quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

OUTROS CONTOS

Continuação/ III Capítulo

«Um Coração Simples», por Gustave Flaubert.

II CapítuloOUTROS CONTOS
«Um Coração Simples»
Conto de Gustave Flaubert
934- «UM CORAÇÃO SIMPLES»

III

Uma vez feita, à porta, uma genuflexão, ela avançava sob a alta nave entre as duas fileiras de cadeiras, abria o banco da sra. Aubain, sentava-se e deixava os olhos vagarem à sua volta.

Os rapazes à direita, as moças à esquerda ocupavam a estala do coro; o pároco permanecia de pé perto da estante do coro; em um vitral da abside, o Espírito Santo se elevava sobre a Virgem; um outro mostrava-a de joelhos diante do Menino Jesus e, atrás do tabernáculo, um grupo em madeira representava São Miguel subjugando o dragão.

De início, o padre fez um resumo da História Sagrada. Ela acreditava ver o paraíso, o dilúvio, a torre de Babel, as cidades completamente em chamas, pessoas que morriam, ídolos derrubados; e guardava desse assombro o respeito pelo Altíssimo e o temor de sua cólera. Depois, chorou ao ouvir a Paixão. Por que o haviam crucificado, ele que amava as crianças, alimentava as multidões, curava os cegos e quisera, por bondade, nascer entre os pobres, sobre o esterco de um estábulo? A semeadura, a colheita, o lagar, todas essas coisas familiares de que fala o Evangelho, encontravam-se em sua vida; a passagem de Deus as havia santificado; e ela sentia mais afecto pelos cordeiros por amor ao Cordeiro, e pelas pombas, por causa do Espírito Santo.

Era-lhe difícil imaginar sua pessoa; já que não era apenas uma ave, mas ainda um fogo e, outras vezes, um sopro. Talvez seja sua luz que paira à noite sobre a margem dos pântanos, sua respiração que empurra as nuvens, sua voz que torna os sinos harmoniosos; e ela se estendia em uma adoração, gozando o frescor das paredes e a tranquilidade da igreja.

Quanto aos dogmas, não compreendia absolutamente nada, nem mesmo se esforçava para compreendê-los. O padre discorria, as crianças recitavam, ela acabava por adormecer; e acordava de repente, quando os outros, ao saírem, faziam soar os tamancos sobre o piso.

Foi dessa maneira, de tanto ouvi-lo, que aprendeu o catecismo, uma vez que sua educação religiosa tinha sido negligenciada na juventude; e desde aquele momento, imitava todas as práticas de Virgínia, jejuando como ela, confessando-se com ela. Para a festa de Corpos Christi fizeram juntas um andor.

A primeira comunhão atormentava-a por antecipação. Preocupou-se com os sapatos, o terço, o livro, as luvas. Com que tremor não ajudou a mãe a vesti-la!

Durante toda a missa, sentiu uma angústia. O Bourais escondia-lhe um lado do coro; mas logo à frente o bando de virgens usando coroas brancas sobre os véus abaixados formavam como que um campo de neve; e reconhecia de longe a menina querida pelo pescoço fino e a atitude recolhida. O sino tocou. As cabeças se curvaram; fez-se silêncio. Ao som do órgão, os cantores e a multidão entoaram o Agnus Dei; então começou o desfile dos meninos; e, depois deles, as meninas se levantaram. Passo a passo e de mãos juntas andavam em direção ao altar todo iluminado, ajoelhavam-se no primeiro degrau, recebiam sucessivamente a hóstia e, na mesma ordem, voltavam aos seus genuflexórios. Quando foi a vez de Virgínia, Felicidade debruçou-se para vê-la e, com a imaginação dos verdadeiros afetos, parecia ser ela mesma aquela criança; aquele rosto se tornava seu, aquele vestido a vestia, aquele coração batia em seu peito; no momento de abrir a boca, fechando as pálpebras, estava a ponto de desmaiar.

No dia seguinte, logo cedo, apresentou-se na sacristia para que o padre lhe desse a comunhão. Recebeu-a devotamente, mas não experimentou as mesmas delícias. A sra. Aubain queria tornar sua filha uma pessoa perfeita e, como Guyot não pudesse lhe ensinar inglês e tampouco música, resolveu colocá-la em um pensionato nas Ursulinas de Honfleur.

A criança não fez nenhuma objeção. Felicidade suspirava, julgando a senhora insensível. Depois considerou que talvez a sua patroa tivesse razão. Todas essas coisas ultrapassavam sua competência.

Um dia, afinal, uma velha traquitana parou em frente à porta e dela desceu uma religiosa que vinha buscar a senhorita. Felicidade pôs a bagagem no carro, fez recomendações ao cocheiro e colocou no baú seis potes de doces e uma dúzia de peras com um ramalhete de violetas.

Virgínia, no último momento, foi tomada por um grande choro; abraçava a mãe que a beijava no rosto, repetindo:

— Vamos! Coragem! Coragem!

O degrau foi levantado e o carro partiu.

Então, a sra. Aubain teve um desfalecimento e à noite todos os amigos — o casal Lormeau, a sra. Lechaptois, as senhoritas Rochefeuille, o sr. de Houppeville e Bourais — apareceram para consolá-la.
De início, a privação de sua filha foi muito dolorosa. Mas três vezes por semana recebia uma carta, nos demais dias escrevia-lhe, passeava no quintal, lia um pouco e, dessa forma, preenchia o vazio das horas.

De manhã, por força do hábito, Felicidade entrava no quarto de Virgínia e olhava as paredes. Sentia falta de pentear os seus cabelos, amarrar-lhe as botinas, colocá-la na cama, — e de ver continuamente seu delicado rosto, de segurá-la pela mão quando saíam juntas. Em sua ociosidade, tentou fazer rendas. Os dedos pesados demais rompiam os fios; não ouvia nada, perdera o sono, segundo sua palavra, estava “minada”.

Para “se distrair”, pediu a permissão para receber seu sobrinho Vítor.

Ele chegava aos domingos após a missa, com as faces rosadas, o peito nu e cheirando aos campos que atravessara. Imediatamente ela botava a mesa. Almoçavam um diante do outro e, comendo ela o menos possível para evitar as despesas, empanturrava-o de tal maneira que ele acabava por adormecer. Ao primeiro toque das vésperas, ela o acordava, escovava suas calças, apertava-lhe a gravata e dirigia-se à igreja, apoiada em seu braço com um orgulho maternal.

Seus pais sempre o encarregavam de conseguir alguma coisa, fosse um pacote de açúcar, sabonete, aguardente, às vezes até mesmo dinheiro. Trazia suas roupas velhas para remendar; e ela aceitava esse trabalho, feliz por haver uma oportunidade que o forçasse a voltar.

No mês de Agosto, seu pai enviou-o à marinha.

Era época de férias. A chegada das crianças consolou-a. Mas Paulo tornara-se caprichoso e Virgínia não tinha mais idade para ser tratada por “você”, o que colocava um constrangimento, uma barreira entre elas.

Vítor foi sucessivamente a Morlaix, Dunkerque e Brighton; no regresso de cada viagem ele lhe trazia um presente. Da primeira vez, foi uma caixa de conchas; da segunda, uma xícara de café; da terceira, um grande boneco de pão de mel. Estava tornando-se belo, era magro, tinha um bigodinho, olhos sãos e francos e um pequeno chapéu de couro, que usava para trás como um piloto. Divertia-a contando histórias repletas de termos de marinheiro.

Em uma segunda-feira, 14 de julho de 1819 (ela não esqueceu a data), Vítor anunciou que havia sido recrutado para uma longa viagem e que dali a duas noites, com o navio de Honfleur, iria juntar-se à galé, que deveria partir do porto do Havre em breve. Ele talvez ficasse fora por dois anos.

A perspectiva de tal ausência deixou Felicidade desolada; e, para ainda lhe dizer adeus, na quarta-feira à noite, após o jantar da senhora, vestiu as galochas e percorreu as quatro léguas que separavam Pont-l’Évêque de Honfleur.

Chegando diante do Calvário, em vez de pegar a esquerda, pegou a direita, perdeu-se nos canteiros de obras, voltou para trás; as pessoas que abordava mandavam-na apressar-se. Ela deu a volta na doca repleta de navios, batia nas amarras; depois o terreno se inclinou, as luzes se entrecruzaram e ela acreditou estar louca, avistando cavalos no céu.

À margem do cais, outros relinchavam assustados com o mar. Uma talha, que os levantava, desceu-os no barco onde os viajantes se acotovelavam entre os barris de sidra, os cestos de queijo, os sacos de grãos; ouvia-se o barulho das galinhas, o capitão blasfemava e um grumete permanecia apoiado ao turco da embarcação, indiferente a tudo aquilo. Felicidade, que não o reconhecera, gritou:

— Vítor!

Ele levantou a cabeça; ela avançou quando, de repente, retiraram a escada.

O navio, que mulheres cantando puxavam pelas cordas, deixou o porto. A carcaça estalava, as ondas pesadas fustigavam a proa. A vela virara, não se via mais ninguém; e, sobre o mar prateado pela lua, o navio deixou uma mancha negra que se ia empalidecendo, embrenhou-se nas águas, desapareceu.

— Felicidade, ao passar perto do Calvário, quis recomendar a Deus o que mais amava; e rezou muito tempo de pé, com as faces banhadas em lágrimas, os olhos em direcção às nuvens. A cidade dormia, os aduaneiros passeavam; e a água caía sem parar pelos buracos da eclusa com um barulho de torrente. Soaram duas horas.

O locutório não abriria antes do amanhecer. Um atraso, certamente, deixaria a senhora contrariada e, apesar do desejo de beijar a outra criança, ela voltou. As moças do albergue despertavam quando ela entrou em Pont-l’Évêque.

O pobre rapaz durante meses iria então vaguear sobre as ondas! Suas viagens precedentes não a haviam assustado. Da Inglaterra e da Bretanha podia-se voltar; mas a América, as Colónias, as Ilhas, aquilo ficava perdido em uma região incerta, do outro lado do mundo.

Desde então, Felicidade pensou exclusivamente em seu sobrinho. Nos dias de sol, atormentava-se com a sede; quando caía um temporal, temia os raios por ele. Escutando o vento que troava na chaminé e varria as ardósias, via-o batido pela mesma tempestade, no topo de um mastro despedaçado, com o corpo todo para trás, sob um lençol e espuma; ou então — lembranças do livro de geografia estampas — ele era devorado pelos selvagens, aprisionado pelos macacos em uma floresta, morria ao longo de uma praia deserta. E jamais falou de suas inquietudes.

A sra. Aubain tinha outras pela filha.

As freiras achavam que ela era afectuosa, mas delicada. A mínima emoção deixava-a nervosa. Era preciso largar o piano.

A mãe exigia do convento uma correspondência regular. Numa manhã em que o carteiro não viera, impacientou-se e andava pela sala, da poltrona até a janela. Era realmente extraordinário! quatro dias, sem notícias!

Para que ela se consolasse com o exemplo, Felicidade disse-lhe:

— E eu, senhora, já faz seis meses que não recebo nada!...

— Mas de quem?...

A criada replicou suavemente:

— Mas ... de meu sobrinho!

— Ah! seu sobrinho! — E, dando de ombros, a sra. Aubain retomou seu passo, o que queria dizer: “Eu nem penso nele!... Além disso, pouco me importa! Um grumete, um miserável, grande coisa!... Enquanto que minha filha... Imagine só!...

Felicidade, embora crescida em meio à crueldade, indignou-se com a senhora, depois esqueceu.

Parecia-lhe fácil perder a cabeça em se tratando da menina.

As duas crianças tinham uma importância igual; um lugar em seu coração as unia e seus destinos deviam ser os mesmos.

O farmacêutico contou-lhe que o barco de Vítor chegara a Havana. Lera essa informação em uma gazeta.

Por conta dos charutos, ela imaginava Havana como um país onde não se fazia outra coisa senão fumar, e Vítor circulava entre os negros em uma nuvem de tabaco. Podia-se “em caso de necessidade” voltar de lá por terra? A que distância ficava de Pont-l’Évêque? Para sabê-lo, interrogou o sr. Bourais.

Ele pegou o atlas, depois começou explicações sobre longitudes; e estampava no rosto um grande sorriso pedante diante do pasmo de Felicidade. Por fim, com sua lapiseira, indicou nos recortes de uma mancha oval um ponto negro, imperceptível, acrescentando:

— Aqui está.

Ela se debruçou sobre o mapa; aquela malha de linhas coloridas cansava a vista, sem lhe ensinar coisa alguma; e a Bourais, o qual insistia que lhe dissesse o que a perturbava, pediu que lhe mostrasse a casa onde morava Vítor.

Bourais levantou os braços, espirrou, riu a valer; tamanha candura excitava sua alegria; e Felicidade não compreendia o motivo, — ela que esperava talvez ver até o retrato do sobrinho, de tal modo sua inteligência era limitada!

Foi após quinze dias que Liébard, na hora do mercado, como de costume, entrou na cozinha e entregou-lhe uma carta enviada pelo cunhado. Uma vez que nenhum dos dois sabia ler, ela recorreu à patroa.

A sra. Aubain, que contava as malhas de um tricô, colocou-o de lado, deslacrou a carta, estremeceu e, com uma voz baixa, um olhar profundo:

— É uma desgraça... que lhe é anunciada. Seu sobrinho...

Morrera. Não estava escrito mais nada.

Felicidade caiu sobre uma cadeira, apoiando a cabeça na parede e fechou as pálpebras, que, de repente, tornaram-se rosadas. Depois, com a fronte baixa, as mãos caídas, o olhar fixo, repetia em intervalos:

— Pobre menino! Pobre menino!

Liébard via-a soltando suspiros. A sra. Aubain tremia um pouco.

Ela lhe propôs ir ver a irmã em Trouville.

Felicidade respondeu, com um gesto, que não era preciso.

Fez-se silêncio. Liébard, homem simples, julgou conveniente se retirar.

Então ela disse:

— Para eles, isso não significou nada!

Sua cabeça baixou; e maquinalmente ela erguia, de tempos em tempos, as longas agulhas sobre a mesa de costura.

Algumas mulheres passaram no pátio com uma padiola de onde gotejava a roupa.

Vendo-as pela janela, lembrou-se da roupa lavada; tendo-a deixado de molho no dia anterior, precisava hoje enxaguá-la; e saiu do aposento.

A tábua de bater roupa e a tina estavam nos limites do Toucques. Jogou sobre o talude uma pilha de camisas, arregaçou as mangas, pegou a tábua de bater; e os fortes golpes que dava eram ouvidos nos outros quintais ao lado. Os campos estavam vazios, o vento agitava o riacho; ao fundo, a relva alta se inclinava sobre ele como cabeleiras de cadáveres flutuando na água. Reteve sua dor, até a noite foi muito corajosa; mas, em seu quarto, jogou-se de ventre sobre o colchão, com o rosto no travesseiro e os dois punhos contra as têmporas.

Muito depois, pelo próprio capitão de Vítor, conheceu as circunstâncias de seu fim.

Haviam-no sangrado demais no hospital, por causa da febre amarela. Quatro médicos ocuparam-se dele ao mesmo tempo. Morreu imediatamente e o médico chefe dissera:

— Bem! Mais um!

Os pais sempre o tinham tratado com crueldade. Preferiu não os rever; e eles não tentaram nenhuma aproximação, por esquecimento ou por endurecimento dos miseráveis.

Virgínia enfraquecia.

Sufocações, tosse, uma febre contínua e marcas na face revelavam uma enfermidade profunda. O dr. Poupart aconselhara uma estada na Provence. A sra. Aubain decidiu-se e teria imediatamente trazido sua filha para casa, se não fosse pelo clima de Pont-l’Évêque.

Fez um trato com um dono de carros que a levava ao convento todas as terças-feiras. Há no jardim um terraço de onde se descobre o Sena. Ali Virgínia passeava de braços dados com ela sobre as folhas caídas das videiras. Às vezes o sol atravessando as nuvens forçava-a a piscar, en-quanto olhava as velas ao longe e todo o horizonte, desde o castelo de Tancarville até o farol do Havre. Em seguida repousavam sob o caramanchão. Sua mãe providenciara um pequeno barril de excelente vinho de Málaga; e rindo com a idéia de ficar levemente embriagada, bebia dois dedos, não mais.

Recobrou forças. O outono passou suavemente. Felicidade tranquilizava a sra. Aubain. Mas, certa noite, quando fora aos arredores fazer compras, encontrou à porta o cabriolé do sr. Poupart; e ele estava no vestíbulo. A sra. Aubain amarrava o chapéu.

— Dê-me meu aquecedor, minha bolsa, minhas luvas. Ande, mais rápido!

Virgínia tinha uma fluxão do peito. Talvez fosse grave.

— Ainda não! — disse o médico; e ambos subiram no carro, sob os flocos de neve que turbilhavam. 

A noite estava por chegar. Fazia muito frio.

Felicidade precipitou-se para a igreja para acender uma vela. Depois correu atrás do cabriolé, que alcançou uma hora mais tarde, saltou ligeiramente por trás, segurando-se nas barras, quando lhe veio um pensamento: “O pátio não estava fechado! e se entrassem ladrões?” E ela desceu.

No dia seguinte, logo de madrugada, apareceu na casa do médico. Ele tinha chegado e saído novamente para o campo. Depois ela permaneceu no albergue, acreditando que algum desconhecido lhe entregaria uma carta. Por fim, ao amanhecer, pegou a diligência de Lisieux.

O convento encontrava-se no fim de uma ruela íngreme. Aproximadamente no meio, ela ouviu sons estranhos, um toque de finados. “É para outra pessoa”, pensou ela; e Felicidade puxou violentamente a aldrava.

Ao cabo de alguns minutos, chinelos arrastaram-se, a porta entreabriu-se e uma religiosa apareceu.

A freira com um ar de compunção disse que “ela acabara de falecer”. Ao mesmo tempo o sino fúnebre de São Leonardo tocou.

Felicidade chegou ao segundo andar.

Já na soleira do quarto, viu Virgínia estendida de costas, com as mãos juntas, a boca aberta e a cabeça para trás sob uma cruz negra que se inclinava sobre ela, entre as cortinas imóveis, menos pálidas que seu rosto. A sra. Aubain, aos pés do leito que abraçava, soluçava de agonia. A madre superiora estava de pé à direita: Três candelabros sobre a cómoda faziam manchas vermelhas e a névoa esbranquiçava as janelas. Algumas religiosas retiraram a sra. Aubain.

Durante duas noites, Felicidade não deixou a morta. Repetia as mesmas preces, aspergia água benta sobre os lençóis, voltava a sentar-se e contemplava-a. Ao final da primeira noite, notou que o rosto havia amarelado, os lábios azulado, o nariz afinava-se, os olhos afundavam. Beijou-os diversas vezes e não teria experimentado nenhuma imensa surpresa se Virgínia os houvesse reaberto; para semelhantes almas o sobrenatural é muito simples. Fez sua toalete, envolveu-a no lençol, desceu-a para o esquife, colocou-lhe uma coroa, estendeu seus cabelos. Eram louros e de extraordinário comprimento para sua idade. Felicidade cortou uma grande mecha, cuja metade deixou deslizar dentro do peito, decidida a jamais dela se separar.

O corpo foi levado a Pont-l’Évêque, seguindo as intenções da sra. Aubain, que seguia o féretro em um carro fechado.

Após a missa foram necessárias ainda quatro horas para alcançar o cemitério. Paulo andava à frente e soluçava. O sr. Bourais vinha atrás, depois os principais habitantes, as mulheres cobertas de mantas negras e Felicidade. Sonhava com seu sobrinho e por não haver podido lhe render suas honrarias, sentia um acréscimo em sua tristeza, como se o estivessem enterrando com a outra.

O desespero da sra. Aubain foi ilimitado.

Primeiro, revoltou-se contra Deus, julgando injusto de sua parte ter levado sua filha, — ela que jamais fizera mal algum e cuja consciência era tão pura! Mas não! ela deveria tê-la levado ao Sul. Outros médicos a teriam salvado! Acusava-se, queria juntar-se a ela, gritava de angústia no meio dos sonhos. Um deles, sobretudo, obcecava-a. Seu marido, vestido como um marinheiro, voltava de uma longa viagem e dizia-lhe chorando, que havia recebido a ordem de levar Virgínia. Então, planearam juntos de encontrar um esconderijo em alguma parte.

Certa vez, voltou do quintal, transtornada. Havia pouco (ela mostrava o lugar) o pai e a filha tinham-lhe aparecido um após o outro e não faziam nada; observavam-na.

Durante vários meses, permaneceu no quarto, inerte. Felicidade reprimia-a delicadamente; era preciso conservar-se pelo filho e pela outra, em memória “dela”.

— Ela? — repetia a sra. Aubain, como que acordando. — Ah! sim!... sim!... Você não esquece mesmo! — Alusão ao cemitério que lhe haviam proibido escrupulosamente.

Felicidade lá ia todos os dias.

Às quatro horas precisamente, passava ao longo das casas, subia a encosta, abria a grade e chegava à tumba de Virgínia. Era uma pequena coluna de mármore rosa com uma laje por baixo e correntes em volta circundando um pequeno jardim. Os canteiros desapareciam sob uma cobertura de flores. 

Regava as folhas, renovava a areia, ajoelhava-se para melhor trabalhar a terra. A sra. Aubain, quando podia vir, sentia um alívio, uma espécie de consolo.

Depois os anos passaram, todos iguais e sem outros episódios senão a volta das grandes festas: Páscoa, Assunção, Todos os Santos. Alguns acontecimentos no interior da casa marcaram data, a que se reportavam mais tarde. Assim, em 1825, dois vidraceiros pintaram o vestíbulo; em 1827 uma parte do teto, ao cair no pátio, quase matou um homem. No verão de 1828, foi a vez de a senhora oferecer o pão bento; Bourais, nessa época, ausentou-se misteriosamente; e os antigos conhecidos aos poucos se foram: Guyot, Liébard, a sra. Léchaptois, Robelin, o tio Gremanville, paralítico havia tempos.

Certa noite, o condutor da mala-posta anunciou em Pont-l’Évêque a Revolução de Julho. Um novo subprefeito, poucos dias depois, foi nomeado: o barão de Larsonnière, ex-cônsul na América e que tinha em casa, além da mulher, a cunhada com três senhoritas, já bem grandes. Eram vistas na relva vestidas de blusas esvoaçantes; possuíam um negro e um papagaio. A sra. Aubain recebeu a visita deles e não se esqueceu de fazer a sua. Por mais longe que fosse de onde aparecessem, Felicidade corria para avisá-la. Mas uma coisa apenas era capaz de comovê-la, as cartas de seu filho.

Ele não podia seguir nenhuma profissão, por estar absorvido nos botequins. Ela lhe pagava as dívidas, ele fazia outras; e os suspiros que soltava a sra. Aubain, tricotando perto da janela, chegavam até Felicidade, que girava a roca na cozinha.

Elas passeavam juntas ao longo da fileira de árvores e falavam sempre de Virgínia, perguntando-se se tal coisa lhe teria agradado, em tal ocasião o que provavelmente teria dito.

Todos os seus pequenos objectos ocupavam um armário no quarto com duas camas. A sra. Aubain os inspeccionava o menos possível. Certo dia de verão, resignou-se; e borboletas saíram voando do armário.

Os vestidos alinhavam-se sob uma prateleira onde havia três bonecas, arcos, uma casinha, a bacia de mãos de que se servia. Elas retiraram igualmente os saiotes, as meias, os lenços e estenderam-nos sobre os dois leitos antes de dobrá-los novamente. O sol iluminava aqueles pobres objectos, fazendo aparecer as manchas e as dobras formadas pelo movimento do corpo. O ar estava quente e azul, um melro chilreou, tudo parecia viver em uma profunda tranquilidade. Reencontraram um pequeno chapéu de pelúcia, com longos pelos, de cor marrom; mas estava todo comido por traças. Fixaram os olhos uma na outra, eles se encheram de lágrimas; por fim a patroa abriu os braços, a criada neles se jogou; e abraçaram-se, satisfazendo a dor te em um abraço que as igualava.

Foi a primeira vez de suas vidas, pois a sra. Aubain não era uma pessoa de natureza expansiva. 

Felicidade ficou-lhe grata como por uma caridade e doravante adorava-a com uma devoção bestial e uma veneração religiosa.

A bondade de seu coração desenvolveu-se.

Quando ouvia na rua os tambores de um regimento em marcha colocava-se à porta com uma moringa de sidra e oferecia de beber aos soldados.

Cuidava dos doentes de cólera. Protegia os poloneses; e houve mesmo um que declarou querer se casar com ela. Mas eles se desentenderam; pois certa manhã, ao voltar da igreja, encontrou-o na cozinha, onde entrara e preparara um molho vinagrete que comia tranquilamente.

Depois dos poloneses, foi a vez do velho Colmiche, conhecido por cometer atrocidades em 93. Vivia à margem do riacho, nos escombros de uma pocilga. Os meninos observavam-no pelas fendas do muro e atiravam-lhe pedregulhos que lhe caíam sobre a enxerga, onde jazia, continuamente abalado por um catarro, com os cabelos muito longos, as pálpebras vermelhas e no braço um tumor maior que a cabeça. Ela lhe providenciou roupas, tratou de limpar aquele chiqueiro, sonhava em instalá-lo na casa do forno, sem que isso incomodasse a senhora. Quando o câncer rebentou, ela o tratava todos os dias, algumas vezes trazia-lhe um pouco de bolo, sentava-o no sol sobre um feixe de palha; e o pobre velho, babando e tremendo, agradecia-lhe com a voz apagada, temendo perdê-la, estendia as mãos assim que a via afastar-se. Ele morreu; ela encomendou uma missa para o descanso de sua alma.

Naquele dia teve uma grande felicidade: na hora do jantar, o negro da sra. de Larsonnière apareceu segurando o papagaio na gaiola, com o bastão, a corrente e o cadeado. Um bilhete da baronesa anunciava à sra. Aubain que, na vez que seu marido havia sido promovido para uma prefeitura, eles partiriam àquela noite; e ela pedia que aceitasse este pássaro como uma lembrança e testemunho de seu respeito por ela.

Ele já ocupava há muito tempo a imaginação de Felicidade, pois vinha da América; aquela palavra lembrava-lhe Vítor, tanto que se informava sobre ele com o negro. Certa vez até disse:

— A senhora é que ficaria feliz em tê-lo!

O negro repetira aquela fala à sua patroa que, não podendo levá-lo, livrou-se dele dessa maneira.

Gustave Flaubert

(Continua amanhã...)

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