quinta-feira, 28 de julho de 2016

OUTROS CONTOS

«Andando por Aí», conto poético por John Ashbery.

«Andando por Aí»
Casal Caminhando/ Vincent van Gogh

839- «ANDANDO POR AÍ»

Que nome tenho eu para ti?
Decerto não há nome para ti
No sentido em que as estrelas não têm nomes
Que de algum modo lhes servem. Andando por aí,

Um motivo de curiosidade para alguns,
Mas tu estás demasiado preocupado
Com a nódoa secreta do outro lado da tua alma
Para falar muito, e vagueias por aí,

Sorrindo para ti e para os outros.
Chega a ser um tanto solitário,
Mas ao mesmo tempo desanimador,
Contraproducente, quando percebes uma vez mais

Que o caminho mais longo é o mais eficaz,
Aquele que serpenteava por entre as ilhas, e
Parecia que andavas sempre em círculo.
E agora que o fim está perto

Os gomos da viagem abrem-se como um laranja.
Lá dentro há luz, e mistério e sustento.
Anda ver. Vem, não por mim, mas por isso.
Mas se eu ainda lá estiver, concede que nos possamos encontrar.

John Ashbery

SÁTIRA...

Por um Pêlo
Sátira...

«POR UM PÊLO»

Na cabeça do ‘Bosta’
Por um fio não acertei…
Foi no ‘Lapin’ que caguei,
E não obtive resposta.
De merda ele até gosta
Outra coisa não fez,
Pode sumir-se de vez
O ‘cuniculus’ fascista…
Não foi preciso pista
Pra saber que era má rês!

POETA

quarta-feira, 27 de julho de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

MICK JAGGER - «Hard Woman»

Poet'anarquista

MULHER DIFÍCIL

Ela é uma mulher difícil de agradar
E eu pensei em deixá-la saber
Ela é uma senhora difícil de abandonar
E eu pensei em deixá-la partir
Ela é uma senhora durona de abandonar
Mas eu pensei nisso
Ela é uma senhora difícil de agradar, sim, ela é

Eu dei-lhe risos, ela queria diamantes
Eu fui romântico, ela me tratou cruelmente
Onde está a compaixão, onde está o amor?

Você sabe, a paixão tem um modo engraçado
De incendiar e esgotar-se
E subitamente apaga-se
E você se pergunta "onde ela vai? "

Ela é uma mulher difícil de agradar
Eu tenho pensado em deixá-la saber
Ela é uma senhora difícil de abandonar, sim, ela é

Eu dei-lhe risos, ela queria diamantes
Ela foi infiel, me tratou cruelmente
Onde está a compaixão, onde está o amor?

Estou sozinho finalmente; algo dentro de mim sabe [que]
Eu podia ter amado em vão durante mil anos
Eu tenho de deixá-la partir

Eu tenho de deixá-la partir
Eu tenho de dizer adeus
Como posso dizer adeus para meu benzinho?
Ela é uma pessoa durona, mulher difícil
Eu tenho de dizer adeus

Sozinho finalmente e algo dentro de mim sabe [que]
Eu podia ter amado em vão durante mil anos
Eu tenho de deixá-la partir

E o tempo passa tão rápido
e o novo amor começa tão lentamente
Eu podia ter amado em vão durante mil anos
Eu tenho de deixá-la partir

Eu tenho de deixá-la partir
Eu tenho de dizer adeus
Mulher difícil de agradar, sim, você é
Mulher difícil, senhora durona
Eu tenho de, tenho de dizer adeus
Como posso dizer adeus para meu benzinho?
Como posso dizer adeus para meu benzinho?
Até logo, doçura

Mick Jagger
Cantor e Compositor Britânico

terça-feira, 26 de julho de 2016

OUTROS CONTOS

«Novos Pesadelos Informáticos», por João Ubaldo Ribeiro.

«Novos Pesadelos Informáticos»
Conto de João Ubaldo Ribeiro

838- «NOVOS PESADELOS INFORMÁTICOS»

Outro dia, uma revista me descreveu como convicto “tecnófobo”, neologismo horrendo inventado para designar os que têm medo ou aversão aos progressos tecnológicos. Acho isso uma injustiça. Em 86, na Copa do México, eu já estava escrevendo (aliás, denúncia pública: este ano não vou à França, ninguém me chamou; acho que fui finalmente desmascarado como colunista esportivo) num computadorzinho arqueológico, movido a querosene, ou coisa semelhante. Era dos mais modernos em existência, no qual me viciei e que o jornal, depois de promessas falsas, me tomou de volta. Tratava-se de coisa finíssima. O modem, por exemplo, era uma espécie de desentupidor de pia, que se fixava no telefone e que fazia aparecer do outro lado os piores bestialógicos imagináveis. Mas éramos felizes com ele.

Já no final de 86, era eu orgulhoso proprietário e operador de um possante Apple IIE (enhanced), com devastadores 140 kb de memória, das quais o programa para escrever comia uns 120. Mas eu continuava feliz, com meu monitor de fósforo verde e minha impressora matricial Emilia, os quais se transformaram em atração turística de Itaparica, tanto para nativos quanto para visitantes. Que maravilha, nunca mais ter de botar papel carbono na máquina ou ter de fazer correções a caneta — e eu, que sempre fui catamilhógrafo, apresentava um texto mais sujo do que as ruas da maioria de nossas capitais. Havia finalmente ingressado na Nova Era, estava garantido.

Bobagem, como logo se veria. Um ano depois, meu celebrado computador não só me matava de vergonha diante dos visitantes, como quebrava duas vezes por semana e eu, que não dirijo, pedia à minha heróica esposa que o levasse a Salvador, poderosíssima razão para minha conversão pétrea à indissolubilidade do matrimônio. E ai entrei na roda-viva em que hoje, mais ou menos irremediavelmente, me encontro. Já disse aqui que, no meu tempo, tudo o que o sujeito precisava para ser escritor ou jornalista eram um lápis, uma canetinha ou uma máquina de escrever. Hoje não, hoje o sujeito tem de aprender algumas coisas de novo toda semana, sob o risco de se ver desempregado, ou ridicularizado por amigos sem piedade.

Olho assim em torno, todos os meus amigos são micreiros. Basta dizer que sou amigo da Cora Rónai e do Gravatá. Todo mundo que conheço é plugado na Internet e conversa em termos incompreensíveis. A turma do Casseta e Planeta é micreira. Millôr Fernandes é micreiro. Todo mundo é micreiro. Só quem não é micreiro, que eu me lembre assim, é o festejado poeta Geraldo Carneiro, que não sabe nem numerar as páginas de seu texto a imprimir (habilidade que eu tenho, embora precariamente). Assim mesmo, em delírios paranóicos, às vezes suspeito que ele, conhecido por saber tudo, finge ignorância informática por caridade comigo. Não se pode confiar em ninguém, hoje em dia. Mas ganhei um computador novo! Fui dormir felicíssimo, pensando em meu lapetope de última geração, cheio de todas as chinfras. Mas tudo durou pouco, porque um certo escritor amigo meu me telefonou.

— Alô! — disse o Zé Rubem do outro lado.

— Você tem tempo para mim? Digo isso porque, com seu equipamento obsoleto, não deve sobrar muito tempo, além do necessário para almoçar apressadamente.

— Ah-ah! — disse eu. — Desta vez, você se deu mal. Estou com um lapetope fantástico aqui.

— É mesmo? — respondeu ele. — Pentium II?

— Xá ver aqui. Não, Pentium simples, Pentium mesmo.

— Ho-ho-ho-ho! Ha-ha-ha-ha! Hi-hi-hi hi!

— O que foi, desta vez?

— Daqui a uns quatro meses, esse equipamento seu estará completamente obsoleto. Isso não se usa mais, rapaz, procure se orientar!

— Como não se usa mais? Todos os micreiros amigos meus têm um Pentium.

— Todos os amigos, não. Eu, por exemplo, tenho um Pentium II. Isso… Ninguém tem Pentium II!

— Eu tenho. Mas não é grande coisa, aconselho você a esperar mais um pouco.

— Como, não é grande coisa? Entre todo mundo que eu conheço é só você tem um e agora vem me dizer que não é grande coisa.

— Você é um bom escritor, pode crer, digo isto com sinceridade. Quantos megahertz você tem nessa sua nova curiosidade?

— 132.

— Hah-ha-ha! Ho-ho-hihi!

— Vem aí o Merced, rapaz, o Pentium7, não tem computador no mercado que possa rodar os programas para ele.

— E como você fica ai, dando risada?

— Eu já estou com o meu encomendado, 500 megahertz, por ai, nada que você possa entender.

— Mas, mas…

Acordei suando, felizmente era apenas um pesadelo. Meu amigo Zé Rubem, afinal de contas, estaria lá, como sempre, para me socorrer. Fui pressuroso ao telefone, depois de enfrentar mais senhas do que quem quer invadir os computadores do Pentágono.

— Alô, Zé! Estou de computador novo!

— Roda Windows 98? Tem chip Merced?

— Clic — fiz eu do outro lado.

João Ubaldo Ribeiro

SÁTIRA A DOIS AMIGOS

A perna do Muleta, o meu vizinho Gomes e...
O selvagem Renato Sanches!

SÁTIRA

Um grande benfiquista
Partiu a tíbia e o perónio…
Escorregou o António,
E deu queda fatalista!
O Gomes sportinguista
Diz que foi o selvagem,
Não apitou a arbitragem
Há claríssima rasteira…
Só pode ser brincadeira
Acusar tal personagem!!

Matias José 

segunda-feira, 25 de julho de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(Calmaria)

DIRE STRAITS - «Local Hero/ Wild Theme»

Poet'anarquista

Dire Straits
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«As Lamentações dos Cegos», por Elias Canetti.

«As Lamentações dos Cegos»
Os Cegos/ Albin Egger Lienz (1918)

837- «AS LAMENTAÇÕES DOS CEGOS»

Tento contar coisas, mas, mal me calo, reparo que ainda nada disse. Algo de brilho e peso maravilhosos, forma-se-me cá dentro e zomba das palavras. Será a linguagem daquela gente, e que eu ainda não entendo, que se introduz, a pouco e pouco, em mim? Casos, imagens, sons, tudo a fundir-se num todo que as palavras não captariam nem alterariam. "Todo" que vai para além das palavras, e que é mais profundo e mais ambíguo do que elas.

Imagino um homem que, desaprendidas todas as línguas da terra, chegue ao ponto de não mais entender o que quer que seja, onde quer que seja.

O que é que vive numa linguagem? O que é que ela encobre? O que é que ela capta? Durante aquelas semanas passadas em Marrocos, nunca tentei aprender árabe nem tão pouco os dialectos berberes. Não queria perder nada da força contida nessas estranhas lamentações. Queria ser apanhado em cheio por esses sons e não abrandá-los através de vagos conhecimentos, tão insuficientes como artificiais.

Nada lera sobre essa terra. Os seus costumes eram-me tão desconhecidos como as suas gentes. O pouco que se possa ter aprendido durante toda uma vida acerca de qualquer país e acerca do seu povo, some-se, por inteiro, logo nas primeiras horas.

Por exemplo, a palavra "Allah", na qual nunca consegui penetrar, aproximar-me dela, sequer. E, no entanto, nessa palavra assentava boa parte da minha experiência, sendo como era a mais frequente, a mais eficaz, a mais aguda, a mais permanente das que os cegos iam pronunciando.

Para uma viagem levamos connosco quase tudo, mas a revolta, a indignação, essas ficam deliberadamente esquecidas em casa. Vemos, ouvimos, maravilhamo-nos perante o medonho, só porque o medonho é algo de novo. O bom e perfeito viajante não tem coração!

No ano passado, a caminho de Viena e após uma longa ausência de quinze anos, estive numa aldeia chamada Blindenmarkt - "Mercado dos Cegos" - aldeia de cuja existência não me apercebera até então. Tal nome atingiu-me como uma chicotada, e desde então nunca mais o esqueci.

E foi este ano, durante a minha estada em Marraquexe, que, de novo, dei por mim entre cegos. Eram centenas, inumeráveis centenas, na sua maior parte mendigos. Reunidos em grupos de oito, por vezes de dez, e postos em filas junto ao mercado, as suas roucas e eternamente repetidas lamentações ouviam-se cá de longe.

Punha-me então diante deles, imóvel como eles, sem nunca ter a certeza se sentiam ou não a minha presença. Cada qual tinha à sua frente uma espécie de pequena taça de madeira destinada às esmolas. Ao cair em qualquer delas uma moeda, a moeda passava então de mão em mão, e cada cego apertava-a, sentia-a, experimentava-a, até que aquele que estivesse incumbido de tal tarefa, a arrecadava na algibeira. Em conjunto sentiam, em conjunto murmuravam, em conjunto se lamentavam.

Todos os cegos como que ofereciam o nome de Deus. Era, pois, através das esmolas que ganhávamos direito a Ele. Com Deus começam e com Deus terminam, repetindo o Seu Nome dez mil vezes por dia. Todos os seus lamentos contêm sempre esse Nome. A invocação à qual se agarram um dia, mantém-se inalteravelmente. Espécie de arabescos acústicos tecidos à volta de Deus, infinitamente mais convincentes do que qualquer coisa obtida através da visão.

Uns confiam em absoluto no Seu Nome e nada mais dizem para além d'Ele. Férrea obstinação, que faz com que Deus me surja como uma muralha, sempre atacada através da mesma brecha. Penso, sinceramente penso, que os pedintes se agarram à vida mais pelas suas invocações, do que pelas esmolas que pedem. A repetição dessa lamentosa evocação caracteriza o pedinte como mais nada. Metemo-nos na sua pele, conhecemo-lo, finalmente, e a partir de então nunca mais ele deixará de ali estar. É como que uma propriedade, rigorosamente delimitada. O seu lamento é a sua fronteira, que protege, que defende! Ali, o cego é exactamente aquilo que clama, que invoca, que pede. Mas o seu lamento é também multiplicação. A repetição rápida e regular dissolve-o no grupo. Singular lamento, da insuspeitada energia. Cada cego pede para muitos e colhe para todos.

"Pensa em todos os pobres!
Pensa em todos os pobres!
Deus te abençoará por todas as esmolas que deres!"


Quer isto dizer, que os pobres entrarão no Paraíso pelo menos quinhentos anos antes dos ricos. Aos pobres, e pelas esmolas, compra-se um quinhão do Paraíso. Quando morre alguém "o cortejo segue a pé com ou sem carpideiras, mas sempre rapidamente até à cova, para que o morto depressa alcance a felicidade. O credo é recitado pelos cegos".

Desde que deixei Marrocos, que, por várias vezes, de olhos fechados e pernas cruzadas, me sentei num canto do meu quarto, tentando dizer durante meia hora, em compasso certo e com forte convicção "Alá, Alá, Alá!" Procurei imaginar que continuava a pronunciar essa palavra durante todo o dia e boa parte da noite. Que, após um breve sono, voltaria a pronunciá-la de novo, prosseguindo dia após dia, durante semanas, meses e anos. Que envelheceria cada vez mais e que cada vez mais viveria, teimosamente preso à vida. Que me enfureceria quando qualquer coisa me perturbasse. Que nada mais me interessaria a não ser permanecer assim.

Compreendi, finalmente, o que é que aqueles pedintes cegos realmente são. São os santos da repetição, da insistência, da teimosia sagrada, de cujas vidas quase tudo foi suprimido.

Existe o lugar onde eles se acocoram ou se mantêm de pé. Existe o seu inalterável lamento. Existe um limitado número de moedas pelas quais anseiam, quatro ou cinco unidades diferentes. Existem também os que dão e que muito diferem entre si. Mas os cegos não conseguem ver tais diferenças, e é através das suas palavras de gratidão que tentam que essas diferenças se esbatam.

Elias Canetti

sexta-feira, 22 de julho de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

SUPERTRAMP - «School»

Poet'anarquista

ESCOLA

Eu posso te ver pela manhã quando você vai à escola
Não se esqueça dos seus livros, você sabe que deve aprender a regra de ouro
Os professores falam para você parar de brincar e voltar a seus deveres
E ser como Johnie "Bonzão", você sabe, ele nunca enrola
Ele está progredindo...

Depois da escola, você está brincando no parque
Não fique fora até tarde, não deixe escurecer
Te dizem para não ficar vagando e aprender sobre a vida
E crescer igualzinho a eles, você não vai deixar as coisas funcionarem?
E você está cheio de dúvidas

Não faça isto e não faça aquilo
O que eles estão tentando fazer?
- Fazer de você um bom menino
Eles sabem onde está?
Não critique, eles são velhos e sábios
Faça como te dizem
Você não vai querer que o diabo venha e arranque seus olhos

Talvez eu esteja enganado, esperando que você lute
Ou talvez eu seja louco, não sei distinguir o errado do certo
Mas enquanto eu viver tenho isto para dizer
É sempre por sua conta se você quer ser isto, quiser ver isto, quiser ver assim
- Você está progredindo...

Supertramp
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«Na Muralha da Cidade», por Rudyard Kipling.

«Na Muralha da Cidade»
A Prostituta/ aqui: PINTURA - ANTONIO BERNI

836- «NA MURALHA DA CIDADE»

A profissão de Lalun é a mais antiga do mundo. Lilith era a sua própria bisavó, e isto antes dos tempos de Eva, como toda a gente sabe. No Ocidente, as pessoas falam desagradavelmente da profissão de Lalun; escrevem ensaios sobre ela e distribuem-nos entre os jovens para que a Moralidade seja mantida. No Oriente, onde tal profissão é hereditária e passa de mãe para filha, ninguém escreve ensaios ou repara, o que prova a incapacidade do Oriente para tratar dos seus próprios assuntos.

O verdadeiro marido de Lalun – pois, no Oriente, até mesmo as mulheres com a profissão de Lalun têm de ser casadas – era uma grande árvore de jujuba. A mãe, que tinha casado com uma figueira, gastou dez mil rupias com o casamento de Lalun, que foi abençoado por quarenta e sete sacerdotes do credo da mãe, e distribuiu cinco mil rupias em esmola aos pobres. Era esse o costume do país. As vantagens de ter uma árvore de jujuba como marido são óbvias. Tem um ar imponente e é impossível
ofendê-la.

O marido de Lalun erguia-se na planície fora das muralhas da cidade e a casa dela ficava sobre a muralha Leste diante do rio. Se alguém caísse do largo parapeito da janela, caía dez metros até à vala. Mas se uma pessoa se deixasse ficar onde devia e contemplasse as redondezas, via o gado a ser levado para beber água, os estudantes do colégio do governo a jogar críquete, as árvores e a erva alta nas margens do rio, grandes bancos de areia que orlavam o rio, os túmulos vermelhos dos imperadores mortos para lá do rio e, muito ao longe, através da neblina azul do calor, a neve dos Himalaias a cintilar.

Wali Dad costumava deitar-se no parapeito da janela durante horas seguidas a contemplar esta vista. Era um jovem maometano que sofria gravemente da educação administrada pelos ingleses e dava-se conta disso. O pai tinha-o enviado para uma escola missionária a fim de adquirir sabedoria e Wali Dad absorvera mais do que o pai ou os missionários tinham tencionado dar-lhe. Quando o pai morreu, Wali Dad ficou por conta própria e passou dois anos a estudar os diferentes credos deste mundo e a ler livros sem utilidade nenhuma para ninguém.

Após uma malograda tentativa para ser admitido na Igreja Católica Romana e Presbiteriana ao mesmo tempo (os missionários aperceberam-se disso e fartaram-se de lhe chamar nomes sem compreender o seu problema), Wali Dad avistou Lalun na muralha da cidade e tornou-se no mais constante dos seus poucos admiradores. Tinha uma cabeça que faria os artistas ingleses delirar e pintá-la no meio de extravagantes decorações – um rosto que as romancistas usariam com deleite ao longo de novecentas páginas. Na verdade, ele era apenas um jovem maometano de boa aparência com sobrancelhas bem desenhadas, narinas pequenas, mãos e pés pequenos e uma expressão cansada nos olhos. Pelo facto de ter vinte e dois anos, deixara crescer uma barba negra bem cortada que ele afagava com orgulho e mantinha delicadamente perfumada. A sua vida parecia dividir-se entre pedir-me livros emprestados e fazer a corte a Lalun no parapeito da janela. Compunha canções em homenagem dela e algumas dessas canções ainda hoje são cantadas na cidade, da rua dos Talhantes de Carneiro ao pátio dos Latoeiros.

Uma das canções, a mais bonita de todas, conta que a beleza de Lalun era tão grande que perturbou o coração do governo britânico e fez com que os seus funcionários perdessem a paz de espírito. É assim que essa canção é cantada nas ruas, mas, se prestarmos atenção e nos apercebermos do seu significado oculto, verificaremos que há nela três trocadilhos – “beleza”, “coração” e “paz de espírito” – e, assim, a sua interpretação é a seguinte: “A subtileza de Lalun perturbou a administração do governo que perdeu tal e tal funcionário.”

Quando Wali Dad canta esta canção, os seus olhos brilham como carvões em brasa e Lalun recosta-se nas almofadas e atira-lhe botões de jasmim.

Rudyard Kipling

quarta-feira, 20 de julho de 2016

OUTROS CONTOS

«Breviário da Decomposição», por Emil Cioran.

«Breviário da Decomposição»
Decomposição (fig. II)/ Renato Pereira

835- «BREVIÁRIO DA DECOMPOSIÇÃO»

[Excerto]

É inútil construir tal modelo de franqueza: a vida só é tolerável pelo grau de mistificação que se põe nela. Tal modelo seria a ruína da sociedade, pois a “doçura” de viver em comum reside na impossibilidade de dar livre curso ao infinito de nossos pensamentos ocultos.

É porque somos todos impostores que nos suportamos uns aos outros. Quem não aceitasse mentir veria a terra fugir sob seus pés: estamos biologicamente obrigados ao falso. Não há herói moral que não seja ou pueril, ou ineficaz, ou inautêntico; pois a verdadeira autenticidade é o aviltamento na fraude, no decoro da adulação pública e da difamação secreta.

Se nossos semelhantes pudessem constatar nossas opiniões sobre eles, o amor, a amizade, o devotamento seriam riscados para sempre dos dicionários; e se tivéssemos a coragem de olhar cara a cara as dúvidas que concebemos timidamente sobre nós mesmos, nenhum de nós proferiria um “eu” sem envergonhar-se.

A dissimulação arrasta tudo o que vive, desde o troglodita até o cético. Como só o respeito das aparências nos separa dos cadáveres, precisar o fundo das coisas e dos seres é perecer; conformemo-nos a um nada mais agradável: nossa constituição só tolera uma certa dose de verdade…

Emil Cioran 

SÁTIRA...

Os Amigos são para as Ocasiões
Sátira...

«OS AMIGOS SÃO PARA AS OCASIÕES»

- Sobre as sanções da UE…
Meu querido amigo,
Estou solidário contigo,
Portugal deve bater o pé!
- Há pois… lá isso é…?
E de que maneira bateu!...
Ganhámos o Europeu
A uns nojentos franceses...
Valentes portugueses!!
- Chega de prosa, ó meu!!!

POETA

SÁTIRA...

A Confirmação
Sátira...

«A CONFIRMAÇÃO»

- Cosa-se!... bolas pra isto!!
Vamos ter mais austeridade,
Vai ser a doer de verdade
Em 2017… eu não resisto!
- Como sabes desse registo?
- Mulher… fácil adivinhar…
Põe a cabeça a pensar!
O primeiro-ministro acabou
De negar o que pensou:
É o Zé que se vai tramar!!

POETA

terça-feira, 19 de julho de 2016

ESPECIAL MÚSICAS DO MUNDO

E a música especial de hoje é...

[DUNKELBUNT] - «Smile On Your Face»

Poet'anarquista

[Dunkelbunt]
Banda Germânica

OUTROS CONTOS

«Sardenta», conto poético por Cesário Verde.

«Sardenta»
A Sardenta/ Carlos Farinha

834- «SARDENTA»

Tu, nesse corpo completo,
Ó láctea virgem doirada!
Tens o linfático aspecto
Duma camélia melada.

Cesário Verde

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

BRIAN MAY - «FBI»

Poet'anarquista

Brian May
Guitarrista e Compositor Britânico

domingo, 17 de julho de 2016

OUTROS CONTOS

«Posse», conto poético por João José Cochofel.

«Posse»
Abraço dos Amantes/ Egon Schiele

833- «POSSE»

Lá fora
o sol passava as fronteiras
de horizontes longínquos,
e dentro do quarto tombava
uma luz vaga…

Deitado
o teu lindo corpo espraiava-se
brando,
num abandono morno
que a luz sem arestas afagava.
Tudo em ti era uma espera
dos teus seios suaves de menina
e do teu sexo em flor.

Minhas mãos escorregaram lentas…
Tu lentamente cedias
e os olhos eram poços fundos e escuros
na noite que descia.

João José Cochofel

quinta-feira, 14 de julho de 2016

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

COMPAY SEGUNDO - «Chan Chan»

Poet'anarquista

Compay Segundo
Músico, Cantor e Compositor Cubano

OUTROS CONTOS

«Poética Contraditória», conto poético por António Quadros.

«Poética Contraditória»
Soneto de António Quadros

832- «POÉTICA CONTRADITÓRIA»

Não digas o que sabes nos teus versos,
Deixa para trás a ciência e a consciência;
Tudo aquilo que em ti não for ausência
São ideais perdidos, ou submersos.

Abandona-te às vozes que não ouves,
E liberta os teus deuses nos teus dedos;
Não busques os sorrisos, mas os medos,
E o que não for ignoto e só, não louves.

Ser misterioso e triste, é ser poeta:
Mesmo a luz que palpita nos teus cantos.
É uma imagem heróica dos teus prantos.

Percorre o teu caminho até ao fundo,
E com os versos que achaste, aumenta o mundo.
Não sejas um escritor, mas um profeta.

António Quadros

quarta-feira, 13 de julho de 2016

SÁTIRA...

Nada será como Antes
Sátira...

«NADA SERÁ COMO ANTES»

- Eu vou mandar uns fiscais
Controlar o teu orçamento…
- Esse jogo mui nojento
Só pode vir d’irracionais!
- Respeito nunca é demais…
Afinal, a Europa sou eu!
- E eu, Campeão Europeu,
Não aceito intromissão!
- Já pus a circular petição:
Quem ganhou, perdeu!!

POETA

OUTROS CONTOS

«O Urso», por William Faulkner.
«O Urso»
Conto de William Faulkner

831- «O URSO»

Tinha dez anos. Mas aquilo já começara antes, muito antes do dia em que – afinal – escreveu a idade com dois algarismos e viu pela primeira vez o campo de caça onde seu pai, o Major Spain, o velho General Compson e os outros passavam duas semanas todo mês de novembro e outras duas todo mês de junho.

Então, já herdara deles – sem nunca o ter visto sequer – o medonho urso da pata aleijada numa armadilha. O urso que, numa área de quase cento e cinquenta quilómetros de circunferência, ganhara direito a um nome, a um tratamento, como um homem.

Há muitos anos que ele ouvia a história, a lenda dos celeiros roubados, de leitões e cevados, de vitelos levados inteiros para a floresta e devorados; de armadilhas e fossos desfeitos e cães mutilados ou mortos; de chumbadas de caçadeiras e até de carabinas atiradas quase à queima-roupa com menos resultado do que se fosse um punhado de ervilhas atirado por uma criança. Histórias de um corredor de ruína e destruição, que começava antes do seu nascimento e através do qual corria, não muito depressa mas com a deliberação implacável e irresistível de uma locomotiva, o vulto hirsuto e medonho. O urso.

Já antes de ver o urso ele lhe surgia tal como era, especialmente nos sonhos. Muito antes de ter sequer avistado os bosques onde o animal deixava a sua pegada torta, era capaz de descrevê-lo, felpudo, enorme, de olhos vermelhos, antes grande do que maldoso, grande demais para os cães que tentavam acossá-lo, para os cavalos que tentavam derrubá-lo, para os homens e as balas que o perseguiam, grande demais para a própria região a que estava limitado. Parecia vê-lo inteiro, muito antes de ter visto a solidão selvagem e condenada, de orlas constantemente e covardemente cortadas e roídas por homens com machados e arados, que tinham medo dela por ser selvagem, homens que sem conta e sem nome uns para os outros na região onde o próprio urso ganhara um nome. Viu-o, mesmo, muito antes de imaginar a região através da qual corria não só um animal mortal mas um sabe Deus o quê, indomável e invencível, vindo de um tempo já morto; um fantasma, epítome e apoteose daquela vida selvagem que o enxame de homens covardes lacerava numa fúria de ódio e de terror, como pigmeus em torno das patas de um elefante sonolento, e sobre o velho urso solitário, indomável e só, viúvo sem filhos e só, absolvido da mortalidade e só.

Até os dez anos de idade, quando chegava o mês de novembro, o rapaz via o carroção com os cães, as camas, a comida, as armas, o pai, o negro Jim da Tennie e o índio Sam Fathers (filho de uma escrava e de um chefe de índios Chicksaw), todos partindo pela estrada para a vila, para Jefferson, onde o Major e os outros se reuniam. No entender do rapaz, aos sete, oito e nove anos, eles não iam ao Vale Fundo para caçar ursos ou veados. Iam para ter um encontro com o urso, que nem sequer pensavam em matar. Tanto é que voltavam após duas semanas de caça, sem troféus, sem peles nem cabeças. Nem ele esperava por elas. Nem temia que o carroção trouxesse alguma coisa. Acreditava que quando fizesse dez anos e o pai o levasse também à caça nas duas semanas de novembro, ele seria apenas um dos participantes, com o pai, o Major e o General Compson, com os outros, com os cães que tinham medo de o acossar e as caçadeiras que nem sangue lhe faziam: seria mais um no cortejo anual de homenagem à imortalidade do velho urso.

Até que ouviu os cães. Foi na segunda semana da sua primeira caçada. Ficou parado ouvindo, com o Sam Fathers, de encontro a um enorme carvalho, ao lado do cruzamento que vigiava já por nove manhãs. Ouvira-os já uma vez antes disso, numa das manhãs da semana anterior. Ouvira um murmúrio que ecoava pelos bosques molhados, crescendo em vozes separadas, possíveis de reconhecer e chamar pelo nome. Levantou a arma com o dedo no cão – tal como Sam ensinara – e de novo ficou imóvel, enquanto o alarido, a corrida invisível, se aproximava, passava, morria ao longe. Quase lhe parecia ver o veado macho, fulvo, cor de fumo, retesado pela velocidade, voando, desaparecendo, os bosques, a solidão cinzenta ainda a vibrar mesmo depois da algazarra dos cães ter desaparecido.

– Agora solte o cão – disse Sam.

– Você já sabia que eles não vinham pra´qui.

– Sabia. Quero que aprenda o que deve fazer quando não disparar. É depois que se perde a oportunidade de atirar que acontecem desastres aos homens e aos cães. Seja como for – disse depois – não passava de um veado.

E agora, na décima manhã, ouviu outra vez os cães. Aprontou a espingarda comprida e pesada – como Sam ensinara – ainda antes que o índio desse ordem. Mas desta vez não havia veado, nem coro de cães a correr sobre um rastro fácil. Era um latir fatigante, uma oitava acima, com qualquer coisa de indeciso e até de abjeto; que parecia não se mover e levava tempo enorme para ficar longe do alcance do ouvido. E que então deixava no ar um eco agudo, levemente histérico, quase lamentoso, humano. Aquilo não podia ser a perseguição a qualquer animal fugitivo, cor de fumo, herbívoro. E o Sam, que lhe ensinara a armar a espingarda antes de mais nada, a tomar posição de onde pudesse ver tudo e depois não se mexer nem bulir na espingarda, viera para o lado dele. O rapaz ouvia o índio respirando sobre o seu ombro e via a curva arqueada das narinas do velho.

– Ah – disse Sam – nem se dá ao trabalho de correr. Vem andando.

– É o velho Ben – a voz do rapaz estava excitada. – Mas tão aqui em cima?

– Faz isso todos os anos – disse o índio. – Uma vez. Provavelmente para ver quem veio este ano, se é gente que sabe atirar ou não. Para ver se já temos o cão capaz de acossá-lo e meter-lhe os dentes. Vai levar os cães todos ao rio e depois mandá-los para trás.

O menino ficou ouvindo. Sam disse vamos voltar e depois disse, mais para si próprio:

– Vai ver o aspecto deles, quando chegarem de volta ao acampamento.

Quando chegaram ao acampamento os cães já estavam lá, dez deles, encolhidos atrás da cozinha. O rapaz e o índio acocoraram-se para espreitar na escuridão onde estavam amontoados, silenciosos, de olhos reluzentes que acendiam e apagavam. E nem um único som. Só aquele pressentimento de qualquer coisa mais forte do que um cão e não apenas um animal ou fera. Nada houvera diante daquele latir abjeto e quase doloroso senão a solidão selvagem.

E quando o undécimo cão chegou, ao meio-dia, todos olharam, até o velho tio Ash – que se dizia cozinheiro antes de mais nada. E Sam tratou-o com terebentina e massa de untar os eixos, passando mãos cheias na orelha em tiras e na espádua. E para o rapaz, o autor de tudo aquilo continuou a ser a solidão selvagem que castigara com uma pancada leve a temeridade do cão.  Aquilo não parecia obra de uma criatura viva, mortal.

– Tal e qual um homem – disse Sam. – Tal e qual. Foi demorando, demorando o mais possível, adiando a ocasião de ter coragem, sabendo perfeitamente que mais tarde ou mais cedo teria de ganhar coragem para poder continuar merecendo o nome de cão; e sabendo antecipadamente o que lhe aconteceria, quando a coragem chegasse.

Nessa tarde, montado na mula caolha do carroção, que não se importava com o cheiro de sangue (nem, como lhe contaram, com o dos ursos), e com Sam ao lado montado na outra, cavalgaram durante mais de três horas naquele dia de inverno. Não seguiram nenhuma senda, nenhum atalho que ele percebesse. Em pouco tempo estavam num lugar desconhecido para eles. Então, compreendeu porque é que Sam lhe dera a mula menos espantadiça. A outra parou, tentou voltar a fugir. Mesmo quando o índio desceu e agarrou as rédeas, bem curto, ela continuou bufando, puxando, querendo voltar. Sam incitava a mula a correr, gritando com ela, porque não queria arriscar amarrá-la. 

Finalmente, ela avançou, bufando sempre. O rapaz não teve dificuldade com a sua, mas também desceu e segurou as rédeas, curto.

De pé, ao lado de Sam, no escuro da tarde que morria, olhos no tronco apodrecido e virado, estripado e riscado de marcas de garras, o rapaz viu na terra molhada, ao lado, a pegada da enorme pata de dois dedos, torta. Agora sabia que cheiro sentira quando fora olhar os cães encolhidos debaixo da cozinha. Pela primeira vez compreendeu que o urso que via antes, que aparecia nos seus sonhos desde que se conhecia como gente e que devia ter existido antes nos sonhos do pai, do Major e até do velho General Compson, que esse urso era um animal mortal. E que – pensou – se eles tinham partido todos os anos no mês de novembro para a caçada sem esperanças de voltar com o troféu, não era porque este não pudesse ser abatido, mas porque até aqui eles não tiveram ainda verdadeiras esperanças de caçá-lo.

– Amanhã – disse ele.

– Tentaremos amanhã – emendou Sam. – Mas ainda não temos cão.

– Temos onze. Contamos esta manhã.

Só é preciso um. Mas não está aqui. Talvez não esteja em parte alguma. A única maneira é ele dar de cara, por acidente, com alguém que esteja armado.

– Não seria comigo. Seria o Walter, ou o Major, ou…

– Podia ser – disse o índio. – Amanhã tenha muito cuidado. Porque ele é matreiro. É por isso que ainda não morreu. Se estiver cercado e tiver de escolher alguém a quem atacar, escolherá você.

– Por quê? – perguntou o rapaz.

– Como é que ele vai saber… Você quer dizer que ele já me conhece, sabe que é a primeira vez que venho, que ainda não tive tempo de… – parou novamente e olhou para Sam bem nos olhos. O rosto do velho nada revelava, a não ser quando sorria. Depois disse humildemente, sem espanto algum: – Foi a mim que ele veio observar. E não foi preciso vir aqui mais de uma vez, não é?

Na madrugada seguinte saíram do acampamento três horas antes de amanhecer o dia. Desta vez foram montados, porque era muito longe para ir a pé. Até os cães foram na carripana. Mais uma vez o nascer do dia cinzento o surpreendeu em um lugar que nunca vira antes. Sam indicou o lugar onde devia ficar, e depois o deixou. Com a espingarda na mão – a espingarda que era grande demais para ele porque não era dele e sim do Major, e que apenas disparara uma vez, num cepo, no primeiro dia, para conhecer o coice e aprender a carregá-la – encostou-se a uma árvore-de-borracha, ao lado de um riacho cuja água negra e tranquila escorria sem ruído através de um canavial, atravessava uma aberta e se metia outra vez entre as canas onde, invisível, um pássaro (o enorme pica-pau que os negros chamam senhor-pra-deus) matraqueava num tronco morto.

Era um posto como qualquer outro, apenas incidentalmente diferente do que ocupara todas as manhãs durante dez dias. Um território novo para ele e, no entanto, tão estranho quanto esse outro que, ao fim de duas semanas começara a acreditar que conhecia ligeiramente. O mesmo isolamento, a mesma solidão que seres humanos apenas atravessaram sem alterar, sem deixar marcas, nem cicatrizes, que se mantinha exatamente como a devia ter encontrado no primeiros dos antepassados índios de Sam, ao chegar e olhar em volta, de cacete ou machado de pedra, ou zagaia de osso em punho. Diferente apenas porque, acocorado ao pé da cozinha, sentira o cheiro dos cães encolhidos e acovardados diante dela. E porque vira em tiras a espádua e a orelha do que fora obrigado a ter coragem para merecer (segundo Sam) o nome de cão. E porque, na véspera, vira na terra úmida ao lado do tronco riscado, a marca da pata.

Não ouviu os cães. Não chegou a ouvir o latido deles. Ouviu apenas o matraquear do pica-pau parar de repente. E soube que o urso estava olhando para ele. Não chegou a vê-lo. Não podia saber se ele estava à sua frente ou nas costas. Não se mexeu. Nas mãos a inútil espingarda, que nem sequer armara e que agora não valia a pena armar, sentindo na saliva aquele travo metálico que conhecia agora porque sentira o cheiro do urso quando espreitara os cães encolhidos debaixo da cozinha.

Depois, foi-se embora. Tão repentinamente como se interrompera, o martelar seco e monótono do pica-pau recomeçou. E depois de algum tempo o rapaz pensou que ouvia os cães, mas só pensou, sem ouvir. Vinha da floresta um murmúrio, quase que nenhum ruído, mas de repente aquele ruído encheu a floresta até o alcance do ouvido do rapaz e de novo se afastou, morrendo ao longe.

Não se aproximaram dele. Se era um urso o que perseguiam, seria outro urso.

Sam saiu do canavial e atravessou o riacho, seguido pelo cão ferido na véspera. O bicho vinha sem fazer barulho, quase rastejando, como um perdigueiro. Veio e agachou-se junto à perna de Sam, tremendo, os olhos bem abertos para o canavial.

– Não o vi. – disse o rapaz; e repetiu – não o vi, Sam.

Sua voz não tremia, mas havia um tom estranho, emocionado. Sam respondeu, calmo:

– Eu sei. Quem veio aqui foi ele mesmo. E você nem pode dizer de que lado ele veio, não é?

– Não, eu…

– Ele é matreiro – explicou Sam – matreiro demais.

Olhou para o cão, que tremia fraca e continuamente junto ao joelho do rapaz. Da espádua retalhada escorriam algumas gotas de sangue fresco. Tornou a falar:

– É grande demais. Ainda não temos cão para ele. Talvez um dia, e não acredito que seja ainda na próxima primavera. Mas um dia…

Então, tenho de ver esse bicho, tenho de vê-lo, pensou o rapaz.

Se, pelo menos, visse o urso… Porque se não visse, parecia a ele que aquilo continuaria sempre como continuara com o pai e o Major (que era mais velho do que o pai), e até com o velho General Compson (que em 1865 já tinha idade suficiente para comandar uma brigada). Se não o visse agora, aquilo continuaria sempre da mesma maneira, na próxima vez e na seguinte, e depois, e depois, e depois. Não queria admitir ele próprio e o urso mergulhados no limbo de onde emergia o tempo, tornando-se eles próprios tempo: o velho urso, absolvido da mortalidade, e ele, partilhando um pouco, bastante, dessa absolvição. E agora sabia qual era aquele cheiro dos cães encolhidos e aquele travo na saliva. Reconhecia o medo. Tenho de ver esse bicho, tenho de ver, pensou de novo. Sem medo mas sem muita esperança.

Foi em julho do ano seguinte. Tinha onze anos. Estavam outra vez no acampamento, festejando os aniversários do Major e do General Compson. Embora o primeiro tivesse nascido em setembro e o outro pertinho do inverno e dez anos depois, encontravam-se sempre durante duas semanas para pescar, atirar aos esquilos e ao peru selvagem e perseguir com os cães, à noite, os texugos e os gatos bravos. Isto é: o rapaz, mais Boon Hogganbeck e os negros é que faziam isso; não só o Major e o General (que passavam as duas semanas sentados numa cadeira de balanço, diante de uma enorme panela de ferro, mexendo e provando e discutindo com o velho Ash a melhor maneira de fazer a panelada, e vendo o Jim da Tennie passando aguardente do garrafão para a caneca de lata e da caneca de lata para o estômago), mas até o pai e o Walter Ewell, que ainda eram bastante moços, desdenhavam esses passatempos e apenas atiravam aos perus selvagens para fazer apostas de pontaria.

Ou, pelo menos, o pai e os outros julgavam que ele ia à caça dos esquilos. Até o terceiro dia pensou que o Sam Fathers também o julgava. Saía do acampamento todas as manhãs logo depois do almoço, agora, com a sua própria espingarda, presente de Natal. Voltou à árvore da beira do riacho, onde estivera naquela manhã. Olhando a bússola que o velho General Compson lhe dera, partiu deste ponto, em círculos. Sem saber, estava aprendendo a ser um batedor melhor do que o vulgar. No segundo dia encontrou até o tronco gadanhado onde vira pela primeira vez a pegada torta. A madeira estava agora quase completamente desfeita.  E voltara com inacreditável rapidez e um abandono apaixonado e quase visível para a terra que dera origem à árvore.

Percorria agora os bosques de verão, verdes e frondosos (se havia diferença era por causa da obscuridade maior do que a nebulosidade cinzenta de novembro). O sol, mesmo quando estava a pino, apenas salpicava a terra aqui e ali, que nunca secava por completo e por isso vivia coberta de serpentes: cobras-d´água, mocassins, cascavéis, todas da cor da sombra malhada e que portanto ele nem sempre via, a não ser quando se moviam, se se moviam. E cada vez ele voltou mais tarde. No terceiro dia, ao passar ao crepúsculo pela pequena estacaria que cercava o estábulo de madeira onde Sam dava guarda aos cavalos, preparando-os para a noite, o índio disse:

– Ainda não procurou como deve ser.

Parou. Durante um momento não respondeu. Depois, calmamente, cedendo pacificamente como aquelas represas em miniatura que as crianças fazem nos riachos, disse:

– Fui até a árvore. Cheguei a encontrar outra vez aquele tronco. Eu…

– Acho que fez bem. Se calhar, ele tem até andado a espiá-lo. Não viu a pegada dele?

– Não – confessou o rapaz – não vi. Não pensei…

– É a arma – explicou Sam.

Parou ao lado da sebe; imóvel, o velho, o índio de ganga desbotada e puída e com o chapéu de palha de cinco cêntimos que fora a marca da escravidão da raça negra e agora era a insígnia de sua liberdade, estava olhando firme. O acampamento, o terreno desbravado, a casa, o barracão, e o seu pequeno equipamento com que o Major esgravatava de leve a solidão selvagem, tudo se dissolvia no crepúsculo, voltando à escuridão imemorial da floresta.

A arma, a arma – pensou o rapaz.

– Assuste-se – disse o índio. – Isso não se pode evitar. Mas não tenha medo. Não há bicho nenhum na floresta que nos possa fazer mal, desde que não esteja cercado ou que não fareje que estamos com medo. Um urso ou um veado, tal qual como um homem corajoso, precisam do medo dos covardes.

A arma, a arma – pensou o rapaz.

– Você tem de escolher – disse Sam.

Deixou o acampamento antes de nascer o dia, muito antes de tio Ash acordar nos seus cobertores do chão da cozinha e acender o fogo para fazer o almoço. Levou só a bússola e a vara para as serpentes. Sabia o caminho até um quilômetro antes de precisar da bússola. Sentou-se num cepo, com a invisível bússola na mão (também ainda invisível), enquanto os ruídos secretos da noite – interrompidos com os seus movimentos – de novo se esgueiravam e se interrompiam de vez. E os mochos se calaram para dar lugar ao despertar dos pássaros da manhã. Ah, já vi a bússola. Continuou rápida e silenciosamente a caminhada. Conhecia cada vez melhor a floresta, mas não tinha consciência disso.

Ao nascer, o sol levantou um veado e a fêmea, fazendo-os sair da cama. Ficaram a uma distância curta, e ele viu bem até o reflexo nos olhos deles, e ouviu o barulho que os rabinhos brancos faziam batendo no mato. Depois viu a fêmea saltar e o veado saltar atrás dela mais velozmente do que julgara possível. Batia a floresta na direcção devida, contra o vento, como Sam ensinara. Não era que isto agora tivesse alguma importância. Abandonara a espingarda. De sua própria vontade e resolução não aceitaria compromissos, escolhas, mas sim uma condição em que tinham sido anulados não só o até agora inviolável anonimato do urso como todas as antigas regras e vantagens do caçador e da presa.

Não teria medo, nem mesmo no momento em que o terror o tomasse por completo, sangue, pele, entranhas, ossos, memória da eternidade antes de se tornar memória sua – tudo, menos a lucidez aguda, clara, imortal, que o distinguia daquele urso e de todos os outros ursos e veados que havia de matar com a humildade e o orgulho da sua perícia e resistência. A lucidez a que Sam se dirigira quando se encostara à estacaria, na véspera, à boca da noite.

Ao meio-dia ultrapassara de muito o pequeno riacho. Nunca penetrara até tão longe na região nova e desconhecida. Já não caminhava só pelo velho relógio de prata, pesado, volumoso, que pertencera ao avô. Quando finalmente parou, foi a primeira vez que o fez depois de se ter levantado, de madrugada, do tronco em que estivera sentado quando consultara a bússola. Estava bastante longe. Saíra do acampamento fazia nove horas. Dali a nove horas a noite teria caído há uma hora. Mas não pensava nisso. Pensou: “Bom; está bem; mas então?” E parou durante um momento, parecendo estranho e minúsculo no meio da solidão verde e sobranceira, respondendo à própria pergunta antes de ela se ter formulado e terminado. Era o relógio, a bússola, a vara – os três aparelhos inanimados que durante nove horas ele usara contra a solidão selvagem. Pendurou cuidadosamente o relógio e a bússola num arbusto, encostou o pau ao lado deles e entregou-se completamente a ela.

Durante as últimas duas ou três horas não caminhara muito depressa. Não andava mais depressa agora, já que a distância não tinha importância. E estava tentando não perder o rumo da árvore em que deixara a bússola, procurando descrever um círculo que o fizesse voltar a ela ou, pelo menos, se interceptasse a si próprio, já que a direção não tinha importância agora. Mas não encontrou a árvore, e fez o que Sam lhe ensinara: descreveu novo círculo na direção oposta, para que os dois percursos se interceptassem mais longe. No entanto, não cruzou as suas próprias pegadas e acabou encontrando a árvore mas num lugar errado, sem o arbusto, a bússola, o relógio; e nem a árvore era a mesma, porque ao lado dela havia um cepo baixo. Fez o que Sam Fathers lhe ensinara a fazer em seguida e em último lugar.

Ao sentar-se no cepo viu a pegada torta, o medonho corte aleijado que se enchia de água, mesmo diante dos seus olhos. Quando olhou para cima a solidão uniu-se, solidificou-se,  e a clareira, a árvore procurada, o arbusto, o relógio, a bússola, refulgiam batidos por um raio de sol.

E viu então o urso.

Não apareceu de parte alguma: estava ali, simplesmente imóvel, sólido, firmado nas manchas quentes da tarde verde e sem brisa, não tão grande como o sonhara, mas tão grande como esperava, desmedido, recortado na obscuridade pintalgada, olhando para o rapaz que, sentado no cepo, lhe devolvia o olhar.

Depois moveu-se. Não fez barulho. Não se apressou. Atravessou a clareira caminhando durante um instantinho sob a luz crua do sol. Quando chegou ao outro lado parou outra vez e olhou-o por cima do ombro, enquanto o rapaz, no seu respirar tranquilo, inspirou e expirou três vezes.
E desapareceu.

Não caminhou para a floresta, para o mato. Desvaneceu-se, voltou a dissolver-se na solidão, como um peixinho que o rapaz vira um dia afundar-se e desaparecer na fundura negra da lagoa sem um único movimento das barbatanas.

Será no próximo outono – pensou.

Mas não foi no próximo outono, nem no seguinte, nem no outro. Tinha então 14 anos. Matara o seu primeiro veado e Sam Fathers marcara-lhe a cara com o sangue; e no ano seguinte matou um urso. Mas já antes disso tornara-se tão competente na floresta como muitos adultos que tem experiência. Num raio de 50 quilómetros, a partir do acampamento, não havia território que não conhecesse, riacho, outeiro, árvore ou atalho. Era capaz de conduzir qualquer pessoa a qualquer ponto sem hesitação, e trazê-la de volta. Conhecia pistas de caça que nem mesmo Sam Fathers conhecia. Aos 13 anos descobrira a cama de um veado, às escondidas do pai pediu a carabina a Walter Ewell, deitou-se à espera de o sol raiar e matou o veado quando ele voltava à cama, pois Sam lhe contara como faziam os velhos índios Chicksaw.

Mas não o urso velho. Embora agora já lhe conhecesse melhor as pegadas do que as suas próprias, e não só a pegada da pata aleijada. Quando via uma das outras três era capaz de reconhecê-la imediatamente. Não só pelo tamanho – havia outros ursos dentro desses 50 quilómetros, capazes de deixar marcas tão grandes – era mais do que isso.

Se Sam Fathers fora o seu aio e os coelhos e esquilos do quintal da casa o seu jardim de infância, então a solidão selvagem percorrida pelo velho urso era para ele o colégio e o próprio urso velho, há tanto tempo viúvo e sem filhos que se tornara o ingénito pai dele próprio, a sua universidade. Mas nunca mais vira o urso.

Sabia agora encontrar a pegada torta quase sempre que bem entendesse, a vinte, quinze ou dez quilómetros, e por vezes nesses três anos, enquanto esperava, ouvira os cães na pista do urso, por acaso. Na segunda vez pareceram seguir a pista, ladrando alto, abjectamente, quase humanos de histerismo, como naquela primeira manhã de dois anos atrás. Mas nunca o urso. Lembrava-se daquela tarde de três anos atrás, a clareira, ele, o urso, imóveis na terra pintalgada e quieta; e parecia-lhe que aquilo nunca acontecera, que também aquilo fora sonho. Mas tinha acontecido. Tinham-se olhado, emergidos daquela solidão velha como a terra, sincronizados naquele instante por qualquer coisa mais forte do que a carne e os ossos que os envolviam. E tinham tocado, afiançado e afirmado qualquer coisa mais duradoura do que a frágil teia de ossos e carne que um breve acidente podia destruir.

Até que tornou a vê-lo.

Precisamente pelo fato de não pensar noutra coisa, já se esquecera de procurar por ele. Andava ainda com a carabina de Walter Ewell: viu o urso atravessar o fundo de um comprido túnel, corredor que um tornado varrera, atravessando mais por entre a rede de troncos e ramos do que correndo sobre eles, como faria uma locomotiva, correndo com uma rapidez de que nunca o julgara capaz, quase tão depressa como um gamo, porque um gamo passaria a maior parte daquele tempo no ar; mais rápido do que faz uma pessoa para acertar as miras da carabina. E compreendeu então qual fora o seu erro durante aqueles três anos. Sentou-se num cepo, vacilante e trêmulo, como se nunca tivesse visto a floresta, nem o que havia dentro dela, perguntando a si mesmo, com um espanto incrédulo, como pudera ter esquecido o que o velho índio lhe dissera e o urso confirmara no dia seguinte e voltara a reafirmar agora, depois de passados três anos.

Agora sim, compreendia o que lhe disseram Sam Fathers a respeito do cão necessário, de um cão em que a importância não estava no tamanho. E quando sozinho em abril (não havia escola nessa altura: os filhos dos lavradores trabalhavam no cultivo da terra e o pai dera-lhe, finalmente, licença, com a condição de voltar em quatro dias), quando voltou, tinha o cão. Era dele o animal, um rafeiro da espécie que os negros chamavam fyce, caçador de ratos, ele próprio não muito maior do que um rato e possuidor daquela valentia que há muito tempo deixara de ser coragem para ser temeridade.

Não precisou de quatro dias. De novo sozinho encontrou a pista, na primeira manhã. Não era uma cilada; antes uma emboscada. Contou o tempo do encontro quase como se se tratasse de um compromisso com um ser humano. Na madrugada seguinte foram à pista, contra o vento; ele agarrando no rafeiro amordaçado com uma saca e o Sam Fathers com dois cães amarrados por um bocado de corda. Chegaram tão perto dele que o urso voltou sem correr – como se estivesse surpreendido pelo alarido agudo e frenético do rafeiro solto – voltando-se em defensiva, encostado ao tronco de uma árvore, plantado sobre as patas traseiras. O rapaz pensou que ele nunca mais acabaria de se erguer, de tão alto. E até os dois cães pareceram ganhar uma coragem desesperada ao acompanharem o rafeiro que ia na corrida.

Só aí o rapaz compreendeu que o cão não ia parar. Saltou, atirou fora a arma e correu. Quando alcançou e agarrou o rafeiro, que rodopiava freneticamente tentando escapar, pareceu-lhe que estava debaixo dos pés do urso. Sentia o cheiro muito forte, quente, espesso, do urso. Agachado, levantou os olhos para o vulto que se elevava sobre ele, alto, forte e pesado como uma carga de chuva e escuro como uma trovoada, familiar, tranquila e até lucidamente familiar; até que se lembrou: fora assim que sempre sonhara com ele.

Depois, desapareceu. Não o viu desaparecer. Ajoelhou-se agarrando com as mãos o rafeiro frenético, ouvindo o vergonhoso latir dos cães a afastar-se ao longe. Até que Sam veio para perto dele.

– Esta é a segunda vez que o urso vê você com uma espingarda na mão. Desta vez não podia ter falhado o tiro.

O rapaz levantou-se, ainda agarrando o rafeiro. Mesmo nos seus braços e longe do chão o animal gania furiosamente, aos puxões e repelões para seguir o alarido longínquo dos dois cães, como um feixe de molas de aço. O rapaz ofegava ligeiramente, mas desta vez não vacilava nem tremia.

– E não disparaste – disse o pai, espantado. – A que distância estavas?

– Não sei, pai. Vi uma grande cicatriz na perna direta do bicho. Isso vi. Mas então não tinha a espingarda.

– E quando tinhas a espingarda também não fizeste fogo. Por quê?

Mas o rapaz não respondeu. E o pai não esperou que ele respondesse. Atravessou o quarto por cima da pele do urso que o filho matara há dois anos e da pele do outro maior que ele próprio matara antes de o seu filho ter nascido; atravessou o quarto e foi em direcção à estante que ficava por baixo da cabeça embalsamada do primeiro veado que o moço abatera. O pai chamava aquele quarto de escritório e era ali que tratava todos os negócios da plantação. Fora ali que o rapaz, aos 14 anos de idade, ouvira as mais interessantes de todas as conversas. O Major ia lá e às vezes o velho General Compson também; e Walter Ewell, Boon Hogganback, Sam Fathers e o Jim da Tennie, que eram caçadores, conheciam os bosques e toda a caça que havia neles.

O rapaz ouvia a conversa, sem falar nem um pouquinho, mas à escuta. E a conversa era a solidão selvagem, a enorme floresta, maior e mais velha do que qualquer documento dos brancos, convencidos vaidosamente de que tinham comprado parte dela, maior e mais velha do que qualquer documento dos índios, inflexivelmente convencidos de que alguma vez tinham transmitido parte dela. Mas a floresta pertencia aos homens, não brancos nem negros ou vermelhos, mas simplesmente aos homens, aos caçadores com vontade e audácia para resistir e a humildade para sobreviver; e aos cães e aos ursos e aos veados justapostos e aliados contra ela, ordenados e impelidos pela solidão, na luta antiquíssima e inadiável regida por antiquíssimas e inatingíveis regras que anulavam o remorso e não permitiam quartel. As vozes eram tranquilas, graves, deliberadas pela retrospecção, pela recordação, pela lembrança exata, enquanto ele se acocorava ao pé do fogo com o Jim da Tennie, que só se metia para jogar mais lenha e passar a garrafa de uns copos para os outros. Porque a garrafa estava sempre presente: o passado um bocado parecia-lhe que aqueles duros instantes de ânimo, esperteza, coragem, astúcia, rapidez, se concentravam naquele líquido escuro que as mulheres, os rapazes, as crianças não bebiam, só os caçadores, bebendo nele o sangue derramado, mas uma condenação do espírito mortal e ardente, bebendo-o moderada, humildemente até, não com a baixa esperança do pagão de obter as virtudes da astúcia, da força e da velocidade, mas em saudação a elas.

O pai voltou com o livro, sentou-se de novo, começou a abrir as páginas.

– Escuta. – disse ele. Leu alto as cinco estâncias, com a sua voz calma e ponderada, enchendo o quarto em que não havia fogo porque era primavera. Depois levantou os olhos. O rapaz observava.

– Bem. – disse o pai – escuta.

Tornou a ler, mas desta vez só a segunda estrofe, até o fim, até aos dois últimos versos. E fechou o livro, colocando-o a seu lado, na mesa.

– “Ela não pode morrer, embora tu não consigas ser feliz como pretendes; eternamente a amarás e ela será bela” – repetiu.

– Ele fala de uma moça – disse o rapaz.

– De alguma coisa tinha de falar – respondeu o pai. E acrescentou: – Falava da verdade. A verdade é eterna. A verdade é só uma. Abrange todas as coisas sobre a terra. A honra, o orgulho, a piedade, a justiça, a coragem, o amor. Compreendes agora?

O rapaz não sabia bem. Talvez tudo fosse mais simples do que aquilo. Havia um velho urso, duro e implacável, não apenas para continuar a viver, mas com o feroz orgulho da liberdade e da independência, suficientemente orgulhoso para não sentir medo ou alarma ao vê-las ameaçadas. Mais: que “algumas vezes, parecia até arriscar deliberadamente essa liberdade e independência para melhor saborear, para incitar os seus fortes e velhos ossos e a carne a manterem-se ágeis e capazes de as defender e conservar”.

Havia um velho, filho de uma escrava negra e de um rei índio, herdeiro, por um lado, de um povo que aprendera a humildade no sofrimento e a dignidade nessa resistência que sobrevive ao sofrimento e à injustiça; e, pelo outro lado, da história de outro povo, mais antigo sobre aquela terra do que o primeiro, mas que já não existia sobre ela senão na fraternidade solitária do sangue estranho de um negro e do espírito selvagem e invencível de um urso velho.

Havia um rapaz que queria aprender a humildade e o orgulho para poder tornar-se destro e digno da floresta, mas que estava-se adestrando tão rapidamente que temia não chegar nunca a tornar-se digno, por não ter aprendido essa humildade e orgulho (embora tivesse tentado aprender), até que um dia, de repente, descobriu que um velho incapaz de definir qualquer das duas coisas o levara pela mão àquele ponto em que o urso velho e um cãozinho lhe haviam revelado que, possuindo outra, possuiria ambas.

E havia um cãozinho, anónimo, sem raça, filho de todos, adulto mas com menos de dois quilos e meio de peso, como que dizendo para si: “Não posso ser perigoso, porque nada há muito mais pequeno do que eu; não posso mostrar fúria porque diriam que é um ruído sem importância; não posso ser humilde porque já estou demasiadamente próximo do chão para poder ajoelhar; não posso ser orgulhoso, porque estaria demasiadamente longe dele para ser possível ver quem produzia a sombra; e nem sequer sei que não vou para o céu, porque já está decidido que a minha alma não é imortal. Só me resta, portanto, ter coragem. Mas está bem. Terei coragem, mesmo que digam que é um ruído sem importância”.

E pronto. Era simples, muito mais simples do que um homem, num livro, falar da juventude de uma moça por quem nunca precisaria se afligir, porque nunca lhe seria possível aproximar-se mais dela, ou necessário afastar-se. Ouvira falar de um urso, acabara por ter idade para perseguir o urso e por fim, com uma espingarda nas mãos, encontrara o velho urso e não disparara.

Porque um cãozinho… Mas podia ter disparado muito antes de o cãozinho ter corrido os trinta metros até ao urso que esperava; e o Sam Fathers podia ter disparado em qualquer momento durante aquele interminável instante em que o velho Ben estivera em cima deles, de pé nas patas traseiras.

Interrompeu-se. O pai observava-o gravemente através do maduro crepúsculo primaveril do quarto. Quando falou, as palavras foram tão calmas como o crepúsculo; não muito altas, porque seriam duradouras.

– Coragem, honra, dignidade – disse o pai – piedade, amor da justiça e da liberdade. Tudo isso toca o coração; e o que o coração aceita torna-se verdade até onde é possível conhecê-la. Compreendes agora?

O Sam, o velho Ben e o Nip, pensou o rapaz. E ele próprio também tivera razão – o pai assim o dissera.

– Sim, pai. – disse ele.

William Faulkner