domingo, 30 de abril de 2017

OUTROS CONTOS

«O Jogo da Baleia Azul», conto poético por Manel d' Sousa.

«O Jogo da Baleia Azul»
A Baleia Azul/ HenriCartoon

1019- «O JOGO DA BALEIA AZUL»

A baleia azul imponente
Quase extinta dos oceanos,
Pela mão dos humanos
Era ferida mortalmente.
Usar seu nome inocente
Em jogo de mortandade,
Envergonha a humanidade
Neste século vinte e um…
Na internet hoje comum,
Esta virtual realidade!

Manel d' Sousa

quinta-feira, 27 de abril de 2017

OUTROS CONTOS

«O Viajante Clandestino», por José Rodrigues Miguéis.

«O Viajante Clandestino»
Conto de José Rodrigues Miguéis

1018- «O VIAJANTE CLANDESTINO»

Nesse ano – hoje tão distante no tempo e nos usos dos homens, que por vezes julgamos viver noutro mundo – o Dezembro correu muito menos frio do que habitualmente ao longo da costa do Atlântico: nevoento e chuvoso, e morno até, como se a corrente, vinda lá de baixo, do Golfo, antes de se alongar a caminho da Europa, tivesse querido acercar-se do litoral para o aquecer e abrigar melhor das águas gélidas que descem da Gronelândia.

O Natal estava à porta, e a neve sem chegar. Ora, um Natal sem neve nem frio não é festa nem é nada. Não rangem trenós nas encostas e caminhos, não se vêem homens de neve com um chapéu velho na cabeça e o cachimbo entre os dentes imaginários, não há batalhas de bolas de neve, e nos tanques e lagos, que não gelaram, não pode a gente patinar de mãos dadas, com as faces vermelhas, o cabelo solto, e o cachecol a esvoaçar ao vento; não há gritos de júbilo e susto no ar cristalino, nem o tinir das guizalhadas – Jingle bells, Jingle bells, Jingle all the way... – que enche as noites estreladas dum eco de tempos lendários. Nos relvados, em frente das moradias, as árvores de Natal não espalham na alvura fofa do chão os reflexos silenciosos e multicores das suas luminárias, a sugerir calor, intimidade e hospitalidade. A natureza escura e molhada, a névoa e a chuva, os arvoredos hirtos e desnudadas, tudo amortece o resplendor das casas, e abafa os repiques dos campanários, que de outro modo encheriam a vítrea sonoridade da noite.

Através das janelas irrompem no escuro os doirados clarões da festa; lá dentro, há sempre o mesmo entusiasmo e a mesma gula pelos presentes do Santa Klaus, empilhados em torno da árvore fulgurante de luzes, nas suas embalagens de luxo e fantasia. E o viajante solitário e sem família que passa na estrada pode entrever com melancolia os pares que dançam, ou os rostos saciados e felizes em volta da mesa bem guarnecida, a que preside um gordo e tostado peru. O Natal fica doméstico e recolhido, e perde a alegria pagã que ecoa de risos e apelos juvenis nos bosques e nos vales. Não, um Natal sem neve, um Natal que não seja «branco», não é festa nem é nada: parece um Thanksgiving que se atrasou no calendário.

Ora isto deu-se (ou melhor, começou) em Baltimore, que é uma cidade algo sombria, pacata e ordeira, embora muito menos triste do que a visionou o nosso Poeta – «cidade triste entre as cidades, ó Baltimore!» Ou talvez os seus sinos tenham esquecido a rima do sinistro never more, never more, que ele julgou ouvi-los clamar, ecoando o Poe. É preciso sair do centro, e percorrer os subúrbios, para se encontrar a atmosfera própria da «estação festiva». Quanto aos cais, são soturnos, caóticos, confusos, e aqui e além ameaçam ruína os hangares e barracões grisalhos, como velhos pardieiros ou igrejas rústicas abandonadas. São tristes os portos decadentes, sobretudo de noite e nas épocas de crise! Mas respira-se uma poesia sugestiva nestes molhes de estacaria luminosa e negra, onde as marés, cansadas e oleosas, vêm bater de manso o ritmo da sua canção de amor à terra. Há cidades que parecem viver na intimidade dos dramas e segredos do mar; onde este está sempre presente, em convívio com os homens. E nada fala tanto ao coração do errante solitário, como este apelo eterno do mar, junto aos cais.

Foi a um destes molhes meio esbarrondados que o navio atracou pela manhã de vinte e quatro de Dezembro, vindo do mar aberto e azul, da África e dos trópicos.

Era um velho cargueiro esgalgado, de alta chaminé enfarruscada, com grandes remendos no casco a desfazer-se em ferrugem, e a linha de flutuação muitos palmos acima das ondas: uma dessas ruínas obscuras que singram vagarosamente os sete mares do mundo, coxeando em busca de freguês, com roupas mal lavadas a enxugar pelos cordames, e alguns marujos esquálidos acotovelados às amuradas, a olhar a terra estranha. Um navio, em suma, que podia ter inspirado um conto triste a Joseph Conrad ou a Pierre Mac Orlan.

A sua carga era pobre e variada: óleo de palma, cocos, bananas verdes em começo de putrefacção, amendoim, duas dúzias de fardos de algodão, e um macaco mais ou menos domesticado, que adoecera em viagem e gemia numa cama de trapos, com febre, queixoso da invernia.

Também vinha a bordo um passageiro, um só, de que não rezavam os livros de navegação e que não pagara a passagem, entregue ao cuidado cúmplice de dois marinheiros: escondido nas entranhas gemebundas do calhambeque, num cubículo sem ar nem luz, junto das carvoeiras, na companhia das ratazanas. Quem era e donde vinha ele? Ah, mas são perguntas, essas, que se não fazem nunca a um destes homens magros, de rosto antes do tempo engelhado pelos trabalhos, as privações e os ventos forasteiros, com os olhos negros a luzir sombriamente de medo e desconfiança no fundo das órbitas encovadas. Viria de Marrocos, valhacouto de tantos desgraçados? das Ilhas Perfumadas? da Costa d’África?

Ninguém o diria, nem que o soubesse, e ele menos que ninguém. A ilegalidade tem as suas leis, a sua moral e as suas combines, e o silêncio é a regra de ouro dos pobres deste mundo. Quem o pusera a bordo? Quem o mantinha e sustentava ali, durante a noite, em segredo, com os restos miseráveis do rancho da tripulação meio andrajosa? – Mistério, mistério! A solidariedade é outra lei sagrada entre os homens que vivem à margem da vida.

Tinha embarcado pela calada da noite nalgum porto desolado das Áfricas ou dos Arquipélagos, e é tudo. Alguém o tinha guiado em silêncio no labirinto ressonante do cargueiro, e ali o deixara como um rato de porão. E ali, na sombra sufocante, tinha transposto as claridades sem limites do oceano tropical, para dar entrada no Inverno americano.

O «Maria Alberta» – chamemos-lhe assim, escondendo-lhe o nome verdadeiro e a matrícula – cumpridas as formalidades da lei, despejou no cais deserto e cinzento a escassa mercadoria. Os guindastes e cabrestantes rangeram, as roldanas guincharam nos cadernais, os botalós descreveram no ar baço a sua incerta acrobacia, e os fardos, caixotes e engradados deram entrada nos hangares varridos de ventania. A noite chegou cedo, e tudo recaiu no silêncio. Os guardas e funcionários do cais foram-se quase todos embora, e o «Maria Alberta» sumiu-se no esquecimento e na obscuridade, como um cavalo cansado e lazarento ao fundo duma estrebaria.

Era a véspera de Natal, e cada qual procurou o seu conchego, a família se a tinha, ou o recanto enfumarado dum bar de tectos baixos, com mulheres esgrouvinhadas e descoloridas sob a maquilhagem, a beberricar whisky de má raça e a meter moedas num juke-box trepidante de melodias quentes e ensolaradas, de Califórnias e coqueirais que só existem no sonho e no celulóide. Para os homens que rastejam à superfície do globo e da vida, de porto em porto como se pátria nenhuma os aceitasse, não há outro refúgio senão esse: e no fi m, uma cama de aluguer e uns braços de empréstimo.

O silêncio escorreu sobre os molhes e hangares, raras luzes brilhavam, poucas conseguiam vencer a espessura da névoa a desfazer-se em chuva. Os mastros dos cargueiros atracados em feixes perdiam-se no céu encarvoado. Mas a neblina cria sempre, em volta dos portos, um manto de abrigo e clandestinidade.

O capitão desembarcou à paisana, e foi à sua vida: tinha uns negócios quaisquer a tratar em Filadélfia. Atrás dele foi-se o imediato, depois alguns oficiais e pilotos, o enfermeiro, e até marinheiros. Alguns deles levavam uma garrafita duma aguardente intragável, a que chamavam brandy, com que esperavam lubrificar a boa vontade dos funcionários da Alfândega, de modo a passarem sem a apalpação da ordem nem a inspecção aos embrulhos.

Os funcionários, quase todos irlandeses, nutridos, bem pagos e agasalhados nos seus quentes e macios uniformes, olhavam com um misto de dó e espanto ou ironia aqueles pobres marítimos magrizelas e mal barbeados, que tiritavam dentro das farpelas de ganga ou cotim desbotado, com remendos, raros deles envergando um jaquetão razoavelmente coçado, e com a gorra de malha ou a boina basca na cabeça. Que diacho de candonga é que eles podiam transportar? Nenhum trazia com certeza ouro, diamantes ou coca.... Aceitavam a garrafita e deixavam-nos passar: «Merry Christmas!» Depois voltavam ao seu póquer, ao cachimbo e ao copo de bourbon. Os marujos sorriam, humildes, esfregavam as mãos enregeladas, e desapareciam no escuro, com as calças enrodilhadas nas canelas, convencidos de que tinham ludibriado a vigilância do Departamento do Tesouro. E que iam eles fazer na terra dos dólares, em noite de Natal, com as suas pobres roupas e os seus magros bolsos de embarcadiços?

O passageiro tinha subido, já noite fechada, das entranhas da carvoeira, para se esconder numa clarabóia do convés, sob a qual havia espaço para um homem se deitar, como num esquife. (Já ali tinham viajado outros, durante dias e até semanas, e um deles, por sinal, apanhado pela dura invernia do Norte – os cordames eram estendais de gelo! – com as roupinhas leves em que vinha do Brasil, ficara tolhido para o resto dos seus dias.) Não comia desde que, manhã cedo, lhe tinham levado o café amargoso e a bucha do pão; a fome roía-o, e depois do calor abafante das caldeiras, o frio húmido da noite inteiriçou-o. Ali encaixado, ouviu vozes de comando, risos, passos de homens que desciam a prancha, os ecos de ferro do navio despejado. Esperou que, tudo sossegado, o viessem pôr em liberdade. Mas o tempo corria, naquela imobilidade, e a impaciência dele cresceu:

Que raio esperavam eles para o tirar da toca? Iriam esquecê-lo, deixá-lo a bordo sozinho, metido naquela urna a morrer de fome e de frio?... Haveria dificuldades imprevistas ao seu desembarque?... A noite avançava com um vagar exasperante, e ele tinha pressa. Apertava ao corpo, para se aquecer, o saco onde encerrara os parcos haveres.

Tinha entrevisto na noite, ao chegar ali, os perfis dos barracões do porto, mais longe fábricas, prédios, o clarão mortiço da cidade. Estava na América, a dois passos do trabalho e do pão, a um salto do seu destino. E o coração batia-lhe de anseio. Já tinha regularizado contas com os marujos que o tinham posto a bordo, escondido e alimentado. Se havia mais alguém por trás deles, isso não era da sua conta. Restavam-lhe algumas dolas no fundo de um bolso das calças. Junto delas, retinha na palma da mão suada um papel puído, com um endereço, esse ponto perdido na imensidade da América desconhecida: Patchogue ou coisa assim, para lá de Nova Iorque, em Long Island, a quantas léguas seria aquilo de Baltimore, e quanto teria ele que palmilhar às cegas, para alcançar o seu destino?! (Se lá chegasse...) E uma data de números, de portas e ruas, isso ele não entendia, não entendia nada, não sabia patavina de inglês, só sabia que estava ali à espera que dispusessem dele, para começar vida nova, ou então... Sozinho, diante do desconhecido. Não conhecia ninguém, nesta terra envolta em noite e humidade.

Inquietava-o pensar em tudo isso, ali imóvel, impotente, com o coração do tamanho dum feijão a zumbir-lhe no peito apertado. Sonhava com a América havia muitos anos. Vinha em busca dela como, quatrocentos anos antes, e mais, os seus antepassados (isto é um modo de falar) tinham andado em demanda da Terra Firme, do El Dorado e do Xipango. Esses porém eram felizes, não precisavam de passaporte, o mundo era então um mistério aberto à curiosidade e ambição de todos! Ele viajava escondido, embora não buscasse oiro nem prata nem pimenta. Tinha dois braços, sabia pegar numa enxada ou picareta, queria trabalhar. E se o oiro não andava agora aos pontapés, quem caminhasse de olhos no chão ainda podia topar aqui e ali com algum penny perdido – assim tinha ouvido dizer a um trangalhadanças dum alemão que da América voltara com dois patacos, e ele conhecera algures. A lenda do Novo Mundo ainda não tinha morrido no coração, ou seria no estômago?, dos homens. Para alcançá-lo tomara pelo caminho mais curto, que é quase sempre o mais arriscado: a clandestinidade. Assim viera meter-se a bordo deste cargueiro de má-morte, um calhambeque  desfazer-se em ferrugem, asmático e claudicante.

O tempo correu e ele dormitou. De repente acordou sobressaltado, e enclavinhou as mãos no saco. Uma voz rouca segredava-lhe ao ouvido:

– Salte cá para fora, Seu Tomé!

A clarabóia estava levantada. Atirou com as pernas entanguidas para fora do esquife, mas quando se quis pôr em pé elas recusaram-se a aguentá-lo; doía-lhe a barriga, tinha a bexiga a arrebentar, e uma sede de morte.

– Não me posso mexer!

O marujo murmurou qualquer coisa que ele não ouviu bem, uma praga com certeza, e pôs-se a esfregar-lhe com vigor as costas, as pernas e os braços.

– Beba lá um gole de cachaça. Aqui é que vossemecê não pode ficar. Veja se se despacha, temos que aproveitar esta aberta, enquanto não anda nenhum guarda no cais.

Bebeu, sentiu um pouco de vida voltar-lhe aos membros, e pôde enfim andar. Foi verter águas junto dum turco dos salva-vidas. O outro fumava, impaciente, escondendo a brasa do cigarro na concha da mão morena.

– Pegue lá uma bucha prà viage. E agora tenha cautela, há?

Palpou o embrulho morno do farnel que o marujo lhe meteu na mão, e encaminhou-se atrás dele para o castelo da popa em trevas. Tinham retirado a prancha, mas nem que ela lá estivesse: mesmo àquela hora adiantada era perigoso desembarcar a descoberto. O que ele tinha a fazer era transpor a amurada e descer por um cabo da amarração, como uma ratazana.

Chegara o momento difícil. Mas uma vez no cais, olho atrás olho adiante, cosido com as sombras e as paredes, fazendo-se parte delas, era sumir-se no desconhecido, e estava livre.

– Meta o farnel no saco, homem. E pendure-o do pescoço, como é que você quer descer assim? Não tenha medo, agarre-se bem e ande prá frente.

Trocaram um aperto de mão. O clarão frouxo da cidade, a distância, enegrecia mais, por contraste, as vizinhanças. Ajeitou a trouxa ao pescoço, e sentiu-se pálido. A que altura estariam do cais? O marujo segurou-o, ajudou-o a transpor a amurada fria e molhada, e ele agarrou-se à corda com força. Ouviu em cima um murmúrio:

– Boa sorte! Vá com Deus.

Ficou sozinho, encangonchado no grosso cabo, áspero e encharcado. Alguns metros abaixo dele, invisível, era o cais, a terra firme, a liberdade, o pão amassado com o suor do seu rosto. Saberia alcançá-lo? Coragem! Sim, mas tinha o com licença que não lhe cabia nele uma agulha. Era como se estivesse entre mar e céu, com o Credo na boca por todo amparo. Devagar, com o saco pendurado ao pescoço a embaraçar-lhe os movimentos, e de pernas ensarilhadas, deixou-se escorregar. A palma das mãos ardia-lhe na aspereza do cabo. O peso do corpo puxava-o para o lado inferior, mas ele era magro e lá conseguiu resistir à gravidade e manter-se equilibrado a cavalo na amarra.

Diante dos olhos só tinha agora o casco negro do navio, que não conseguia desfitar, como se a ele se quisesse prender pelo magnetismo da vista. A água clapotava contra a estacaria, que rangia brandamente. Aquela água era agora o seu terror, e talvez viesse a ser o seu túmulo. Se a olhasse podia-lhe dar uma vertigem, e então...

Pela posição e balanço mais amplo do cabo percebeu que ia a meio caminho. Mas nem podia olhar para trás, nem via um palmo adiante do nariz, além do negrume do casco. Deixou-se escorregar mais um pedaço, com dificuldade, porque o cabo se aproximava da horizontal, e, segurando-se com firmeza, saltou e agitou uma perna, à procura do contacto com a terra. Mas esta devia estar ainda fora do seu alcance. Descansou um migalho. O suor escorria-lhe na cara e no pescoço, encharcava-lhe as costas. Se agora caísse, era verdadeiramente um homem ao mar: ninguém dava por isso, e que dessem – de bordo ninguém lhe acudia. Nem do cais deserto. No dia seguinte, ou só Deus sabe quando, o cadáver seria pescado, meio roído dos peixes e dos caranguejos, ou inchado e fedorento, a escorrer água e lodo. Se o fosse!, porque também podia ir pelo mar abaixo...

Seria mais um desaparecido, ou um cadáver anónimo, sem parentes, amigos nem conhecidos que o viessem identificar e reclamar. Longe, a família, à qual não escrevera em dois anos, continuaria por mais algum tempo à espera dele, ou de notícias: mas acabaria por esquecê-lo. De bordo ninguém dava por nada, ou calavam-se. Quanto aos destinatários, lá em cascos de rolha, que lhes importava?

Nem sequer o conheciam. O comentário indiferente – «Aquilo, se calhar o homem nem chegou a embarcar!» – seria todo o seu responso e epitáfio. Era como se nunca tivesse existido.

Impelido pelo súbito terror de não existir, escorregou mais, tornou a agitar a perna, em vão. Agora o corpo, na horizontal, e a oscilar com a amarra, não podia arrancar-se à gravidade nem recobrar a verticalidade. Ainda que o pé esbarrasse na beira do molhe, como é que ele ia soltar-se, dar uma reviravolta e um pulo, para cair em pé? Nem pensar em pendurar-se pelos braços: ficaria abaixo do nível do cais, e então é que não havia esperança. Não ousava desenvencilhar-se da espia que o prendia à terra e à vida, para se endireitar e dar um salto. Nem sequer podia virar a cabeça para avaliar a que altura estava. Mais alguns minutos, que tanto lhe durariam as forças, e a queda era fatal.

Teve a clara visão do seu estado – a boca negra da morte à espera dele, em baixo, como um tubarão insaciável – e intimamente amaldiçoou a hora em que lhe dera para se meter nestas andanças: se não era marujo, não sabia trepar uma corda nem sabia nadar! Suspenso entre dois nadas.

Encolheu-se todo e, com um esforço desesperado, conseguiu deslizar mais um pouco: o pé tocou por fim na beira do molhe, e um bafo de lume veio-lhe dele, subiu-lhe os membros, reanimou-o como um calor de ressurreição. O cais, molhado e escorregadiço, estava ao seu alcance! Mas por baixo era ainda o abismo de água. Encavalitado na amarra, crispado e dorido, desembaraçou a custo a outra perna, e agitou-as ambas, à procura de apoio. As solas delgadas patinavam na viscosidade do madeiramento gasto, ou no rebordo de aço. Se tentasse firmar-se nelas, podia escorregar, perder o suporte do cabo, e dar o mergulho definitivo. A suar em bica, trémulo do esforço, ficou com as pernas pendentes e imóveis. Voltar para cima, nem pensar nisso: já não tinha forças para marinhar, e que as tivesse, a bordo não o deixariam entrar nem ficar. Agora era respeitar o contrato, e escapulir-se ou morrer. Como uma mosca teimosa, que se agita para escapar à armadilha, tornou a fazer esforços para se apoiar no cais, e soltou uma praga em voz alta:

– Oh rais ta parta a minha sorte!

Nesse instante sentiu que alguma coisa de duro, mão ou tenaz, o agarrava com violência pelos rins, dando-lhe a sensação dum ferro em brasa, e teve este pensamento de renúncia «Estou catrafi lado!» Mas, é curioso, recobrou simultaneamente a calma e a esperança.

O que quer que fosse puxou por ele com força, e ele deixou-se levar passivamente, até que, com o cordão do saco a estrafegá-lo, conseguiu endireitar o corpo e firmar-se nas pernas bambas. Aquela mão de ferro, invisível, arrepanhava-lhe as roupas e as carnes, macerando-o e magoando-o. Depois, com um safanão supremo, quase o ergueu do chão e fê-lo dar uma reviravolta.

Levantou os olhos e viu diante de si um grande vulto negro, um capote de oleado reluzente de chuva, uma farda com botões de metal e uma chapa cor de prata. O agente da polícia inclinou para ele o rosto vermelho e robusto:

– Stowaway, eh? – e sacudiu-o com energia, como se o quisesse despertar do torpor. – Passageiro clandestino? – repetiu, e riu-se. – You speak English?

Que pode um homem dizer em tais circunstâncias? Tinham-lhe recomendado:

«Haja o que houver, não abra bico. Faça-se de trouxa.» Mas com aquela mão brutal não se brincava, e ele respondeu:

– Eu não espique inglish, eu não espique!

O agente largou uma risada de gozo e tornou a sacudi-lo:

– No eespeek! No eespeek!

Tinha um hálito quente, de tabaco e whisky. Na fria humidade de Dezembro, um homem precisa de alguma coisa que lhe aqueça as entranhas, para andar assim de ronda pelos cais desertos, entregue aos seus pensamentos. Depois, na noite de festa, de porta em porta ao longo das tabernas e saloons da borda-d’água – Merry Christmas, Mack! – há sempre quem tenha uma franqueza com a Autoridade, e a gente não é de pau, nem pode fazer uma desfeita, recusar... A verdade é que um trago ou dois dispõem muitas vezes um homem a ser mais tolerante com as fraquezas humanas.

Ficaram assim um pedaço, frente a frente, ele à espera, a contar os minutos de vida, e o agente talvez a dar balanço à situação, a macerar-lhe devagar o ombro magro na tenaz de ferro da manápula, e repetindo a meia-voz:

– No eespeek, no eespeek...

Pequeno como um murganho, a tremer de medo e frio na fatiota leve, à espera da sentença – quem sabe até se o guarda, enraivecido, não lhe ia dar um empurrão, atirá-lo à água? – o passageiro clandestino olhava fixamente os botões da farda, o cassetete comprido e polido.

O agente disse ainda qualquer coisa que ele não entendeu, e apertou-lhe os ombros com mais força, a tactear-lhe os ossos, talvez a ensaiar esmagar-lhos pelo simples prazer de exercer forças naquela fragilidade.

Depois, de repente, obrigou-o a dar meia volta, de cara à terra, apoiou-lhe a mão enorme e espalmada nas costas, e empurrou-o:

– Now run!

Não precisou de entender, e correu: correu sem saber aonde ia, nem se o guarda lhe ia dar um tiro pelas costas como a um ladrão das docas que desobedece à ordem de Alto!, ou se realmente o mandava embora, livre, sem o prender nem o forçar a regressar a bordo. Correu às cegas, a mastigar palavras sem tom nem som, a esbarrar em paredes, a trepar em caixotes, em fardos, em cordames, em máquinas, confuso e perdido, incapaz de encontrar a saída daquele labirinto.

Foi quando a voz do polícia lhe atirou à distância, pela rectaguarda:

– Hey! Merry Christmas!...

O clandestino estacou, compreendendo vagamente, e só nesse instante se lembrou que era Noite de Natal. Então com a garganta apertada, a rir e a chorar, transpôs umas calhas ferroviárias, pulou uma vedação de rede de arame, e deitou a correr em campo aberto, nas trevas.

De longe, o clarão agora mais vivo da cidade guiava-lhe os passos, como o reflexo de misteriosa estrela oculta, ou de lareira acesa, chamando-o à consoada.

José Rodrigues Miguéis

terça-feira, 25 de abril de 2017

SÁTIRA...

O Dia D
Sátira...

«O DIA D»

Esperava cravo ferreiro
Pra dar uso ao Martelo...
Floriu vermelho singelo,
Abril na flor do craveiro.
Em cruz cravo certeiro...
Há que sangrar a purga,
Surge então a verruga
Nos cascos como tumor...
Ouve-se ao longe rumor
Que o 25 ainda madruga!

POETA

segunda-feira, 24 de abril de 2017

SÁTIRA...

Os Le Pen
Sátira...

«OS LE PEN»

- Prepara-te, minha filha,
Vem aí segunda volta…
O Diabo anda à solta,
Não caias na armadilha!
- Vou chamar a guerrilha...
Eu não topo gente sonsa,
Com os amigos da onça
O milagre há de se dar…
- Sem nome pra qualificar?...
Réplica da geringonça!

POETA

SÁTIRA...

Não Há Milagres
Sátira...

«NÃO HÁ MILAGRES»

- Tenho que secar a raiz
Da maldita geringonça…
Com os amigos da onça,
Arrasar duma vez o país!
- Foi isso mesmo que fiz
Quando estive no poder,
Deixei osso duro de roer
Aos mais pobrezinhos…
O milagre dos pastorinhos
Pode vir a acontecer (?)

POETA

quarta-feira, 19 de abril de 2017

OUTROS CONTOS

«A Fábrica», conto poético por Manel d' Sousa.

«A Fábrica»
Décima de Manel d' Sousa

1017- «A FÁBRICA»

O político português
Formatado na fábrica,
Comum a sua prática
Guiar-se pela insensatez.
Não há duas sem três…
Outro sai da fornada,
A cabeça formatada
Com retórica do costume,
Mostra todo o azedume
Se a mentira é caçada!

Manel d’ Sousa

SÁTIRA...

A Minha é Maior que a Tua
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Sátira...

«A MINHA É MAIOR QUE A TUA»

- Este bacamarte inteiriço
É muito maior que a tua…
- A minha por vezes míngua,
Mas faz o mesmo serviço!
- Epá, tu deixa-te disso…
A tua quase não se vê!
- Queres saber porquê?...
A qualidade do material
Pró efeito é proporcional…
O resultado, ninguém prevê!

POETA

terça-feira, 18 de abril de 2017

OUTROS CONTOS

«Obrei quando o Discurso me Guiava», conto poético por Tomás António Gonzaga.

«Obrei quando o Discurso me Guiava»
Poeta Gonzaga, por João Mafra

1016- «OBREI QUANDO O DISCURSO ME GUIAVA»

Obrei quanto o discurso me guiava, 
Ouvi aos sábios quando errar temia; 
Aos bons no gabinete o peito abria, 
Na rua a todos como iguais tratava. 

Julgando os crimes nunca os votos dava, 
Mais duro, ou pio do que a lei pedia: 
Mas devendo salvar ao justo ria, 
E devendo punir aos réus chorava. 

Não foram, Vila Rica, os meus projetos, 
Meter em ferro cofre cópia de ouro, 
Que farte aos filhos, e que chegue aos netos: 

Outras são as fortunas, que me agouro, 
Ganhei saudades, adquiri afetos, 
Vou fazer destes bens melhor tesouro. 

Tomás António Gonzaga

SÁTIRA...

Os Mais Saudáveis
Sátira...

«OS MAIS SAUDÁVEIS»

- Portugal pra diante
No consumo de vinho…
Diga lá, Zé Povinho,
Que acha do habitante?
- Pra não ser deselegante
Cada qual bebe o que quer,
Eu bebo quando quiser
O amigo nada com isso…
Com umas rodelas de chouriço
Se o estômago não se opuser!

POETA

segunda-feira, 17 de abril de 2017

OUTROS CONTOS

«Conto da Páscoa», por António Sardinha.

«Conto da Páscoa»
D. Sancho de Castela e Leão/ O Bravo

1015- «CONTO DA PÁSCOA»

Quando a lua assomou por detrás dos paredões da fortaleza já a matança tinha começado. Subiam gritos roucos das vielas, enroladas na sombra trágica da noite, para logo se apagarem ao longe, num ruído confuso de batalha. Surpreendidos pela sanha do ataque, os vizinhos da cidade saltavam estonteados da cama, não sabendo, ao aferrolharem-se melhor, se eram os mouros que haviam tornado. E, no entanto, descidos do alcáçar, os homens de armas repartiam-se em bandos, e a cada esquina, no cotovelo de qualquer arcada ou rio adro dos pequenos cemitérios da reconquista, esgolfavam-se uns contra os outros, numa refrega impiedosa e sem cansaço.

Assim, por entre pragas e ais espaçados de moribundos, o dia da Páscoa vem encontrar a Bejaranos e a Portugaleses, dizimando-se furiosamente dentro dos muros de Badajoz.

***
Corria o ano de 1289 e não se fechava ainda um século sobre a hora em que a Cruz se vira hasteada, nos adarves da cidade, pelas tropas vitoriosas de Afonso de Leão. Abril viera, mais uma vez, com as cegonhas voando a sua rima compassada e os campos toucando-se de rosmaninho e giesta. Na véspera, entre a procissão solene dos cônegos e dos raçoeiros, o Bispo benzera, na Catedral, o Fogo e a Água. Tudo parecia, com a ressurreição do Senhor, anunciar a paz à velha atalaia do Guadiana. Mas os ódios antigos não dormiam, como brasas de baixo da cinza.

Não dormiam desde o primeiro instante em que a colonização de Badajoz, em seguida à sua tomada, se entregara a famílias oriundas de Portugal e a gente descida de Bejar — a caminho já das montanhas leonesas. Dividiram-se as terras, na presença do Rei, pelos povoadores da cidade.

Cedo a cobiça despertou, ateada pela diferença de raças. E não tardaram Bejaranos e Portugaleses procurarem-se nas ruas de Burgos, como duas hostes encarniçadas, por um sentimento bárbaro de extermínio.

Mandava em Castela, já unida a Leão, aquele D. Sancho, a quem os cronistas chamaram o Bravo.

Possuíam os Portugaleses valimento na Corte, — o valimento de D. Afonso Godinez, favorito do Monarca. Descendia D. Afonso Godinez de certo D. Godinho Godinhes — o de Coimbra, do qual se conta nas genealogias que de Riba-Mondego correra com a sua mesnada à conquista de Salamanca. Não se esquecia o favorito de Sancho IV dos vínculos do sangue, na proteção dispensada aos Portugaleses de Badajoz. Quem sabe se eles não descenderiam, também dos outros, dos que tinham subido de Riba-Mondego na mesnada de D. Godinho Godinhes, com os seus cintos aperrados e os enérgicos braços plebeus, denunciando a adolescência dum povo prestes a ser batizado pela história?

Seguros de tão grande encosto, empenharam-se os Portugaleses em expulsar de Badajoz os Bejaranos, — seus contendores. Não era menos forte o empenho dos Bejaranos em se desfazerem dos Portugaleses.

Com este fermento constante de desavença, o próprio rei D. Sancho tentou, em pessoa, congraçar os dois bandos enfurecidos. Andavam então em Castela as coisas mui revoltas, por causa dos partidários dos infantes de La Cérda. Temia-se o Monarca de que em Badajoz, ou Bejaranos, ou Portugaleses, se voltassem para seus sobrinhos. Mas a ação apaziguadora do Rei durou tanto, como durou a sua estada em Extremadura.
Tornando depressa ao antigo, conseguiram os Portugaleses atirar para fora da cidade com os Bejaranos. E, não contentes, despojaram-nos ainda por cima dos seus haveres e fazendas.

Queixaram-se os espoliados a D. Sancho, e por decisão da justiça real, se intimou aos Portugaleses completa reparação. Entrados de novo na cidade, exigem os de Bejar que se cumpra a sentença da Cúria-Régia. Recusam os Portugaleses atendê-los, arrumados ao apoio que lhes dispensava na corte o favorito do Monarca. Logo a luta se acendeu, mais cruel do que nunca. Rompera em ligeiros motins, mal o sino grande da Sé badalara o recolher. Protegidos pelo esconso das vilas, puderam os de Bejar apropriar-se da parte da alcáçova, e na balbúrdia do massacre, os Portugaleses, saindo, cegos, para o combate, não distinguiam a irmãos e a inimigos, na ira dos seus golpes enraivados.

***
“Liberdad! Liberdad!” gritavam os Bejaranos no seu assalto às moradas dos de Portugal. E, de mistura com o tinir dos ferros mordidos de laivos, vermelhos, já aclamam rei a

D. Afonso de La Cerda. A manhã raiara, com o Guadiana muito quieto, espreguiçando na indiferença a sua linha arrastada e suja.

O estridor da carnificina renascera mais violento, e ninguém pensava, ou alanceado pela dor, ou ensandecido pelo ódio, em honrar a Cristo Senhor Nosso, ressuscitado naquele dia. Os sinos da Igreja-Maior ficaram calados, na alta torre ameiada. Nenhuma garrida se ouvia aqui ou além, convidando os fiéis para o convívio dos Sagrados Mistérios. Os largos atulhavam-se de cadáveres, e os cães lambiam, gulosos desse banquete inesperado, as poças de sangue negro. A porta da Catedral ainda uma mão trêmula a abrira. Mas os cadeirados do coro permaneceram desertos de beneficiados e de cônegos. Dir-se-ia que nem a Missa se iria escutar nas naves venerandas, quando no lajedo ressoaram passos brandos e leves. O Bispo entrava, sem cerimonial, acompanhado por um pajenzito, transido de pavor.

Era uma figura macilenta de ancião, com longos sulcos de penitência na apergaminhada face de asceta. Dirigiu um olhar dolorido às capelas ermas e obscuras, para de pronto endireitar o busto, como que de ouvido à escuta. Lá fora, à orla da manhã, a matança redobrava mais implacável, — com mais sanha. Turvou-se a expressão do Prelado, já de joelhos diante do Altar, onde bruxuleava uma lâmpada quase a extinguir-se. As rosáceas inflamavam-se a pouco e pouco, flamejando com o sol nascente, aleluias de cor. E na alma do Bispo, que atormentada procela! Perlavam-lhe a pele amarfinada lágrimas grossas e vagarosas. Nos lábios secos, adivinhava-se-lhe o fio débil da oração refrigerando-lhos, compassiva. Adeja-lhe em torno um como que resplendor místico, O que passaria na prece do ancião, clamando piedade ao Senhor?

Mas, eis que o Prelado se levanta, tocado dum alento repentino. Levanta-se, com um aprumo majestoso de Pastor, e a um sacristão aterrado que se escoava na sombra, ordena-lhe que trepe à torre e despregue a revoada dos sinos, em repiques de festa solene. Paramenta-se ele próprio, entretanto, com ouros e as galas da liturgia. A sua boca recita, confiada, as palavras do Apóstolo: — “Oh mors, ubi victoria tua?” Uma luminosa serenidade lhe acaricia as feições, todo embebido em meditação profundíssima. No alto da torre, por sobre a cidade a braços com a Morte, os sinos repicavam já a glória de Cristo Ressuscitado. Passeando-se na crasta capitular, repetia o Bispo, impregnado duma secreta unção, a apóstrofe jubilosa do Apóstolo: — “Oh mors, ubi victoria tua?” E na torre, os sinos repicavam, — repicavam, levianos e açodados, na manhã transparente de abril.

***
Mas os cônegos não aparecem, não aparecem os raçoeiros. Teria o Bispo de subir sozinho os degraus do Altar, para que não faltasse ao Senhor a dádiva angustíssima da Missa? Volta o coração a apertar-se-lhe, percebendo para lá do muros espessos da Catedral, o bater dos ferros homicidas, de envolta com os brados e as imprecações da batalha.

Enclavinha as mãos afiladas num gesto súplice de misericórdia, e é assim que ele avança para o presbitério, sem acólitos nem fiéis, com a igreja vazia e o coro abandonado, como se um vento tumular houvesse soltado ali a sua rajada devastadora.
“Introibo ad altare Dei!” — murmura o Bispo, meio curvado sobre si mesmo. E logo eleva o pensamento ao Senhor, para que não se reze sem ouvintes a missa gloriosa da Ressurreição. Volve-se, depois, lento e angustiado, — “Dominus vobiscam!” pronunciando a saudação ritual. Mas queda-se suspenso, de mãos erguidas, como se o tivesse roçado a asa duma maravilha nunca vista. Prostrada a seus pés, recolhida e atenta, uma imensa turba enchia a Catedral. Entrara silenciosa e em silêncio guardava a mais recolhida atitude, num desejo transparente de bem honrar ao Senhor.

Renova o Prelado a saudação litúrgica, ao começar o ofertório. E então a sua vista cansada, por entre a assistência comprimida, sem um rumor, ao longo das três naves, iluminadas pelo sol em caprichosas fitas de ouro, abrange, agora, com surpresa, mantos floreteados de Alcântara, peitos de couraças esplendentes, magistrados de loba e garnacha, damas arrastando brocados de preço, algumas cogulas mitradas, seguidas duma massa anônima de mesteirais e gente miúda, trajando honradamente a sua véstia domingueira. Apura ainda mais a vista o comovido ancião, e já reconhece muitos a quem ungira nos transes da agonia ou que ele acompanhara ao descanso final, entoando, pausado, o ofício de defuntos. Na ausência dos vivos, os mortos haviam saído do sono frio da sepultura para testemunharem, no milagre da própria ressurreição, o milagre admirável da ressurreição de Cristo Jesus!

Inclina-se o Bispo para o Cálix mais para a Hóstia num colóquio mudíssimo com Deus feito Carne, O seu olhar anuviado mal atinge, esforçando-se, as rubricas góticas do missal. Bate-lhe o coração numa fadiga inexprimível. Mas ao momento solene da Consagração, com o sangue do cordeiro imolado, o Bispo oferece-se, em holocausto sincero para que a alegria visite os Vivos e a paz seja dada aos Mortos de boa vontade. Vai-se arrastando, trôpego e exânime, na observância dos passos canônicos. “Ite, misse est!” — balbucia, por fim, com a voz desmaiada, a desfalecer-se-lhe na garganta.

O estranho povo de fantasmas sumira-se como por encanto. E ao suplicar, de cabeça pendente: “Placeat tibi, sancta Trinitas...”, os membros inteiriçam-lhe de súbito, o espírito desampara-o sem sofrimento, e o Bispo adormece suavemente na Eternidade, como uma criança no regaço da mãe. Quem vira os Mortos confessarem a vitória da Vida sobre a Morte, não podia continuar mais entre vivos que estavam mais mortos na vida do que os Mortos no seu sepulcro de sombras!

António Sardinha

sábado, 15 de abril de 2017

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

DEEP PURPLE - «Soldier Of Fortune»

Poet'anarquista

SOLDADO DO DESTINO

Muitas vezes contei histórias sobre como
Eu vivi à deriva esperando o dia
Em que eu pegaria sua mão e cantaria suas músicas
E talvez você fosse dizer
Venha se deitar comigo e me amar
E eu certamente ficaria

Mas sinto que estou ficando velho
E as músicas que cantei
Ecoam na distância
Como o som
De um moinho dando voltas
Acho que sempre serei
Um soldado do destino

Muitas vezes eu fui um viajante
Procurando algo novo
Nos dias de antigamente, quando as noites eram frias
Eu vagava sem você
Aqueles dias eu pensei que meus olhos
A tinham visto perto
Embora a cegueira seja confusa
Mostra que você não está aqui

Agora sinto que estou ficando velho
E as músicas que cantei
Ecoam na distância
Como o som
De um moinho dando voltas
Acho que sempre serei
Um soldado do destino

Sim, posso ouvir o som
De um moinho dando voltas
Acho que sempre serei
Um soldado do destino
Acho que sempre serei
Um soldado do destino

Deep Purple
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«Já Foste Rico e Forte e Soberano», conto poético por Saúl Dias (pseudónimo de Júlio Maria dos Reis Pereira).

«Já Foste Rico e Forte e Soberano»
Padrão dos Descobrimentos

1014- «JÁ FOSTE RICO E FORTE E SOBERANO»

Já foste rico e forte e soberano, 
Já deste leis a mundos e nações, 
Heróico Portugal, que o gram Camões 
Cantou, como o não pôde um ser humano! 

Zombando do furor do mar insano, 
Os teus nautas, em fracos galeões, 
Descobriram longínquas regiões, 
Perdidas na amplidão do vasto oceano. 

Hoje vejo-te triste e abatido, 
E quem sabe se choras, ou então, 
Relembras com saudade o tempo ido? 

Mas a queda fatal não temas, não. 
Porque o teu povo, outrora tão temido, 
Ainda tem ardor no coração. 

Saúl Dias

sexta-feira, 14 de abril de 2017

SÁTIRA...

A Mãe de Todas as Bombas
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Sátira...

«A MÃE DE TODAS AS BOMBAS»

Sobrevoo o Afeganistão
Onde a metralha acampa…
Jogo fora esta Trampa,
Vai ser grande explosão!
Aprecio boa implosão
Foi assim que fui parido,
O cérebro comprimido
Numa bomba a rebentar…
Minha mãe a lamentar
Que eu tivesse nascido!

POETA

quinta-feira, 13 de abril de 2017

OUTROS CONTOS

«Saudade», conto poético por Jaime Salazar Sampaio.

«Saudade»
Poema de Jaime Salazar Sampaio

1013- «SAUDADE»
Jaime Salazar Sampaio

quarta-feira, 12 de abril de 2017

OUTROS CONTOS

«O Nome da Gata», conto poético por Manel d' Sousa.

«O Nome da Gata»
Mia, a gata mourisca

1012- «O NOME DA GATA»

A gata mourisca chama-se Mia,
Dorme agora no meu regaço...
Mais de mil afagos lhe faço,
Comove-me a sua simpatia!

Um ser assim, de tão pequenino
Que me cabe na palma da mão... 
Vou sentindo o bater do coração,
E dou as boas graças ao destino.

Em boa hora no meu caminho
O felino haveria de cruzar,
Tão meigo e terno olhar...

Seu cheiro doce a pedir carinho,
Diz-me que não estou sozinho
Quando a ouço ronronar!

Manel d' Sousa

terça-feira, 11 de abril de 2017

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

STEVE HOWE
«Remedy Live/ Full Albun»

Poet'anarquista

Steve Howe
Guitarrista e Compositor Britânico

OUTROS CONTOS

«O Alienista», por Machado de Assis.

«O Alienista»
Conto de Machado de Assis

1011- «O ALIENISTA»

CAPÍTULO I - DE COMO ITAGUAÍ GANHOU UMA CASA DE ORATES

As crónicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia. —A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo. Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatómicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte. D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência,—explicável, mas inqualificável,— devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes. Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção,—o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de "louros imarcescíveis", — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores. —A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico. —Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais. A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico. —Olhe, D. Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo. D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe "que estava com desejos", um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil. — Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa? Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo; tinha cinquenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A ideia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente. A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimónias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestiu-se luxuosamente, cobriu-se de jóias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto,—e este fato é um documento altamente honroso para a sociedade do tempo, —porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores. Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí, tinha finalmente uma casa de orates.

CAPÍTULO II - TORRENTES DE LOUCOS

Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o mistério do seu coração. —A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos Coríntios: "Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada". O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenómeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade. —Um excelente serviço, corrigiu o boticário. —Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos. —Muito maior, acrescentou o outro. E tinha razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso académico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua! —Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é todos os dias. — Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe... —Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenómeno, concordou o alienista, depois de reflectir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente científica, e disso trato... —Vá que seja, e fico ansioso. Realmente! Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade. O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à cata dos fugitivos. A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes ( porque não olhava nunca para nenhuma pessoa ) toda a sua genealogia, que era esta: —Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu. Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas: —Deus engendrou um ovo, o ovo, etc. Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o Deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus. Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse científico. Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e, aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também da escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício.—A Casa Verde, disse ele ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual. E o Padre Lopes ria deste pio trocado,—e acrescentava,—com o único fim de dizer também uma chalaça: —Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa. Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenómeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.

CAPÍTULO III - DEUS SABE O QUE FAZ

Ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres: caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como dantes. E acrescentou: —Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos... Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao tecto,—os olhos, que eram a sua feição mais insinuante,— negros, grandes, lavados de uma luz húmida, como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento. Não dizem as crónicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjectura é verossímil. Em todo caso, o alienista não lhe atribuiu intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de Botafogo. Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra macia como o óleo do Cântico: —Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro. D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que Itaguaí, Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. Agora, principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior, agora é que ela perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente agora é que ele a convidava a realizar os seus desejos de menina e moça. D. Evarista não pôde dissimular o gosto de semelhante proposta. Simão Bacamarte pagou-lhe na mão e sorriu,—um sorriso tanto ou quanto filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento: — "Não há remédio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se". E porque era homem estudioso tomou nota da observação. Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao marido que, se ele não ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha pelas estradas. —Irá com sua tia, redarguiu o alienista. Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas não quisera pedi-lo nem insinuá- lo, em primeiro lugar porque seria impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era melhor, mais metódico e racional que a proposta viesse dele. —Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! suspirou D. Evarista sem convicção. —Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me contas. Queres ver? E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-láctea de algarismos. E depois levou-a às arcas, onde estava o dinheiro. Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulência. Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das alusões: —Quem diria que meia dúzia de lunáticos... D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignação: —Deus sabe o que faz! Três meses depois efectuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticário, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu dali sair em certa manhã do mês de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista. Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo. Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais do que a ideia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juízo. —Adeus! soluçaram enfim as damas e o boticário. E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do génio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.

CAPÍTULO IV - UMA TEORIA NOVA

Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o 1 [Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por todos os lados uma certa ideia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heróicos. Um dia de manhã,—eram passadas três semanas,—estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar. —Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador. Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas; Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só dia. Assim se explicam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez:—"Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora aguenta-te; anda, aguenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amém a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!"—E muitos outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde. Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspecção até o pescoço. —Estou muito contente, disse ele. —Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trémula. O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu: —Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha ideia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da Terra. A loucura, objecto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente. Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua ideia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demónio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente: —A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério. —Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares levantando as mãos ao céu. Quanto à ideia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era "caso de matraca". Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí que como as demais vilas, arraiais e povoações da colónia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia; ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara, e da matriz;—ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão. De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam,—um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores,—aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde,—desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crónicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade, nem todas as instituições do antigo regímen mereciam o desprezo do nosso século. —Há melhor do que anunciar a minha ideia, é praticá-la, respondeu o alienista à insinuação do boticário. E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver, disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução. —Sempre haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele. Simão Bacamarte reflectiu ainda um instante, e disse: —Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia. O Vigário Lopes a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia princípio de execução. —Com a definição actual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca? Sobre o lábio fino e discreto do alienista rogou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas. A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, — com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução.

CAPÍTULO V - O TERROR

Quatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa fora recolhido à Casa Verde. —Impossível! —Qual impossível! foi recolhido hoje de manhã. — Mas, na verdade, ele não merecia... Ainda em cima! depois de tanto que ele fez... Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguaí, Herdara quatrocentos mil cruzados em boa moeda de El-rei Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou 0 tio no testamento, para viver "até o fim do mundo". Tão depressa recolheu a herança, como entrou a dividi-la em empréstimos, sem usura, mil cruzados a um, dois mil a outro, trezentos a este, oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí, seria enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria, gradualmente. Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao chão, logo que ele assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos corteses eram justamente os que tinham ainda a dívida em aberto; ao contrário, parece que os agasalhava com maior prazer, e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuráveis devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se risse dela, observou um desafeiçoado, com certa perfídia: — "Você suporta esse sujeito para ver se ele lhe paga". Costa não se deteve um minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a divida.— "Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu mão de uma estrela, que está no céu". Costa era perspicaz, entendeu que ele negava todo o merecimento ao ato, atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinham meter-lhe na algibeira. Era também pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar que lhe não cabia um tal labéu: pegou de algumas dobras, e mandou-as de empréstimo ao devedor. —Agora espero que...—pensou ele sem concluir a frase. Esse último rasgo do Costa persuadiu a crédulos e incrédulos; ninguém mais pôs em dúvida os sentimentos cavalheirescos daquele digno cidadão. As necessidades mais acanhadas saíram à rua, vieram bater-lhe à porta, com os seus chinelos velhos, com as suas capas remendadas. Um verme, entretanto, rola a alma do Costa: era o conceito do desafecto. Mas isso mesmo acabou; três meses depois veio este pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lhos daí a dois dias; era 0 resíduo da grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco meses depois era recolhido à Casa Verde. Imagina-se a consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-se que o Costa ensandecera, ao almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis,—ou mansos, e até engraçados, conforme as versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranquilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente que esse digno homem não estava no perfeito equilíbrio das faculdades mentais, à vista do modo como dissipara os cabedais que... —Isso, não! isso, não! interrompeu a boa senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não é dele. —Não? —Não, senhor. Eu lhe digo como o negócio se passou. O defunto meu tio não era mau homem; mas quando estava furioso era capaz de nem tirar o chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi; imagine como ficou. A cara era um pimentão; todo ele tremia, a boca escumava; lembra-me como se fosse hoje. Então um homem feio, cabeludo, em mangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água. Meu tio (Deus lhe fale n alma!) respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para ele, abriu a mão em ar de ameaça, e rogou esta praga:—"Todo o seu dinheiro não há de durar mais de sete anos e um dia, tão certo como isto ser o sino-salamão! E mostrou o sino-salamão impresso no braço. Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquele maldito. Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais. Quando ela acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice-rei, e convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a na galeria dos alucinados. A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora dirigira à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que sabia de outras coisas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia jurar. —Você, que é íntimo dele, não nos podia dizer o que há, o que houve, que motivo... Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos atónitos, era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica. Tudo isso dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio, porque ele não respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito, soltos, secos, encapados no fiel sorriso constante e miúdo, cheio de mistérios científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana. —Há coisa, pensavam os mais desconfiados. Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de ombros e foi embora. Tinha negócios pessoais Acabava de construir uma casa suntuosa. Só a casa bastava para deter a chamar toda a gente; mas havia mais,—a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da Holanda, segundo contava, e que se podia ver do lado de fora, porque as janelas viviam abertas,—e o jardim, que era uma obra-prima de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera no fabrico de albardas, tinha tido sempre o sonho de uma casa magnífica, jardim pomposo, mobília rara. Não deixou o negócio das albardas, mas repousava dele na contemplação da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa do que a Casa Verde, mais nobre do que a da Câmara, Entre a gente ilustre da povoação havia choro e ranger de dentes, quando se pensava, ou se falava, ou se louvava a casa do albardeiro,—um simples albardeiro, Deus do céu! —Lá está ele embasbacado, diziam os transeuntes, de manhã. De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na casa, namorado, durante uma longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos, embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria riquíssimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras despregadas. — Agora lá está o Mateus a ser contemplado, diziam à tarde. A razão deste outro dito era que, de tarde, quando as famílias safam a passeio (jantavam cedo) usava o Mateus postar-se à janela, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de branco, atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas até que anoitecia de todo. Pode crer-se que a intenção do Mateus era ser admirado e invejado, posto que ele não a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem ao Padre Lopes seus grandes amigos. E entretanto não foi outra a alegação do boticário, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do amor das pedras, mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desde algum tempo. Aquilo de contemplar a casa... —Não, senhor, acudiu vivamente Crispim Soares. —Não? —Há de perdoar-me, mas talvez não saiba que ele de manhã examina a obra, não a admira; de tarde, são os outros que o admiram a ele e à obra.—E contou o uso do albardeiro, todas as tardes, desde cedo até o cair da noite. Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte. Ou ele não conhecia todos os costumes do albardeiro, ou nada mais quis, interrogando o Crispim, do que confirmar alguma notícia incerta ou suspeita vaga. A explicação satisfê-lo; mas como tinha as alegrias próprias de um sábio, concentradas, nada viu o boticário que fizesse suspeitar uma intenção sinistra. Ao contrário, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o braço para irem a passeio. Deus! era a primeira vez que Simão Bacamarte dava o seu privado tamanha honra; Crispim ficou trémulo, atarantado, disse que sim, que estava pronto. Chegaram duas ou três pessoas de fora, Crispim mandou-as mentalmente a todos os diabos; não só atrasavam o passeio, como podia acontecer que Bacamarte elegesse alguma delas, para acompanhá-lo, e o dispensasse a ele. Que impaciência! que aflição! Enfim, saíram. O alienista guiou para os lados da casa do albardeiro, viu-o à janela, passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando, examinando as atitudes, a expressão do rosto. O pobre Mateus, apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do primeiro volto de Itaguaí redobrou de expressão, deu outro relevo às atitudes... Triste! triste, não fez mais do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido à Casa Verde. —A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica. Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí,—a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas,—duas ou três de consideração,—foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública. Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais comitiva, —ou quase toda—que algumas semanas antes partira de Itaguaí O alienista foi recebê-la, com o boticário, o Padre Lopes os vereadores e vários outros magistrados. O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, —balbuciou uma palavra e atirou-se ao consorte—de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona que caiu neles e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois minutos D. Evarista recebia os cumprimentos dos amigos e o préstito punha-se em marcha. D. Evarista era a esperança de Itaguaí contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde. Daí as aclamações públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as flores e damascos às janelas. Com o braço apoiado no do Padre Lopes —porque o eminente confiara a mulher ao vigário e acompanhava-os a passo meditativo—D. Evarista voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigário indagava do Rio de Janeiro, que ele não vira desde o vice-reinado anterior; e D. Evarista respondia entusiasmada que era a coisa mais bela que podia haver no mundo. O Passeio Público estava acabado, um paraíso onde ela fora muitas vezes, e a Rua das Belas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah! o chafariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas—feitas de metal e despejando água pela boca fora. Uma coisa galantíssima. O vigário dizia que sim, que o Rio de Janeiro devia estar agora muito mais bonito. Se já o era noutro tempo! Não admira, maior do que Itaguaí, e, demais, sede do governo... Mas não se pode dizer que Itaguaí fosse feio; tinha belas casas, a casa do Mateus, a Casa Verde... —A propósito de Casa Verde, disse o Padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da ocasião, a senhora vem achá-la muito cheia de gente. —Sim? —É verdade. Lá está o Mateus... —O albardeiro? —O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e... —Tudo isso doido? —Ou quase doido, obtemperou padre. —Mas então? O vigário derreou os cantos da boca, à maneira de quem não sabe nada ou não quer dizer tudo; resposta vaga, que se não pode repetir a outra pessoa por falta de texto. D. Evarista achou realmente extraordinário que toda aquela gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos? Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio, não recolheria ninguém à Casa Verde sem prova evidente de loucura. —Sem dúvida... sem dúvida... ia pontuando o vigário. Três horas depois cerca de cinquenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos duas estrelas segundo a versão modesta de Crispim Soares e dois sóis no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas coisas um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito, dizia ao ouvido da mulher que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D. Evarista fazia esforços para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando três quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. Deus, disse ele, depois de dar o universo ao homem e à mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista." D. Evarista baixou os olhos com exemplar modéstia. Duas senhoras, achando a cortesanice excessiva e audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, 0 gesto do alienista pareceu-lhes nublado de suspeitas, de ameaças e provavelmente de sangue. O atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus que removesse qualquer episódio trágico—ou que o adiasse ao menos para o dia seguinte. Sim, que o adiasse. Uma delas, a mais piedosa, chegou a admitir consigo mesma que D. Evarista não merecia nenhuma desconfiança, tão longe estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água-morna. Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo? Esta ideia fê-la tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito e, levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe negou que era um improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele mesmo a ideia relativa ao nascimento de D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em algum autor que?... Não senhor; era dele mesmo; achou-a naquela ocasião e pareceu-lhe adequada a um arroubo oratório. De resto, suas ideias eram antes arrojadas do que ternas ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo, compôs uma ode à queda do Marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o "dragão aspérrimo do Nada" esmagado pelas "garras vingadoras do Todo"; e assim outras mais ou menos fora do comum; gostava das ideias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres... — Pobre moço! pensou o alienista. E continuou consigo: —Trata-se de um caso de lesão cerebral: fenómeno sem gravidade, mas digno de estudo... D. Evarista ficou estupefacta quando soube, três dias depois, que o Martim Brito fora alojado na Casa Verde. Um moço que tinha ideias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o ato a ciúmes do alienista. Não podia ser outra coisa; realmente, a declaração do moço fora audaciosa demais. Ciúmes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico das cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos safam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem podia emigrava. Um desses fugitivos chegou a ser preso a duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distancia de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das cortesias. De resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes pessoais, que eram raros, como à nobre tenacidade com que nunca desanimava diante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia era que, uma vez entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da casa o deixavam a ele, tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar de se saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o trazia de olho; na madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e conduzido à Casa Verde. —Devemos acabar com isto! —Não pode continuar! —Abaixo a tirania! —Déspota! violento! Golias! Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror crescia; avizinhava-se a rebelião. A ideia de uma petição ao governo, para que Simão Bacamarte fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio a expendesse na loja com grandes gestos de indignação. Note-se — e essa é uma das laudas mais puras desta sombrio história — note-se que o Porfírio, desde que a Casa Verde começara a povoar-se tão extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de sanguessugas que dali lhe pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse público. E acrescentava:—é preciso derrubar o tirano! Note-se mais que ele soltou esse grito justamente no dia em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa Verde um homem que trazia com ele uma demanda, o Coelho. —Não me dirão em que é que o Coelho é doido? bradou o Porfírio, e ninguém lhe respondia; todos repetiam que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma demanda que ele trazia com o barbeiro, acerca de uns chãos da vila, era filha da obscuridade de um alvará e não da cobiça ou ódio. Um excelente carácter o Coelho. Os únicos desafeiçoados que tinha eram alguns sujeitos que dizendo-se taciturnos ou alegando andar com pressa mal o viam de longe dobravam as esquinas, entravam nas lojas, etc. Na verdade, ele amava a boa palestra, a palestra comprida, gostada a sorvos largos, e assim é que nunca estava só, preferindo os que sabiam dizer duas palavras, mas não desdenhando os outros. O Padre Lopes que cultivava o Dante, e era inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e emendasse este trecho: La bocca sollevò dal fiero pasto Quel "seccatore"... mas uns sabiam do ódio do padre, e outros pensavam que isto era uma oração em latim.

CAPÍTULO VI - A REBELIÃO

Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação à Câmara. A Câmara recusou aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua. —Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos. A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da rebelião e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis e algumas distintas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto que os loucos ou supostos tais não eram tratados de graça: as famílias e em falta delas a Câmara pagavam ao alienista... —É falso! interrompeu o presidente. —Falso? —Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico em que nos declara que, tratando de fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela Câmara, bem como nada receberá das famílias dos enfermos. A notícia deste ato tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o alienista podia estar em erro, mas nenhum interesse alheio à ciência o instigava; e para demonstrar o erro, era preciso alguma coisa mais do que arruaças e clamores. Isto disse o presidente, com aplauso de toda a Câmara. O barbeiro, depois de alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um mandato público e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa Verde—"essa Bastilha da razão humana"—expressão que ouvira a um poeta local e que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e, a um sinal, todos saíram com ele. Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal um dos vereadores que apoiara o presidente ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde—"Bastilha da razão humana"—achou-a tão elegante que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enérgicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão: —Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista? Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo, com prudência mas com firmeza. Os colegas estavam atónitos; o presidente pediu-lhe que, ao menos, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas ideias na rua para não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de átomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra: Sebastião Freitas prometeu suspender qualquer ação, reservando-se o direito de pedir pelos meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo namorado:—Bastilha da razão humana! Entretanto a arruaça crescia. Já não eram trinta mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta; chamavam-lhe o Canjica—e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas. A ação podia ser restrita—visto que muita gente, ou por medo, ou por hábitos de educação, não descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde,—dada a diferença de Paris a Itaguaí,— podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha. D. Evarista teve noticia da rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lha uma de suas crias. Ela provava nessa ocasião um vestido de seda,—um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro,—e não quis crer. —Há de ser alguma patuscada, dizia ela, mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a barra está boa. —Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho. Assim. Está muito boa. —Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: — Morra o Dr. Bacamarte!!! o tirano! dizia o moleque assustado. —Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviesada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para ficar igualzinho e... — Morra o Dr. Bacamarte!!! morra o tirano! uivaram fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua Nova. D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror petrificou-a. A mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista não dera crédito, teve um instante de triunfo súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha jurar por ele. —Morra o alienista! bradavam as vozes mais perto. D. Evarista, se não resistia facilmente às comoções de prazer, sabia entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela ali entrou, precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis; os olhos dele, empanados pela cogitação, subiam do livro ao recto e baixavam do recto ao livro, cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentais. D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que ele lhe desse atenção; à terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente. —Você não ouve estes gritos? perguntou a digna esposa em lágrimas. O alienista atendeu então; os gritos aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e tranquilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do volume desconsertasse um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir esse defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à mulher que se recolhesse, que não fizesse nada. —Não, não, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de você... Simão Bacamarte teimou que não, que não era caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe, em nome da vida, que ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa. —Abaixo a Casa Verde! bradavam os Canjicas. O alienista caminhou para a varanda da frente e chegou ali no momento em que a rebelião também chegava e parava, defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias de desespero.—Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar; os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então o barbeiro, agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse da paciência do povo como fizera até então. —Direi pouco, ou até não direi nada, se for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis. —Não pedimos nada, replicou fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida, ou pelo menos despojada dos infelizes que lá estão. —Não entendo. —Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância... O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma contracção leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu: —Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus actos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas, se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós em comissão dos outros a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes. Disse isto o alienista e a multidão ficou atónita; era claro que não esperava tanta energia e menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para dentro. O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. Demais, fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão ou talvez a forca ou o degredo. Infelizmente a resposta do alienista diminuíra o furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação e quis bradar-lhes:—Canalhas! covardes! —mas conteve-se e rompeu deste modo: Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heróicas. Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno. E a multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta que tornava a si da ligeira síncope e ameaçava arrasar a Casa Verde. —Vamos! bradou Porfírio, agitando o chapéu. —Vamos! repetiram todos. Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche, entrava na Rua Nova.

CAPÍTULO VII - O INESPERADO

Chegados os dragões em frente aos Canjicas houve um instante de estupefação. Os Canjicas não queriam crer que a força pública fosse mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e esperou. Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu nestes termos alevantados: —Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí. Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises. Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os Canjicas. O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa; alguns, trepando às janelas das casas ou correndo pela rua fora, conseguiram escapar; mas a maioria ficou bufando de cólera, indignada, animada pela exortação do barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente quando um terço dos dragões,—qualquer que fosse o motivo, as crónicas não o declaram,—passou subitamente para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao mesmo tempo que lançou o desanimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis não tiveram coragem de atacar os seus próprios camaradas, e um a um foram passando para eles, de modo que, ao cabo de alguns minutos, o aspecto das coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado com alguma gente contra uma massa compacta que o ameaçava de morre. Não teve remédio, declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro. A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou para a Câmara Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao "ilustre Porfírio". Este ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade de governo começava a enrijar-lhe os quadris. Os vereadores, às janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que mandasse dar um mês de soldo aos dragões, "cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes . Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas, o vereador dissidente cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes noticia da triste realidade. O presidente não desanimou:—Qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos que estamos ao serviço de Sua Majestade e do povo.—Sebastião insinuou que melhor se poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fora, mas toda a Câmara rejeitou esse alvitre. Daí a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança intimava à Câmara a sua queda. A Câmara não resistiu, entregou-se e foi dali para a cadeia. Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o governo da vila em nome de Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não desconhecesse (acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que eles prontamente anuíram. O barbeiro veio à janela e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de—"Protector da vila em nome de Sua Majestade, e do povo".—Expediram-se logo várias ordens importantes, comunicações oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente uma proclamação ao povo, curta, mas enérgica: "Itaguaienses! Uma Câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda publica, tão desbaratada pela Câmara que ora findou às vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós. O Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo Porfírio Caetano das Neves". Toda a gente advertiu no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo uns, não podia haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista metera na Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras e sendo um dos homens aparentado com o Protector. Não era um repto, um ato intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira; e a vila respirou com a esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros e destruído o terrível cárcere. O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamação, o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio Poucos gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na ação do governo. O barbeiro faz expedir um ato declarando feriado aquele dia, e entabulou negociações com o vigário para a celebração de um Te-Deum, tão conveniente era aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual; mas o Padre Lopes recusou abertamente o seu concurso. —Em todo caso, Vossa Reverendíssima não se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro, dando à fisionomia um aspecto tenebroso. Ao que o Padre Lopes respondeu, sem responder: —Como alistar-me, se o novo governo não tem inimigos? O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as famílias abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte. 

CAPÍTULO VIII - AS ANGÚSTIAS DO BOTICÁRIO 

Vinte e quatro horas depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do palácio do governo,—foi a denominação dada à casa da Câmara,—com dois ajudantes-de ordens, e dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava ele que era mais decoroso ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de que o alienista não obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado. Não descrevo o terror do boticário ao ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do alienista.—Vai prendê-lo, pensou ele. E redobraram-lhe as angústias. Com efeito, a tortura moral do boticário naqueles dias de revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem se achou em mais apertado lance: —a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a simples noticia da sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque ele sabia a unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final. A esposa, senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao lado de Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do alienista estava perdida, e que ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver. Fê-lo Catão , é verdade, sed victa Catoni, pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do Padre Lopes; mas Catão não se atou a uma causa vencida, ele era a própria causa vencida, a causa da república; o seu ato, portanto, foi de egoísta, de um miserável egoísta; minha situação é outra. Insistindo, porém, a mulher, não achou Crispim Soares outra saída em tal crise senão adoecer; declarou-se doente e meteu-se na cama. —Lá vai o Porfírio à casa do Dr. Bacamarte, disse-lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da cama; vai acompanhado de gente. —Vai prendê-lo, pensou o boticário. Uma ideia traz outra; o boticário imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam também buscá-lo a ele na qualidade de cúmplice. Esta ideia foi 0 melhor dos vesicatórios. Crispim Soares ergueu-se, disse que estava bom, que ia sair; e, apesar de todos os esforços e protestos da consorte, vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são unânimes em dizer que a certeza de que o marido ia colocar-se nobremente ao lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam com muita perspicácia o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário caminhou resolutamente ao palácio do governo e não à casa do alienista. Ali chegando, mostrou-se admirado de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adesão, não o tendo feito desde a véspera por enfermo. E tossia com algum custo. Os altos funcionários que lhe ouviam esta declaração, sabedores da intimidade do boticário com o alienista, compreenderam toda a importância da adesão nova e trataram a Crispim Soares com apurado carinho; afirmaram-lhe que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à Casa Verde, a negócio importante, mas não tardava. Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a de todos os patriotas; ao que o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara outra coisa, que isso mesmo mandaria declarar a Sua Majestade.

CAPÍTULO IX - DOIS LINDOS CASOS

Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir, e portanto estava prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir pessoalmente à destruição da Casa Verde. — Engana-se Vossa Senhoria, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em atribuir ao governo intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões científicas.. Demais, a Casa Verde é uma instituição pública; tal a aceitamos das mãos da Câmara dissolvida. Há entretanto—por força que há de haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito público. O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento do hospício, a prisão dele, o desterro, tudo, menos... —O pasmo de Vossa Senhoria, atalhou gravemente o barbeiro, vem de não atender à grave responsabilidade do governo. O povo, tomado de uma cega piedade que lhe dá em tal caso legitima indignação, pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma Câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no animo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode, não quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se Vossa Senhoria não indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade. —Quantos mortos e feridos houve ontem no conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos. O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos. —Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou três vezes o alienista. E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom mas que ele ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos da véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da Câmara etc., ao que o barbeiro ia respondendo com grande abundância, insistindo principalmente no descrédito em que a Câmara caíra. O barbeiro confessou que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos principais da vila, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar não já com a simpatia senão com a benevolência do mais alto espírito de Itaguaí e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia daquele grande homem que ouvia calado, sem desvanecimento nem modéstia, mas impassível como um deus de pedra. —Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até a porta. Eis aí dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento deste barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram, não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos.—Dois lindos casos! —Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta. O alienista espiou pela janela e ainda ouviu este resto de uma pequena fala do barbeiro às trinta pessoas que o aclamavam: —...porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execução das vontades do povo. Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. E ordem, meus amigos, é a base do governo... —Viva o ilustre Porfírio bradaram as trinta vozes, agitando os chapéus. —Dois lindos casos! murmurou o alienista.

CAPÍTULO X - RESTAURAÇÃO

Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinquenta aclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava "vendido ao ouro de Simão Bacamarte", frase que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila. Porfírio vendo o antigo rival da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente com grandes frases que o ato de Porfírio! era um simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio! ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros actos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara corrupta, falou este de "um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos sacrossantos interesses de Sua Majestade", etc. Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinquenta e tantos indivíduos que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como afiançaram entregar-lhe mais dezanove sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na primeira rebelião. Este ponto da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de Simão Bacamarte. Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo-la na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que Sebastião Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da extraordinária inconsistência das opiniões desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa aconteceu ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele ainda na véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de nenhum outro aro seu, acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados. Mas a prova mais evidente da influência de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a Câmara lhe entregou o próprio presidente. Este digno magistrado tinha declarado, em plena sessão, que não se contentava, para lavá-la da afronta dos Canjicas, com menos de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretário da Câmara entusiasmado de tamanha energia. Simão Bacamarte começou por meter 0 secretário na Casa Verde, e foi dali à Câmara à qual declarou que o presidente estava padecendo da "demência dos touros", um género que ele pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A Câmara a princípio hesitou, mas acabou cedendo. Daí em diante foi uma colecta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental. Alguns cronistas crêem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí a opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à loa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjectura; de positivo, nada há. —Onde é que este homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos apoiado os Canjicas... Um dia de manhã—dia em que a Câmara devia dar um grande baile,—a vila inteira ficou abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a verdade pura. D. Evarista fora recolhida às duas horas da noite. O Padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente acerca do fato. —Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos os matrimónios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objectos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência, antes de me dizer o objecto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há de lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente um vestido para a imagem de Nossa Senhora da matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta noite, porém, declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira. Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui achá-la calada e pensativa.—Que tem? perguntei-lhe.—Queria levar o colar de granada, mas acho o de safira tão bonito!—Pois leve o de safira.—Ah! mas onde fica o de granada?—Enfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um ora outro. Era evidente a demência: recolhi-a logo. O Padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objectou nada. O alienista, porém, percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de "mania santuária", não incurável e em todo caso digno de estudo. —Conto pô-la boa dentro de seis semanas, concluiu ele. E a abnegação do ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjecturas, invenções, desconfianças, tudo caiu por terra desde que ele não duvidou recolher à Casa Verde a própria mulher, a quem amava com todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe—menos ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência. Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.

CAPÍTULO XI - O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ

E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua. —Todos? —Todos. —É impossível; alguns sim, mas todos... —Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara De fato o alienista oficiara à Câmara expondo: — 1': que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2° que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3° que, desse exame e do fato estatístico, resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4D que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5° que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efectivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde. O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos. Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e prolongadas. E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase final do 4º, uma frase cheia de experiências futuras.

CAPÍTULO XII - O FINAL DO 4º.

Apagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos eixos. Reinava a ordem, a Câmara exercia outra vez o governo sem nenhuma pressão externa; o presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus lugares. O barbeiro Porfírio, ensinado pelos acontecimentos, tendo "provado tudo", como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma coisa, porque Napoleão não provou a Casa Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da navalha e da tesoura às calam idades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido, atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato é que nasceu o nosso adágio:—ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão;—adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil. Não só findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum ressentimento ficou dos actos que ele praticara; acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara plenamente ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros bailes e jantares. Dizem as crónicas que D. Evarista a princípio tivera ideia de separar-se do consorte, mas a dor de perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento de amor-próprio e o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes. Não menos íntima ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução e apreciou muito a magnanimidade do alienista, que ao dar-lhe a liberdade estendeu-lhe a mão de amigo velho. —É um grande homem, disse ele à mulher, referindo aquela circunstância. Não é preciso falar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros especialmente nomeados neste escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hábitos anteriores. O próprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara enfaticamente D. Evarista, fez agora outro em honra do insigne médico—"cujo altíssimo génio, elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais espíritos da terra". — Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o haver restituído à liberdade. Entretanto, a Câmara que respondera o ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que oportunamente estatuiria em relação ao final do 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi adorada sem debate uma postura, autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara antes mesmo daquele prazo mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que, em nenhum caso, fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a Câmara legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das consequências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez do colega; este, porem, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção. —A vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do espírito humano. Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro bem organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou 0 pedido do alienista e votou unanimemente a entrega. Compreende-se que, pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para recolher alguém à Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente. O Padre Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticário quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera e declarando às pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano. Um sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essa noticia, esqueceu os motivos de dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria. Simão Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos lhe bastaram para conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o respeito humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa Verde. —Um caso destes é raro, disse ele à mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim. Crispim Soares entrou. A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou as orelhas ao alienista. Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita atenção; mas antes disso não podia deixá-la na rua. E, parecendo-lhe vantajoso reuni-los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a beleza moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte: —O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá passará as noites, e os domingos e dias santos. A proposta colocou o pobre boticário na situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher, mas temia voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria os recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao alienista. Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias. Essa mesma desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeira patologia cerebral. Um dia conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tanto escrúpulo que o não fez senão depois de estudar minuciosamente todos os seus atos e interrogar os principais da vila. Mais de uma vez esteve prestes a recolher pessoas perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em quem reconheceu um tal conjunto de qualidades morais e mentais que era perigoso deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente, desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiência; foi ter com um compadre, demandado por um testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome da pessoa em questão. —Então parece-lhe...? —Sem dúvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa. O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento e acabou pedindo que lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência do réu foi solenemente proclamada pelo juiz e a herança passou-lhe às mãos. O distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade. Mas nada escapa a um espírito original e penetrante. Simão Bacamarte, que desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação daquele agente, reconheceu a habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma experiência tão melindrosa e complicada, e determinou recolhê-lo imediatamente à Casa Verde; deu-lhe todavia um dos melhores cubículos. Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal. Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele se pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que a Câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso. — O que é que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os principais da vila. Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde.— Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz. Chegou o fim do prazo, a Câmara autorizou um prazo suplementar de seis meses para ensaio dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana. 

CAPÍTULO XIII - PLUS ULTRA! 

Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista faz curas pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Itaguaí. Com efeito, era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou em atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas,—graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente poeta que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve a ideia de mandar correr matraca para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro. —Foi um santo remédio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um santo remédio. Outro doente, também modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas, não sendo escritor (mal sabia assinar o nome), não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário da Academia dos Encobertos, estabelecida em Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de nomeação régia, por especial graça do finado Rei Dom João V, e implicavam o tratamento de Excelência e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O governo de Lisboa recusou o diploma; mas, representando o alienista que o não pedia como prêmio honorífico ou distinção legitima, e somente como um meio terapêutico para um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o faz sem extraordinário esforço do ministro da marinha e ultramar, que vinha a ser primo do alienado. Foi outro santo remédio. —Realmente, é admirável! Dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois ex-dementes. Tal era o sistema. Imagina-se o resto. Cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que a qualidade predominante resistia a tudo; então o alienista atacava outra parte, aplicando à terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma fortaleza por um ponto, se por outro o não pode conseguir. No fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão, tão cruelmente afligido de moderação e equidade, teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação corrompendo os juízes e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi a simples vis medicatrix da natureza. Não aconteceu o mesmo com o Padre Lopes. Sabendo o alienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o de fazer uma análise crítica da versão dos Setenta; o padre aceitou a incumbência, e em boa hora o fez; ao cabo de dois meses possuía um livro e a liberdade. Quanto à senhora do boticário, não ficou muito tempo na célula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos. —Por que é que o Crispim não vem visitar-me: dizia ela todos os dias. Respondiam-lhe ora uma coisa, ora outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona não pôde conter a indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera escaparam-lhe expressões soltas e vagas, como estas: —Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas à custa de unguentos falsificados e podres... Ah! tratante!... Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a acusação contida nestas palavras, bastavam elas para mostrar que a excelente senhora estava enfim restituída ao perfeito desequilíbrio das faculdades; e prontamente lhe deu alta. Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde, mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus ultra! era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em Itaguaí. o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria. —Vejamos, pensava ele; vejamos se chego enfim à última verdade. Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica biblioteca dos domínios ultramarinos de Sua Majestade. Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão de seda, com borlas de ouro (presente de uma universidade) envolvia o corpo majestoso e austero do ilustre alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva adquirida nas cogitações cotidianas da ciência. Os pés, não delgados e femininos, não graúdos e mariolas, mas proporcionados ao vulto, eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples e modesto latão. Vede a diferença:—só se lhe notava luxo naquilo que era de origem científica; o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da singeleza, virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio. Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral. Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si: —Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim,—ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro? E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar, eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam. Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade:— não havia loucos em Itaguaí. Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa esta ideia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito; foi a ideia da dúvida. Pois quê! Itaguaí. não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta, não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica? A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os forres enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade. —Sim, há de ser isso, pensou ele. Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa. —Nenhum defeito? —Nenhum, disse em coro a assembleia. —Nenhum vício? —Nada. —Tudo perfeito? —Tudo. —Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade. A assembleia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o Padre Lopes. explicou tudo com este conceito digno de um observador: —Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras:—a modéstia. Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante. —A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática. —Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas. Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezassete meses no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco além dele em Itaguaí mas esta opinião fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre Lopes. que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.

Machado de Assis