ele, por sua vez, esperava algo importante. Acreditava que ela o retivera por isso. E ela vinha falar de estrelas. Desenvencilhou-se, quis ir embora. Mas se lembrou de sua partida iminente e de que ficaria ausente no mínimo três anos. Então, para agradá-la, também contemplou as estrelas.

— É verdade que todo homem tem sua estrela no céu? É verdade que ela vira uma estrela cadente quando ele morre?

— E eu lá sei? — respondeu ele. Agora estava decidido a partir. — Até logo!

— Será que também temos estrelas lá no alto? — perguntou ela.

— Como todo mundo — respondeu Moritz. — Lá no alto ou dentro de nós.

Pegou a cabeça da mulher entre as mãos e afastou-a de seu peito. Em seguida, partiu. Ela o acompanhou até o caminho, segurando-lhe a mão. Olhava para as estrelas, depois para ele.

— Espero-o amanhã à noite! — disse ela.

— Se não chover.

Suzanna gostaria de não deixá-lo ainda, de suplicar que ele viesse, mesmo se chovesse. Mas ele se afastava a passos largos. Desapareceu na curva do caminho, atrás do jardim. A mulher permaneceu por um momento no mesmo lugar. Ali sou o vestido na altura do quadril, para retirar os carrapichos agarrados ao tecido.

Antes de voltar ao quintal, observou o capim amassado sob a nogueira, onde haviam se deitado um perto do outro. Ainda sentia nas narinas o cheiro do corpo de Moritz — um cheiro de capim amassado, tabaco e caroço de cereja.

Assobiando, Iohann Moritz atravessou o campo e tomou a direcção de casa.
Usava compridas calças pretas de soldado e uma camisa branca com o colarinho aberto. Estava descalço. Às vezes parava de assobiar para bocejar. Pensou então na mulher que acabava de deixar. Pensou em Suzanna. Arrependeu-se de não ter sorrido para ela. “Suas histórias de estrelas... Mulheres são iguais a crianças.

Fazem um monte de perguntas inúteis”, ruminou. Pensou então na viagem que ia fazer dali a dois dias. Pensou na América. Depois não pensou em mais nada.

Voltou a assobiar. Tinha sono. Queria já estar em casa, dormindo. Devia acordar bem cedo. Era seu último dia de trabalho. E estava prestes a amanhecer. Dali a poucas horas, o dia teria nascido. Iohann Moritz apertou o passo.

II

Raiava o dia quando Iohann Moritz parou diante da fonte da aldeia e, abrindo amplamente a camisa, pegou a água com as mãos e esfregou-a no rosto e no pescoço. Foi então até o meio da rua e secou as mãos, passando-as no cabelo. Ajeitou o colarinho da camisa sem fechá-lo e observou a aldeia. A cerração leitosa se dissipava. Era a aldeia de Fântâna, na Romênia. Iohann Moritz nascera ali, vinte e oito anos atrás. E agora, enquanto contemplava aquela aldeia, com suas pequenas casas e os três campanários de suas três igrejas — a ortodoxa, a católica e a protestante —, lembrou-se de que, na véspera, Suzanna lhe perguntara se ele não iria morrer de saudades dali. Na hora, ele rira, achando graça da pergunta, e respondera que era um homem. Apenas as mulheres podiam sentir saudades. Mas agora sentia como se um vago arrependimento o invadisse. Voltou a assobiar e desviou os olhos.

A casa do padre Alexandru Koruga ficava na beira da estrada, não longe da igreja ortodoxa. A porta estava fechada. Iohann debruçou-se e pegou a chave escondida sob o capacho para que pudesse entrar de manhã, quando chegasse para trabalhar. Abriu a pesada porta de carvalho, sem pressa, e adentrou o quintal. Os cães correram ao seu encontro, pulando à sua volta. Conheciam-no bem, pois já fazia seis anos que Iohann Moritz trabalhava para o padre Alexandru Koruga; todos os dias dos últimos seis anos: lá, sentia-se em casa.

Mas aquele era seu último dia de trabalho. Passaria o dia colhendo maçãs. Depois receberia o que lhe era devido e comunicaria sua partida. O padre ainda não sabia de nada.

Iohann Moritz entrou no celeiro, pegou os cestos e os acomodou na carroça. O padre apareceu na sacada. Vestia apenas uma camisa de linho branco e calças compridas. Acabara de se levantar. Moritz, sorrindo, cumprimentou-o.

Colocou o cesto no chão, esfregou as mãos, subiu até a sacada e tomou das mãos do ancião a cumbuca cheia d’água.

— Espere, vou despejar.

Iohann Moritz despejou água nas mãos do padre. Observava os dedos daquelas mãos, compridos e fusiformes — dedos de mulher de pele branca.

Observava com prazer o velho fazer espuma na barba, no pescoço, na testa. De tanto admirá-lo, esquecia-se de despejar a água. O padre aguardava, estendendo as mãos cobertas de espuma. E Moritz sentia-se culpado e ruborizava.

O padre Koruga era o pope da aldeia. Tinha apenas cinquenta anos, mas sua barba e cabelo já eram brancos feito prata. Seu corpo comprido, esguio, descarnado, lembrava o dos santos que vemos nos ícones das igrejas ortodoxas. Um autêntico corpo de ancião. Porém, encontrando seu olhar, ouvindo-o falar, percebia-se que era um homem mais jovem. Assim que acabou de se lavar, o padre enxugou o rosto e o pescoço numa toalha grossa. Moritz continuava em pé, com a cumbuca na mão, à sua frente.

— Eu gostaria de conversar com o senhor, meu padre — disse ele.

— Espere eu me vestir — respondeu o padre.

E, pegando de volta a cumbuca das mãos de Iohann Moritz, entrou em
casa. À soleira da porta, virou-se.

— Também tenho um assunto para conversar com você — disse, sorrindo.

— Você vai gostar. Enquanto isso, coloque os cestos na carroça e atrele.

A manhã inteira, Iohann Moritz e o padre Koruga colheram maçãs e encheram cestos. Trabalhavam em silêncio. Quando o sol dardejou seus ombros, o padre parou e estendeu os braços, cansado.

— Descansemos um pouco!

— Descansemos — concordou Moritz.

Dirigiram-se até os sacos cheios de maçãs e sentaram-se em cima deles.
Mantinham-se calados. O padre procurou nos bolsos o maço de cigarros que sempre levava para os dois e o estendeu para Moritz.

— Queria conversar? — inquiriu o padre.

— Sim, queria.

Moritz acendeu o cigarro. Jogou o fósforo na relva e observou-o apagar-se. Era difícil para ele comunicar sua partida ao padre. Preferiria esperar um pouco mais.

— Primeiro, quero lhe dar a minha notícia — disse o padre.

Moritz ficou contente por não ter de falar primeiro.

— O quartinho junto à cozinha está vago — informou o padre —, e me perguntei se você não gostaria de se mudar para lá. Minha mulher acabou de caiar e colocou cortinas nas janelas e roupa de cama limpa. Sua casa é muito apertada. Você e seus pais possuem apenas um quarto. Amanhã, quando vier trabalhar, traga suas coisas.

— Não virei amanhã.

— Então, depois de amanhã — disse o padre. — A partir de hoje o quarto é seu.

— Não virei nunca mais — disse Moritz. — Amanhã viajo para os Estados Unidos.

— Amanhã? — O padre esbugalhou os olhos.

— Amanhã bem cedo.

A voz de Moritz era firme, embora velada pelo remorso.

— Recebi uma carta, o navio está em Constança, só tenho três dias.

O padre sabia perfeitamente que Moritz queria ir para os Estados Unidos. Muitos jovens camponeses partiam para lá e, dois, três anos depois voltavam com dinheiro e compravam terras e as casas mais bonitas da aldeia. O padre estava contente por Moritz. Em poucos anos, ele também teria belas terras. Mas surpreendia-se com a premência da viagem. Moritz jamais tocara no assunto com ele, e eles haviam trabalhado o tempo todo lado a lado, diariamente.

— Só ontem recebi a carta — disse Moritz.

— Vai  sozinho?

— Com Ghitza Ion. No navio, trabalharemos como operários. Trabalharemos nas caldeiras, assim não precisaremos pagar quinhentos lei por pessoa. Ghitza tem um amigo em Constança que trabalha no porto e providenciou tudo.

O padre lhe desejou boa sorte. Lamentava sua partida. Iohann Moritz era jovem, bom trabalhador. Apesar de pobre, era generoso e honesto. Não possuía um alqueire de terra. Os dois homens trabalhavam de sol a sol. O velho falava dos Estados Unidos. Moritz escutava. Em diversas ocasiões, suspirou. Agora estava quase arrependido de sua decisão.

À noite, depois de receber seu salário, Moritz permaneceu de olhos baixos diante do padre. Conservou-se assim ainda por um momento. Não tinha forças para ir embora. O velho deu-lhe um tapinha no ombro.

— Escreva-me assim que chegar — pediu. — Amanhã de manhã, passe para pegar o farnel que prometi. Terá o que comer durante a viagem.

Ainda lhe deu cinco cédulas de cem lei e prosseguiu:

— Chegue bem cedo. Bata discretamente na janela. É preferível que minha mulher não ouça; mulheres costumam ser avarentas, você sabe. Deixarei tudo preparado hoje à noite. Quando pretende partir?

— Devo encontrar Ghitza Ion na saída da aldeia, ao amanhecer.

— Justo o tempo de passar lá em casa. Caso contrário, eu lhe diria para vir esta noite.
— Prefiro amanhã — disse Iohann Moritz.

Imaginava que Suzanna o esperaria aquela noite. Em seguida, partiu.

III

O padre Koruga acomodou o farnel com as provisões sob a janela, encostado à parede. Apagou a luminária e foi se deitar. Antes de dormir, pensou em Iohann Moritz e em sua viagem para os Estados Unidos. Enquanto preparava o farnel, teve a estranha sensação de que era ele quem partia. Trinta anos antes, ele também preparara as bagagens. Acabava justamente de receber o diploma em teologia e fora recrutado como missionário para a colónia ortodoxa do Michigan. Uma semana antes de partir, enviara um telegrama desistindo do posto. Nesse ínterim, conhecera sua mulher e se casara. Desde então era o pope daquela aldeia. A aldeia era pequena, a vida, dura. Arrependera-se de haver desistido de partir. Mas era tarde demais. Os Estados Unidos permaneceram um sonho. Sempre que um camponês partia para lá, ele lhe dava cigarros, provisões, um pouco de dinheiro e lhe pedia para escrever quando chegasse. Fazia tudo isso à revelia da mulher. Ela nada teria a censurá-lo, mas, todas as vezes que pensava nos Estados Unidos, o velho tinha a impressão de ser-lhe infiel. Tinha sido por ela que desistira. Em seu coração, o conflito permanecera latente. Mas a partida de Iohann Moritz não era como a dos demais.

Moritz era seu homem de confiança. E, com Iohann Moritz, era um pouco dele mesmo que ia para o Novo Mundo.

A lua estava cheia no céu. O padre Koruga não conseguia dormir. Levantou-se. Acendeu a luz. Foi até a biblioteca, onde as estantes cobriam três paredes do aposento. Pegou um livro. Antes de abri-lo, deu uma espiada nas prateleiras carregadas. Havia livros em inglês, alemão, francês e italiano. Em outra parede, clássicos gregos e latinos. Eram todos velhos amigos. Às vezes ele se perguntava por que não fora lecionar na Universidade. Amigos em Iasi e Bucareste lhe haviam proposto isso. Contudo, por duas vezes recusara a cadeira de História da Igreja. Não se arrependia. Em Fântâna, celebrava a missa nos domingos e dias de festas, e no restante do tempo cuidava da terra, das abelhas, do pomar. À noite, lia. O destino ditava-lhe o futuro. Ele o aceitava. Uma única vez tentara forçar o destino: quando cogitara ir para os Estados Unidos.

Deixara tudo em ordem para partir. E, apesar disso, não partira, alguma coisa inesperada interviera. Era tudo. Desde então, desistira de fazer planos.

“Será que realmente”, perguntou-se o padre, “não estou arrependido por não ter partido trinta anos atrás? E se não estou, então por que essa estranha exaltação, hoje, dia da partida de Iohann Moritz?” E, puxando a coberta, pensou: “Não é o arrependimento de ter ficado. É a nostalgia de uma coisa que julgamos verdadeira em nossa ilusão, uma coisa que jamais possuiremos. E, se a tocássemos, logo perceberíamos que não era com isso que sonhávamos.Talvez os Estados Unidos não sejam o que eu procurava de verdade. Talvez fosse apenas um pretexto para minha inquietude. Os Estados Unidos são uma invenção de nossa nostalgia. Não tê-lo conhecido poderia perfeitamente ser menos decepcionante do que tê-lo conhecido.”

E no entanto o padre Koruga não conseguia dormir. Estava abalado. Esperava com impaciência pelo amanhecer, como se fosse ele quem devesse encontrar Ghitza Ion na saída da aldeia e ir para Constança, onde os esperava o navio “que permaneceria apenas três dias no porto”.

Quando despertou ainda estava escuro. O canto dos galos, contudo, já anunciava o sol. A estrada estava deserta, a aldeia, coberta por uma névoa esbranquiçada. O padre abriu o farnel e acrescentou o maço de cigarros que ficara na mesa. “Se Iohann for embora, não terei ninguém a quem oferecer cigarros e comprei-os para ele”, pensou. Pela janela já via o dia raiar. “Ele precisa se apressar para não chegar atrasado ao encontro.” Ouviu passos na estrada. Mas eles passaram pela casa e se perderam ao longe. Ele saiu na sacada e se lavou com água fria. Mas Moritz não estava ali para lhe despejar a água.

O sol nasceu. Iohann Moritz não chegara. O padre esperou até a hora do almoço. Depois ruminou que Moritz decerto acordara tarde demais e não tivera tempo de passar para pegar o farnel. “Pena”, pensou, “aqui há provisões para três semanas. Teria sido o suficiente também para os primeiros dias, quando chegasse.”

— Vem almoçar, Alexandru? — perguntou sua mulher.

Ela apareceu na porta.

— Daqui a pouco — respondeu o padre.

Enfiou o farnel debaixo da cama com um aperto no coração, lastimando ter de desistir de uma coisa, e desistir dela para sempre. Sua última chance de chegar aos Estados Unidos, ao menos por procuração, estava perdida. Trinta anos antes tomara a mesma atitude. Passou à mesa.
“Se Iohann Moritz houvesse levado esse farnel que preparei para ele, eu teria tido a impressão de também estar partindo. Pena que ele não veio”, pensou.

IV

Ao sair da casa do padre, Iohann Moritz deteve-se na fonte à beira da estrada. Após lavar-se sob a água corrente, dirigiu-se para o outro lado da aldeia, onde morava Nicolae Porfirie. Nicolae Porfirie possuía um terreno no limiar da floresta. Queria vendê-lo. Moritz entrou no quintal.

— Amanhã parto para os Estados Unidos — disse. — Quando voltar, terei dinheiro suficiente para comprar essa pequena propriedade. De toda forma, antes de partir, gostaria de lhe deixar um sinal para que não a ceda a mais ninguém.

— Quanto tempo ficará por lá? — perguntou o camponês.

— Até juntar meu pé de meia. Dois ou três anos.

— Três anos é um prazo razoável. Ninguém ficou mais de três anos. Nos Estados Unidos é fácil ganhar dinheiro.

— Quanto você quer? — indagou Moritz.

— Não preciso de dinheiro. Se voltar em três anos com cinquenta mil lei, terá minha propriedade. Não a cederei a mais ninguém. Aguardo sua volta.

Mesmo assim, Moritz puxou do bolso da calça um maço de cédulas e contou-as na soleira da casa.

— Aqui estão três mil lei! — disse. — É melhor que eu lhe deixe um sinal.

Iohann Moritz apertou a mão de Nicolae Porfirie: negócio fechado. Partiu. Ainda não escurecera. Queria ver o terreno. Já o vira inúmeras vezes. Conhecia-o minuciosamente, mas agora era outra história. Agora ele era seu; era só retornar com o dinheiro.

V

Iohann Moritz cortou caminho pelos campos. Avançava a passos largos. Sua camisa grudava na pele suada. Estava impaciente. Ao chegar diante do bosque de carvalhos, parou. Seu terreno estendia-se do ponto onde ele se encontrava até o limite da floresta. Estava plantado com milho, que lhe batia na altura dos ombros. O terreno não era grande, mas nele cabiam uma casa, um quintal e um pomar. Com os olhos, calculou comprimento e largura. Acima do milharal, via erguer-se o telhado da casa, o longo braço do poço com alavanca, a grande porta de carvalho, o estábulo. Muitas vezes vira tudo isso erguer-se diante dos seus olhos, porém jamais com tamanha nitidez. Tudo parecia verdadeiro, tal como ele desejara. Iohann Moritz sorriu. O vento curvava as hastes verdes do milharal, que moviam-se como ondas. Ele escutava seu rumorejar. Debruçou e apanhou um punhado de terra. Sua mão sentiu a tepidez de um ser vivo, o calor de um corpo. O calor de um pardal em nossos dedos. Iohann Moritz debruçou novamente e, com a mão direita, recolheu um punhado de terra. Fechou as mãos com força, depois abriu-as e deixou que a terra escorresse por entre os dedos. Avançou através do milharal, na direção da floresta. No meio da plantação, contudo, voltou a abaixar-se para recolher outro punhado terra. “Esta também é quente”, pensou. Acariciou a face com ela. Seu cheiro impregnou-o. “É um cheiro de fumo. Como a terra cheira bem”, pensou. Iohann Moritz ergueu a cabeça. Respirou diversas vezes, demoradamente, para encher os pulmões com os eflúvios perfumados do solo. Pensou: “Suzanna deve estar à minha espera”, e pôs-se a assobiar.

VI

A casa de Iorgu Iordan, pai de Suzanna, ficava no limiar da aldeia. Uma casa ampla, com telhado de telhas vermelhas. Atravessando os jardins, Moritz dirigiu-se ao quintal. Então parou e olhou por uma fresta da cerca. Iorgu Iordan apareceu na sacada. Andava pesadamente. Puxou os postigos, depois os ferrolhos, e fechou-os a chave, um depois do outro. Moritz acompanhava todos os seus movimentos. Após haver aferrolhado portas e janelas, Iorgu Iordan observou, desconfiado, à sua volta. Desceu os degraus de madeira, que estalavam sob seu peso de gigante. Como sempre, vestia um paletó esverdeado, botinas e culotes de montaria. Atravessou o jardim em frente à casa e dirigiu-se ao portão. Puxou bruscamente o ferrolho e girou a chave duas vezes. Então, voltou-se, equilibrando-se. Contornou a casa, lançando olhares à sua volta, como se procurasse alguém escondido na sombra. Entrou pela porta dos fundos. Ouviu-se uma chave girar duas vezes na fechadura. O silêncio se instalou.

Iorgu Iordan entrou em seu quarto, que tinha as paredes repletas de troféus de caça, cabeças de cervos, lobos e ursos empalhadas. No centro da parede, entre as águias empalhadas e uma galhada de cervo, espingardas de caça, pistolas e cartucheiras. Dos lados da imensa cama, duas peles negras. Iorgu Iordan pisou com suas botas as peles de urso e pegou uma espingarda, que apoiou na cama.

Numa gaveta, pegou um revólver, uma vela e uma caixa de fósforos, que deixou na mesa de cabeceira. Sentou-se na beirada da cama, arfante, descalçou as botas e as colocou uma ao lado da outra. Todas as noites, deixava-as no mesmo lugar para encontrá-las no escuro apenas estendendo a mão. Em seguida, despiu-se e deitou-se, afundando nos travesseiros brancos qual um urso na neve.

Iohann Moritz viu a luz apagar-se. Ela mingou, tremeluziu e depois sumiu.

A janela ficou negra feito um abismo. O quarto de Iolanda, mulher de Iorgu, estava iluminado, mas a luz era modulada e ténue. Antes de chegar à janela, ela atravessava o abajur de seda. Diziam que Iolanda era infeliz. Chegara à aldeia vinte e cinco anos antes, com Iorgu Iordan; estavam a cavalo e haviam apeado na estalagem. Ninguém sabia de onde vieram, mas devia ser de muito longe.

Ela era romena, ele não. Mais tarde, soube-se que vieram da Hungria. Ambos usavam agasalhos de pele. Depois de devorarem grelhados e vinho, haviam dormido no quarto do estalajadeiro. Ele comera como um ogro, ela como um pardal — mal tocara o prato. Três dias depois, as pessoas souberam que eles não deixariam mais a aldeia; e semanas mais tarde, haviam comprado a estalagem. Quando chegou, Iorgu Iordan não sabia uma palavra de romeno. Agora falava-o muito bem. Mesmo assim, não fizera amigos na aldeia.

Evitaram, inclusive, matricular Suzanna, a filha, na escola do lugarejo, a fim de que ela não convivesse com os filhos dos outros camponeses; Suzanna estudara na cidade. Os camponeses só viam Iolanda na igreja ortodoxa ou quando ela ia à cidade e passava no coche, ao lado de Iorgu Iordan, mirrada e encarquilhada. O gigante era duas vezes maior que ela. Iolanda tinha cabelos louros como seda fina e olhos azuis. Suzanna era muito parecida com ela. Isso era tudo que sabiam sobre Iorgu Iordan na aldeia. Certo inverno, ele matara um homem que tentara entrar em sua casa. Matara-o com sua espingarda de caça, um tiro bem entre os olhos. Os policiais haviam declarado que Iorgu Iordan estava em seu direito. Podia matar qualquer um que entrasse à noite em sua casa para lhe roubar dinheiro. Os camponeses não eram da opinião dos policiais. Um crime é sempre um crime. Mas o episódio acabou esquecido.

Tudo isso acontecera muito tempo atrás. Pelo buraco da cerca Iohann Moritz vira a luz diminuir, tremular fugazmente, depois apagar-se. Fez um funil com as mãos em torno da boca e gritou: Hu! Hu! Hu!

O grito de Moritz rasgou o ar. Seu eco antecedeu o silêncio — que não durou mais que um instante. Postigos se abriram, Suzanna pulou por uma das janelas. Atravessou o jardim, correndo na ponta dos pés. Em seguida, saiu do quintal pelo buraco da cerca, onde Iohann Moritz a aguardava.

VII

— Por que escolheu esse grito para me chamar? Por que esse pio? Por quê? — perguntou ela. Ela atravessara a cerca, Moritz quis beijá-la. Ela o evitou. — Já falei para não me chamar mais dessa forma. — Seu coração batia muito forte. Estava assustada.

— Como queria que eu fizesse? — perguntou Iohann Moritz.

— Não sei — respondeu ela. — O pio da coruja dá azar. É prenúncio de morte.

— Contos da carochinha — replicou ele. — É a única ave que canta dia e noite, chova ou faça sol, no verão e no inverno. Só a coruja. Conhece outra?

O rouxinol canta apenas no verão. Se eu imitar o canto do rouxinol, seu pai vai perceber que é um homem. Quer que o gigante saiba que sou eu que estou chamando?

— Não, não quero — disse ela —, mas coruja dá azar!

— Não é culpa minha — defendeu-se Moritz. — Por que será que não existe outro pássaro que cante em qualquer estação e a qualquer hora sem anunciar a morte? E depois não vamos mais brigar: chamei-a pela última vez esta noite. A partir de agora não precisaremos mais nos esconder. Amanhã de manhã parto para os Estados Unidos. Quando eu voltar, você será minha mulher. Não terei mais de ficar atrás da cerca e imitar a coruja.

Apertou-a contra si. Enlaçou seu pescoço com os braços. Estavam embaixo da nogueira, no mesmo lugar onde se haviam encontrado na noite da véspera e em todas as noites dos quatro meses que se conheciam. A mulher ficou mais pesada em seus braços. Ele amparou-a, estendeu-a na relva e deitou-se ao seu lado. Seus corpos se misturaram, enrolaram-se como serpentes, como cipós. As mãos procuravam-se no escuro. Ele encontrou os lábios da mulher e contra eles pressionou avidamente os seus. Estavam de olhos fechados. Em algum lugar, no jardim de Iorgu Iordan, os grilos cantavam. Eles continuavam abraçados sem dizer nada. O vestido de Suzanna fazia uma mancha azul na relva. Ela tirara-o, para que sua mãe não o visse amarrotado e manchado. As nuvens de tinta que encobriam a lua haviam se afastado e os ombros nus da mulher brilhavam na sombra. Moritz tirara a camisa para colocá-la sob o corpo de Suzanna. Ao lado dos ombros alvos da mulher, o peito de Moritz era escuro feito a casca de uma árvore.

— Iani — disse ela —, não vá.

— Por que está me falando isso? — replicou ele, entristecido. — Você sabe muito bem que, se eu não for para os Estados Unidos, não terei dinheiro para comprar o terreno. Se eu não possuir uma terra, não poderemos nos casar.

Não chegaremos a lugar nenhum se não tivermos casa nem terra. Dentro de três anos estarei de volta com o dinheiro e nos casaremos. Não quer se casar comigo?

— Quero — respondeu ela. — Mas não quero que você parta.

— E com que dinheiro eu compro a terra?

Iohann Moritz esboçou um sorriso.

— Você sabe que já dei um sinal pela terra a Nicolae Porfirie? Quando retornar, pagarei o que falta.
Iohann Moritz contou como dera o dinheiro a Porfirie, como fora vistoriar o terreno, como construiria a casa, o estábulo e tudo o mais.

— Iani, se você partir, não me encontrará viva ao retornar — disse Suzan
na, sem escutar a história.

— O que deu em você? — Moritz estava visivelmente aborrecido.

— Nada. Algo me diz. Você pode não acreditar. Mas, quando retornar, estarei morta.

— Não, não estará morta — respondeu Moritz. — Estará, como hoje, na casa de seu pai e sua mãe. Não há por que se preocupar.  Você não está sozinha. Não está na casa de estranhos, está na casa de seus pais.

Ela começou a chorar baixinho.

— O que há com você? — perguntou ele. Beijou-a. Os lábios da mulher estavam frios e molhados de lágrimas salgadas. — O que há?

— Você dirá que são ideias de louca. Ideias de mulher. É melhor não falar nada.

— Não direi que são ideias de mulher.

— Acho que meu pai quer me matar — disse ela.

— Quem lhe meteu isso na cabeça? — Sua voz estava ríspida. — Como quer que seu pai a mate?

— Eu sabia que não ia acreditar. Mas estou tremendo de medo. Sinto que ele vai agir. Meu pai notou alguma coisa. Não sei como. É por isso que ele quer me matar.

— Seu pai notou o quê?

— O nosso amor.

Iohann Moritz afastou-se dela. Na relva, o corpo de Suzanna estava claro feito mármore.

— Ele falou com você? — perguntou ele.

— Não.

— Repreendeu-a?

— Não.

— Então de onde tirou que ele notou?

— É meu coração que diz. — Ela não parava de chorar. — Mas não é só meu coração. Hoje, no almoço, quando levei os pratos para a mesa, meu pai me olhou de uma maneira estranha. Depois, gritou: “Vire-se para a parede!” Eu me virei. Senti seu olhar passear pelos meus quadris. Depois ele me disse: “Vire-se para a janela!” Olhou de novo para mim detidamente. De perfil. Cravou os olhos na minha barriga. Meus quadris. Examinou-me como se examinasse seus cavalos. E gritou, com raiva: “Fora daqui, meretriz!” Não comeu mais. Eu saí. Naquele momento, eu soube que ele percebera. Ele sabe tudo. Meu pai já me repreendeu, quando eu era pequena, inclusive me bateu; ele me bateu até eu sangrar. Mas nunca tinha me chamado de “meretriz”. Hoje, na hora do almoço, gritou: “Fora daqui, meretriz!”

— Como ele pôde saber? — perguntou Moritz. — Ele nunca nos viu juntos.

— Nunca nos viu, mas está sabendo.


— Mas como pôde saber?

— Só de me olhar.

Iohann Moritz começou a rir e beijou-a na testa.

— Ele poderia observá-la com um binóculo que não veria nada. Acha que alguém vê assim, quando a gente fez amor? Tudo isso é lorota!

— Sei muito bem que isso não se vê normalmente, mas com meu pai é diferente. Ele sabe direitinho quando é com as éguas dele. Só de olhar para elas, sabe dizer se darão cria. Seus amigos não acreditam.

— Por acaso está grávida?

— Não, não estou.

— Então não há perigo — disse ele. — Dentro de dois ou três anos estarei de volta com o dinheiro. Compraremos a terra e nos casaremos na igreja do padre Koruga. Construiremos uma casa bonita e seremos felizes. Não é verdade, Suzanna?

Ela o abraçou com toda a força. Como se tivesse medo. Tremia.

— Se você ficasse, eu não teria medo — disse ela. — Mas, se for, morrerei de medo. Mesmo se meu pai não me matar com uma espingarda, você não me encontrará viva. Morrerei de medo na sua ausência. Todas as noites eu tranco a porta do quarto e passo o ferrolho. Quando ouço os passos do meu pai, cubro a cabeça com o travesseiro. Tenho medo.

Iohann Moritz acariciou seus ombros. Puxou-a para si. Tomou-a nos braços. Não falaram mais. Ela se sentia feliz perto dele. E ele por não vê-la mais chorar. Quando o galo cantou, eles se levantaram. Suzanna enfiou o vestido, que estava frio e todo molhado de orvalho. Moritz vestiu a Aristitza abaixou-se para pegar um pedaço de pau e sová-lo. Ele estava habituado aos palavrões e às surras. 

Toda sua infância resumira-se a uma longa série de surras e insultos.

— Cuidarão bem dela? — disse ele, sorrindo. — Eu volto logo. Vou buscar alguma coisa para ela comer. E saiu do quarto.

Suzanna não se mexera. Continuava imóvel, em frente à casa. Moritz lhe acariciou o cabelo.

— Vou até a aldeia, logo estarei de volta — disse. — Quer dormir um pouco? Quando acordar, comerá alguma coisa e partiremos para a cidade.

— Não ficaremos aqui? — perguntou ela, assustada ante a ideia de uma nova caminhada.

— Não — disse ele —, venha!

Segurando-a pelas axilas, levantou-a e conduziu-a até os fundos da casa, para o celeiro, onde a estendeu sobre o feno.

— Agora, durma! — disse ele. — Caso contrário, não conseguirá ir a pé até a cidade. São pelo menos vinte quilómetros.

Suzanna sorriu para ele com gratidão. Era bom ficar dormindo, sozinha.
Ardia em febre. Seus ouvidos zumbiam. Ela mal o escutava.

— Se a minha mãe vier procurar confusão, deixe-a falar e não responda — orientou Iohann Moritz. 

— Ela está brava.

Iohann partiu. Ao chegar à estrada, voltou a cabeça para olhá-la. Sorriu novamente, mas ela já fechara os olhos.

Virgil Gheorghiu